imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Francisco da Costa, 1591

LXXXII - A Madanela

LXXXIII - Suma da Vida e Trânsito de Madanela


LXXXII - A Madanela [1]

 

Lava os peis de Christo, Madanela,

co as agoas de seus olhos, fontes feitos,

e lava, juntamente, seus deffeitos;

cos cabelos os enxuga a santa bela.

 

5       Vede, o amor de Deus que faz por ela,

vendo nela os amores taõ perfeitos:

fortyficaa, no amor de seus conçeitos,

e faz hum raro exemplo ao mundo, dela.

 

Madanela, aos peis de Christo se rendeo

10     e tudo os peis de Christo lhe renderaõ;

não se aparta, dos peis que conheceo.

 

Quam bem os sacros peis lho conheceraõ!

Vençida aos peis d’amor, amor vençeo,

e o triumpho da vitoria, os peis lho deraõ.

 

Ao convite, que levais,

Madanela, de Simão?

- Lagrimas e coração.

Que trazeis? - Celestiais

mercês, juntas co perdão.

 

 

 

Sospendeisme, Madalena, quanto mais

estais, aos peis de Christo, sospendida

Naõ sabeis que, a esses peis, se alcança a vida?

E os bens do Sumo Bem, porque calais?

 

5       Vossa irmaã ministra e vós estais

com descansso, a seus peis, toda absorvida.

A quem vos vem buscar e se convida,

pareçe que friamente gasalhais.

 

Ó dest’alma hospede, tam querido,

10     onde vós mais folgais, vos gazalho;

o manjar, que mais quereis, vos offereço!

 

Com Maria, tendes já, meu bem, comido,

quando marta, em o dar, toma trabalho,

e assi, do que naõ sois, toda me esqueço!

 

Mil vezes mais que Marta, Madanela,

dos peis de Christo fala, estando muda;

Diz quanto ama. E quanto ama, ela,

sua alma só o diz, não lingoa ruda.

Num neçessario só, se funda a bela;

tudo o mais despreza, de sezuda.

Laa, naquela alma, solicita e trata,

asentada estando e queda, mais que Martha.

  


LXXXIII - Suma da Vida e Trânsito de Madanela

 

1

Liberdade, riqueza, e fermosura,

de Magdalo, destruem a senhora

e daõ lhe, por tudo, de peccadora

que alcançou do offiçio vida impura.

 

5       Vede, amor do Ceo como amor cura

que, não perdendo o nome de amadora,

o muito que amou, amando, chora;

e o muito que ama, lho assigura.

 

No convite de Simão, Christo convida

10     com lagrimas d’amor, manjar suave,

que lhe sabe milhor que o de Simão.

 

Tais offiçios de  amor, aos peis da Vida,

co as mãos, cabelos, boca, fazer sabe

que alcança o mor amor e o mor perdão.

 

2

15     Aquelas quatro vozes pregoeiras,

graves, sonoras, suaves, penetrantes,

num toom sacro e celeste concordantes,

decantaõ vossas obras verdadeiras.

 

As amorosas agoas, que, em ribeiras,

20     corriaõ desses olhos abundantes,

como regaõ a Terra! Ó Ceo, quaõ possantes

para fertis, divinas sementeiras!

 

Do Spirito instruida, a Madre santa,

de vós, santa, que diz, por seus doutores?

25     Ó raiz de penitençia e alta planta!

 

Dessas entranhas que diz, desses amores?

Que diz o mesmo Deus, e que decanta?

Que obraõ, em fim, em vós os seus louvores.

 

3

Ó lagrimas d’amor taõ poderosas,

30     que o peito do Senhor enternecestes,

pois com outras mostrou quanto o movestes

a obrar, por vos, cousas milagrosas!

 

Ó culpas pello inguento tão ditosas

com que o Mestre as curou que vós lhe destes!

35     Ó cabelos belissimos, celestes,

que servistes de toalhas amorosas!

 

Quando Simão, de immunda, vos comprende;

quando Marta vos nota, de ociosa,

quando Iudas de prodiga vos chama,

 

40     Por vós Iesu responde e vos defende,

e de falsa justiça, logo, os groza.

Olhai bem, se o amais, como vos ama!

 

4

Puro amor, que em ausençia se refina,

despois da Paixaõ sacra quatorz’annos

45     gastados nos coloquios soberanos

passados no que mais vos fazem digna.,

 

Com milagre, a Marçelha vos inclina

e devastar seus idolos profanos,

Tudo, aly, bautizou vossa doutrina;

50     ali, as almas para Deus administrando.

 

Tornastevos, de muda, pregoeira;

solicita, de quieta, mais que Marta,

As almas para Deus  administrando.

 

Fazeis gente pera o Ceo, ergueis bandeira.

55     Pois que, dealmas, essa alma não se farta,

acquiri esta minha a vosso bando.

 

5

Escolhestes hum ermo desabrido,

sem agoa, erva alguma, nem deporte,

pera, em jubilo, gozardes, té a morte.

60     de Iesu o deporte tão querido.

 

Foivos, do Alto, aplauzo conçedido,

ó molher, a que o Sabio chama forte.

As faltas do lugar suprio a corte

celeste, com seu nectar taõ subido.

 

65     Se o corpo, a sacra ambrosia vos provia,

a alma, o bom Iesu vos regalava.

Levantada aos canticos soberanos,

 

Gozando da celeste melodia,

assi, com Deus, essa alma conversava,

70    na vida, por espaço de trinta annos.

 

6

Como, divina santa e gloriosa,

só assi quereis gozar vossos amores?

Não sabeis  que os perfeitos amadores

lhe he mais, a charidade, deleitosa?

 

75     Trinta annos, nos fugis, santa amorosa.

Como vos escondeis a peccadores?

Não vos lembra a chrus do Mestre e suas dores,

a caza de Simão, a vós ditosa?

 

Não no ermo, mas na corte, vos achastes;

80     não na corte, mas no ermo nos achamos.

Vós sem nós, nós sem vós, nossa esperança!

 

Mais, ahi, a charidade exerçitastes;

mais, nesse ermo, os deste ermo vos lembramos:

pera nós, grangeais essa privança.

 

7

85     E, porque o fim vosso, tão ditoso,

vosso comesso eterno, nos mostrasse,

quis, o Senhor, que essa alma naõ pasasse,

sem mostrar vosso transito glorioso.

 

Habitava em vosso ermo,hum dezejoso,

90     devoto sacerdote, de salvarsse;

abriolhe, Deus, os oçhos porque oulhasse

O Ceo, a vós porpiçio e milagroso.

 

Vio Anjos vir do Çeo a recebervos

e da Terra levantarvos, té o Ceo;

95     dahi a espaço grande, viu deçervos.

 

O espanto e o temor quasi o vençeo;

mas, posposto, quis logo conheçervos,

e d’esforço Deus, pera isso, o proveo.

 

8

Tres vezes, en voz alta, vos conjura,

100   se cousa sois racional que lho digais.

Co a resposta, alegre e branda, naõ tardais,

e taõ suave lha dais que o asegura.

 

Maria sou, aquela da Escritura,

famosa peccadora que cantais,

105  que lavou de Christo os peis, se vos lembrais,

e o perdaõ alcansou da vida impura.

 

Depois de trinta annos escondida,

tratada de merçês grandes, celestes,

reveloume meu fim, o bem divino.

 

110  Prestes estou, já, pera partida;

cumpre, ó padre meu, que tambem, prestes,

vades dizer isto a Macximino:

 

9

Que sua devota filha, Madanela,

que na casa de Simão foi perdoada,

115   ao oratorio seu sera levada,

no dia que o Senhor surgio por ella.

 

Às horas de matinas, entre a vêla

e será de sua maõ sacramentada;

passará logo, ao Amado, a sua amada,

120   a gozar a beatifica visaõ bela.

 

Voando, o sasçerdote, co recado

que, chorando, o Pontifiçe recebe,

mil oras lhe tarda huma, porém chega.

 

Do que o Santo, ali vio, fica emlevado

125  Assi de gloria e espanto se aperçebe,

que, em seus devotos termos, se lh’enxerga.

 

10

«Ó amores de Iesu», diz Maximino,

porque fostes no seu toda abrazada;

ó felice criatura, destinada

130   pera proveito humano e bem divino,

 

Eisme, aqui. Que quereis de hum pobre indino,

que entre Anjos, onde estais, não falta nada?

No ar resplandeçente e levantada!

Entrar não ouso mais que não sou dino.

 

135   Com sembrante celeste, Madanela:

Ó santo Padre meu, lhe diz, entrai;

da filha naõ fujais, vossa querida,

 

Que passe o Senhor, quer, da vossa cela.

O sacro convivio santo administray

140   e dai, a esta alma sua, a sua Vida!

 

11

Co alma lhe responde, emmudeçendo;

com lagrimas devotas, suspirando.

Revestesse o Pontifeçe, convocando

o clero, pera ver o que está vendo.

 

145   Prostrada ante o altar, em fogo ardendo,

com profunda humildade, a santa orando.

com sua visaõ bela edificando

as almas, que de a ver estaõ pendendo.

 

Consumindo o Paõ do Ceo, a consumada,

150   provida de seu Deus sua alma bela,

o caminho desejado logo segue.

 

Da angelica legiaõ acompanhada,

que veio do alto asento a reçebela,

a quem se entregou qua, foi lá entregue.

 

12

155   Taõ suave o lugar santo, taõ cheiroso

deixou, por dias muitos, a alma pura,

que mil almas consola e corpos cura

e recrea todo espirito amoroso.

 

Banhado todo, em lagrimas de gozo

160   deu logo ao santo corpo sepultura;

junto a ella, para si outra procura,

em que jaz, o Pastor santo e caridozo.

 

Ó grandes obras d’amor! Que desatino

he, naõ estar huma alma, a amor atada,

165  que a faz, sempre, obrar tantas façanhas!

 

Ó graõ mestra de amor, d’amor insino

me day, já que d’amor entendo nada,

e em amor me abrazai minhas entranhas!

 

[]

 


[1] In Cancioneiro chamado de D. Maria Henriques, (1591), Domingos Maurício Gomes dos Santos (ed.), (Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1956, 1ª.ed.), pp.255-264;