imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas - a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003 |
A Santa Maria Magdalena - Elegia IX [1]
Aquella, a quem foi muito perdoado,
Porque amou muito; o peito em fogo, em agoa
Os olhos, a alma toda num cuidado;
Aquella santa pedra, e viva fragoa
5 Do seu amor se vay, os Ceos, e terra
Enchendo de suspiros, e de mágoa.
Mas no piadoso zelo a tenção erra
D’ungir o morto, não de esperar vivo
Quem fez com a sua á nossa morte guerra,
10 Quem com sua prisão o Mundo cativo
Libertou do poder, e tyrannias
Do escuro reyno, e fogo sempre vivo.
O veo do templo roto, em noite o dia,
As pedras, o tremor, geral tristeza
15 Mais que homem o confessava, e descobria.
Na morte a vida estava, honra, e riqueza
Em pobreza, e infamia: a certa gloria
No mór desprezo posta, mór baixeza.
Mas já os ricos despojos da visctoria
20 Aos Ceos levára, e abrindo a immortal vida,
Glorioso fim déra á sua historia.
Já d’aquella luz clara, que escondia
Andava, os claros rayos seus soltando,
A santa humanidade era vestida.
25 MADALENA, que a estrada vai pisando,
Por ondo á morte foy, por quem suspira,
A alma ao qu’os olhos vem está só dando.
De saudade chea, e chea de ira,
Do seu amor, da cruel gente féra,
30 Daquella terra alma, nem boca tira.
Se por homem só o chora, que fizera
Alumiada d’outro novo sprito,
Se quem lho deu despois, então lho dera?
Falece já agoa aos olhos, voz ao grito,
35 Arde toda em amor, arde em lembrança
D’aquelle, que em sua alma traz escrito.
Leva pintada a viva semelhança
Ante os olhos, do seu rosto fermoso,
Em que a ira despois fez cruel mudança.
40 Aqui descabellado, aqui choroso,
Diz, hia o meu Senhor; aqui despido
Pareceo ante todos lastimoso.
Co peso da grã Cruz aqui cahido,
De seu sangue, suor, e pó cuberto,
45 Aqui, entre dous ladrões nella estendido.
Co sprito quebrado, o peito aberto
Hora cae MADALENA, hora esmorece.
Chega ao sepulchro, Sol já descuberto.
Busca o lugar, a pedra reconhece,
50 Quem a revolverá? eis torna ao pranto.
Mas á santa tenção Deos não falece.
Eis a pedra revolta, eis novo espanto:
De neve, e Sol vestido hum Anjo claro
Está sentado no sepulchro santo.
55 Diz-lhe que resurgio seu doce, e charo
Senhor, e co alma lêda vai correndo
Consolar do bom PEDRO o desemparo.
Eila torna com elle, e inda não crendo
Tamanho bem, só fica no moimento
60 Em vivo fogo os olhos desfazendo.
Ah MARIA, levanta o pensamento.
Porque entre os mortos buscas quem a vida
Á terra trouxe, e tem no Ceo o assento?
Aquella piedade concedida
65 Tam larga a teur errores, como agora
Parece que he de ti mal entendida?
Quem teu Lazaro morto chamou fóra
Da sepultura, já de quatro dias,
Como tua pouca fé por só homem chora?
70 A quantos olhos luz, a quantos vias
Dar mãos, e pés, e lingoas, que cantando
Delle hiam altas grandezas, que tu crias?
O unguento, que estavas derramando
Sobr’a sua cabeça, não mostrava
75 Que em vivo já o estava sepultado?
Já aquella grã carreira, que esperava,
Correo co grã victoria o grã Gigante,
Já o templo restaurou, que derribava.
Vencedor glorioso, e triumphante,
80 A tunica deixando dada em sorte,
Se vestio d’outra nova de diamante.
Já o vendido Joseph, já o Sansão forte
Preso, o grã Jonas na Balea metido,
He livre, as portas quebra, mata a morte.
85 Como manso Cordeiro offerecido
Por si á morte, como grã Lião
Vence a tribu de Juda promettido.
O sudario, e despojos, que hi vês, dão
Claro sinal, que como verdadeiro
90 Deos se ergueo Deos, o teu temor he vão.
E a Galilea, disse, que primeiro
Iria ter que os seus; da mão dereita
Do pay virá no dia derradeiro.
Piadoso Senhor, de amor sogeita,
95 Inda que baixo amor, s’engana, e cega
MARIA, mais não vê, mais não sospeita.
Inda cos cravos teus sua alma préga.
Representa-lhe a dor, e a saudade
A humana vista, a mais alta lhe nega.
100 Mas tu tambem movido de piedade
Das lagrimas, qu’em ti não são perdidas,
Lhe enche, do que deseja, sua vontade.
Não podem, grã Senhor, ser compreendidas
Tuas grandezas, entende-las-ha
105 Por ti, Deos, logo della serão cridas.
Chorando no moymento por ti está:
Mandas teus Anjos, tu tambem pareces.
Quanto alcança de ti quem se te dá!
Ah MARIA, quem amas, não conheces?
110 Esse he o grande hortelão, o q planta a vinha,
Em que tu teu jornal tambem mereces.
Tal fórma á tua fraca fé convinha,
Á vista se t’encobre, é voz s’aclara,
Á voz, qu’em ti tam branda força tinha.
115 Aquella fermosura aos Ceos tam chara
Não a podes tocar té de luz nova
Teres a vista, e alma inda mais clara.
Em teu sprito a antiga fé renova.
Este he o qu’antes sohias Deos chamar,
120 Torna a seus irmãos já co’alegre nova.
Ditosa, que primeiro a podes dar:
Por ti sua divindade s’apregoa,
A elles a humanidade quis mostrar.
Ditosa, que tam alta, e grã coroa
125 De gloria mereceste! ah grande amor,
Qu’a tanto chega, a tanto sobe, e voa!
Gloriosa MARIA, esse fervor,
Em que tua alma ardia, a grã corrente,
Em que a lavaste pero o grã Senhor,
130 Inflamme, e abrande a fria, e dura gente.