imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] António Ferreira, 1587

 

 A Santa Maria Magdalena - Elegia IX [1]

 

Aquella, a quem foi muito perdoado,

Porque amou muito; o peito em fogo, em agoa

Os olhos, a alma  toda num cuidado;

 

Aquella santa pedra, e viva fragoa

5       Do seu amor se vay, os Ceos, e terra

Enchendo de suspiros, e de mágoa.

 

Mas no piadoso zelo a tenção erra

D’ungir o morto, não de esperar vivo

Quem fez com a sua á nossa morte guerra,

 

10     Quem com sua prisão o Mundo cativo

Libertou do poder, e tyrannias

Do escuro reyno, e fogo sempre vivo.

 

O  veo do templo roto, em noite o dia,

As pedras, o tremor, geral tristeza

15     Mais que homem o confessava, e descobria.

 

Na morte a vida estava, honra, e riqueza

Em pobreza, e infamia: a certa gloria

No mór desprezo posta, mór baixeza.

 

Mas já os ricos despojos da visctoria

20     Aos Ceos levára, e abrindo a immortal vida,

Glorioso fim déra á sua historia.

 

Já d’aquella luz clara, que escondia

Andava, os claros rayos seus soltando,

A santa humanidade era vestida.

 

25     MADALENA, que a estrada vai pisando,

Por ondo á morte foy, por quem suspira,

A alma ao qu’os olhos vem está só dando.

 

De saudade chea, e chea de ira,

Do seu amor, da cruel gente féra,

30     Daquella terra alma, nem boca tira.

 

Se por homem só o chora, que fizera

Alumiada d’outro novo sprito,

Se quem lho deu despois, então lho dera?

 

Falece já agoa aos olhos, voz ao grito,

35     Arde toda em amor, arde em lembrança

D’aquelle, que em sua alma traz escrito.

 

Leva pintada a viva semelhança

Ante os olhos, do seu rosto fermoso,

Em que a ira despois fez cruel mudança.

 

40     Aqui descabellado, aqui choroso,

Diz, hia o meu Senhor; aqui despido

Pareceo ante todos lastimoso.

 

Co peso da grã Cruz aqui cahido,

De seu sangue, suor, e pó cuberto,

45     Aqui, entre dous ladrões nella estendido.

 

Co sprito quebrado, o peito aberto

Hora cae MADALENA, hora esmorece.

Chega ao sepulchro, Sol já descuberto.

 

Busca o lugar, a pedra reconhece,

50     Quem a revolverá? eis torna ao pranto.

Mas á santa tenção Deos não falece.

 

Eis a pedra revolta, eis novo espanto:

De neve, e Sol vestido hum Anjo claro

Está sentado no sepulchro santo.

 

55     Diz-lhe que resurgio seu doce, e charo

Senhor, e co alma lêda vai correndo

Consolar do bom PEDRO o desemparo.

 

Eila torna com elle, e inda não crendo

Tamanho bem, só fica no moimento

60     Em vivo fogo os olhos desfazendo.

 

Ah MARIA, levanta o pensamento.

Porque entre os mortos buscas quem a vida

Á terra trouxe, e tem no Ceo o assento?

 

Aquella piedade concedida

65    Tam larga a teur errores, como agora

Parece que he de ti mal entendida?

 

Quem teu Lazaro morto chamou fóra

Da sepultura, já de quatro dias,

Como tua pouca fé por só homem chora?

 

70     A quantos olhos luz, a quantos vias

Dar mãos, e pés, e lingoas, que cantando

Delle hiam altas grandezas, que tu crias?

 

O unguento, que estavas derramando

Sobr’a sua cabeça, não mostrava

75     Que em vivo já o estava sepultado?

 

Já aquella grã carreira, que esperava,

Correo co  grã victoria o grã Gigante,

Já o templo restaurou, que derribava.

 

Vencedor glorioso, e triumphante,

80     A tunica deixando dada em sorte,

Se vestio d’outra nova de diamante.

 

Já o vendido Joseph, já o Sansão forte

Preso, o grã Jonas na Balea metido,

He livre, as portas quebra, mata a morte.

 

85     Como manso Cordeiro offerecido

Por si á morte, como grã Lião

Vence a tribu de Juda promettido.

 

O sudario, e despojos, que hi vês, dão

Claro sinal, que como verdadeiro

90     Deos se ergueo Deos, o teu temor he vão.

 

E a Galilea, disse, que primeiro

Iria ter que os seus; da mão dereita

Do pay virá no dia derradeiro.

 

Piadoso Senhor, de amor sogeita,

95     Inda que baixo amor, s’engana, e cega

MARIA, mais não vê, mais não sospeita.

 

Inda cos cravos teus sua alma préga.

Representa-lhe a dor, e a saudade

A humana vista, a mais alta lhe nega.

 

100   Mas tu tambem movido de piedade

Das lagrimas, qu’em ti não são perdidas,

Lhe enche, do que deseja, sua vontade.

 

Não podem, grã Senhor, ser compreendidas

Tuas grandezas, entende-las-ha

105  Por ti, Deos, logo della serão cridas.

 

Chorando no moymento por ti está:

Mandas teus Anjos, tu tambem pareces.

Quanto alcança de ti quem se te dá!

 

Ah MARIA, quem amas, não conheces?

110   Esse he o grande hortelão, o q planta a vinha,

Em que tu teu jornal tambem mereces.

 

Tal fórma á tua fraca fé convinha,

Á vista se t’encobre, é voz s’aclara,

Á voz, qu’em ti tam branda força tinha.

 

115   Aquella fermosura aos Ceos tam chara

Não a podes tocar té de luz nova

Teres a vista, e alma inda mais clara.

 

Em teu sprito a antiga fé renova.

Este he o qu’antes sohias Deos chamar,

120  Torna a seus irmãos já co’alegre nova.

 

Ditosa, que primeiro a podes dar:

Por ti sua divindade s’apregoa,

A elles a humanidade quis mostrar.

 

Ditosa, que tam alta, e grã coroa

125   De gloria mereceste! ah grande amor,

Qu’a tanto chega, a tanto sobe, e voa!

 

Gloriosa MARIA, esse fervor,

Em que tua alma ardia, a grã corrente,

Em que a lavaste pero o grã Senhor,

130         Inflamme, e abrande a fria, e dura gente.

 

[]

 


[1] In Poemas Lusitanos, T.I, (Lisboa:Typographia Rollandiana,1829, 3ª.ed), pp.170-75;