imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Jorge da Silva, 1552

       Omelia feita a Madalena

       Elegia a Madalena


 Omelia feita a Madalena [1]

 

1       A Madalena ho seu esposo buscava

Ja que vivo ho não esperava dachar

asi com ele morto se contentava

 

Aynda que se não fartava de ho chorar

5      desejava de o ver na terra dura

pera cõ suas lagrimas o abrandar

 

Ja sabia ho bem quam pouco dura

E que ho tempo desfas toda lembrança

não ousava de sayr da sepultura

 

10     Aly chorava sua pouca confiança

chorava lembrança da sua dor

chorava sua perdida esperança

 

Avia medo que se esfriase o amor

e que fose de hum tempo em outro tempo

15    perdendo a saudade do Redentor

 

Desejava que tivese o moymento

a sua avida tudo seu ser

pois tivera todo seu contentamento

 

Desejava em estremo de morrer

20     cuidando se assy morta veria

quem viva não esperava mais de ver

 

Sabia bem que ja não perderia

cousa que a seu mestre fosse ygual

é que a dor chegara omde chegar podia

 

25     Desterro martírio é tudo em ella

estimava por muy ditosa sorte

nem podia niguem fazerlhe mor mal

 

O força de amor quanto es forte

que a huma molher fraca e delicada

30     fazes que despreze a dura morte

 

Estando de todo desesperada

E a sua alma de tamanha tristeza,

toda chea dormente e ocupada

 

Virou pera o sepulcro a cabeça

35     não ymaginando o que podia ser

e vio dous anjos de estranha beleza

 

que lhe diçeram porqué choras molher

que mal he este que asy te fizerão

dizenos se pode algum remedio ter

 

40     Respondeo maria o senhor me levarão

não sey quem ho tem nem quem o levou

e o pior he que a vida me deixarão

 

A vista dos anjos não abrandou

a sua tristeza amtes pareçia

45    se ysto pode ser que lha acrescentou

 

Mas o snõr a quem não esquecya

tantas lagrimas por elle choradas

veio consolar a quem tanto se doia

 

Aquele socorro de desconsoladas

50     aquela fonte viva de piadade

aquele emparo das desemparadas

 

Vendo que seria já crueldade

deixar assy quebrar hum coração

a cudio a hum amor tã de verdade /Fol. 28

 

55     Apareçeolhe em forma de ortelão

e diselhe molher porque choras

agora que buscas cõ tanta dor tanta paixão

 

Como snõr perguntas porque choro agora

quem a pouco que te vio crucificado

60     tu em quem a sua alma triste mora

 

A ty so busca cõ tanto cuidado

por ty so chora e tu soo o causaste

este seu misterio e triste estado

 

Respondeo maria se tu o tomaste

65    não me neges a quem tanto queria

dizeme snõr omde o levastes

 

Porque aos ombros será levaria

a quem minha alma tanto deseja

por nenhuma cousa o trocaria

 

70     Dino he que esta molher sempre veja

o seu amor posto em eterna fama

e celebrada polo mundo seja

 

Hum corpo morto que em sonhos na cama

espanta a ela nam pode espantar

75    ho que tudo he façil a quem muito ama   /Fol.28-v.

 

Não quis o Redentor mais dilatar

Remedio quem tanto o merecia

nem pode sofrer vela mais chorar

 

C'o alegre Rosto lhe dise maria

80     cõ aquela costumada mãoçiadõ

cõ aquela doce vos como soia

 

Ho bom Jesu quam çerto galardão

tem quem se serve e ama de puro amor

quam lomge de por ty ser nada em vão

 

85    Ouvindo maria a vos do seu snõr

vendo a quem tanto desejava ver

vio também o fim a sua grande dor

 

A sua alma Resurgio cõ novo ser

cõ novo e cõ glorioso pensamento

90     cõ novo e com desacostumado prazer

 

Ja nã avia lembrança do tormento

nem chegou numqua a sua tristeza

omde chegou a seu contentamento

Passou o termo de toda a natureza

 

95     todas as cousas tem seu proprio tempo   /Fol.29

Seu principio seu fim é seu lugar

tempo a de rir e tempo de chorar

tempo de descanso outro de tormento

 

Abasta quanto me levou o vento

100  basta saber que o provir hade passar

como ho prezente nem me a de ficar

do prazer mais que arependimento

 

Leve ho mundo ho que tem levado

Ja agora dele não quero bem nem mal

105  nem desejo mais que verme desatado

 

O misero o quem em cousa em cousa mortal

poem a sua esperança quam enganado

quam perdido se ha de ver este tal

 


 Elegia a Madalena [2]

1       A Madanela ho seu esposo buscava

ja que vivo ho não esperava achar

asi com ele morto se contentava

 

Ainda se não fartava de o chorar

5       desejava d'o ver na terra dura

para com suas lagrimas a abrandar

 

Ja sabia o bem quam pouco dura

y que o tempo desfaz toda lembrança

o ousava de se yr da sepultura

 

10     Ally chorava sua pouca confiança

chorava lembranças de sua dor

chorava sua perdida esperança

 

Avia medo que se esfriasse o amor

y que fosse dum tempo em outro tempo

15    perdendo a saudade do redentor

 

Desejava que tivese o moymento

a sua alma: a vida todo seu ser

pois tivera todo seu contentamento

 

Desejava em estremo d'morrer

20     cuidando se ally morta veria

quem viva nam esperava mais de viver

 

Sabia bem que ja nam perderia

cousa que a seu mestre fosse igual

y que a dor chegara onde chegar podia

 

25     Desterro martírio y tudo o estimava

por muy ditosa sorte

nem podia ningem fazer lhe mor mal

 

O força d'amor quanto es forte

a huma molher fraca y delicada

30     fazes que despreza a dura morte

 

Estando de todo desesperada

y sua alma d'tamanha tristeza,

toda chea dormente y acupada

 

Virou para o sepulcro a cabeça

35    nam imaginando o que podia ser

vio dous anjos d'estranha beleza

 

Que lhe disseram/ porque choras molher /Fol.m

que mal he este que assi te fizeram

dize nos se pode algum remedio ter

 

40     Respondeu Maria o señor me levaram

nam sey quem ho tem nem quem o levou

e o pior he que a vida me deixaram

 

A vista dos anjos nam abrandou

a sua tristeza amtes parecia

45    se isto pode ser que lha acrescentou

 

Mas o snõr a quem nam esquecia

tantas lagrimas por elle choradas

veo consolar quem tanto se dohia

 

Aquelle socorro de desconsoladas

50     aquelle fonte viva de piedade

aquele emparo de desemparadas

 

Vendo que seria ja crueldade

deixar ally quebrar hum coração

acudio a hum amor tam de verdade /Fol.m-v

 

55     Apareceo lhe em forma de ortelão

disse lhe molher porque choras agora

que buscas cõ tanta dor tanta paixam

 

Como snõr perguntaes porque chora,

quem a pouco vos vio crucificado

60     vos em quem sua alma triste mora

 

A vos so busca com tanto cuydado

por vos soo chora y vos soo'causaste

este seu misero y triste estado

 

Respondeo Maria. se vos o tomastes

65     nam me negueis a quem tanto queria

dizey me senõr onde o llevastes

 

Porque aos ombros certo levaria

quem a minha alma tanto deseja,

y por nenhhuma cousa o trocaria

 

70     Digno he que esta molher sempre veja

seu nome posto em eterna fama /Fol.mij

y celebrada polo mundo seja

 

Hum corpo morto que em sonhos na cama

espanta a ela nam pode espantar

75     Do que tudo he facil a quem muito ama

 

Nam quis o Redentor mais dilatar

Remedio quem tanto o merecia

nem pode sofrer vella mais chorar

 

Com alegre rosto lhe dise maria

80     cõ aquella costumada mansidam

cõ aquella doce voz como sohia

 

O bom jesu quam çerto galardam

tem quem vos sirve y ama de puro amor

quam lomge de por vos ser nada em vão.

 

85     Ouvindo maria a voz de seu snõr

vendo quem tanto desejava ver

vio tambem o fim a sua grande dor

 

A sua alma resurgio // com novo ser /Fol.mij-v

cõ novo e glorioso pensamento

90     cõ novo y desacostumado prazer

 

Ja nam havia lembrança do tormento

nem chegou nunca a sua tristeza

onde chegou o seu contentamento

Passou todo o termo da natureza.

                                                Laos Deo.

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[1] In A Paixão de Jesu Christo nosso deos e señor assi como a escreueram os quatro euangelistas: e como a decraram os santos: e dotores catholicos, (Évora: André de Burgos.1552) fóls. cxiij-cxiiij; 

[2] Ibid., fól.29;