imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas - a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003 |
LXXXIII - Suma da Vida e Trânsito de Madanela
Lava os peis de Christo, Madanela,
co as agoas de seus olhos, fontes feitos,
e lava, juntamente, seus deffeitos;
cos cabelos os enxuga a santa bela.
5 Vede, o amor de Deus que faz por ela,
vendo nela os amores taõ perfeitos:
fortyficaa, no amor de seus conçeitos,
e faz hum raro exemplo ao mundo, dela.
Madanela, aos peis de Christo se rendeo
10 e tudo os peis de Christo lhe renderaõ;
não se aparta, dos peis que conheceo.
Quam bem os sacros peis lho conheceraõ!
Vençida aos peis d’amor, amor vençeo,
e o triumpho da vitoria, os peis lho deraõ.
Ao convite, que levais,
Madanela, de Simão?
- Lagrimas e coração.
Que trazeis? - Celestiais
mercês, juntas co perdão.
Sospendeisme, Madalena, quanto mais
estais, aos peis de Christo, sospendida
Naõ sabeis que, a esses peis, se alcança a vida?
E os bens do Sumo Bem, porque calais?
5 Vossa irmaã ministra e vós estais
com descansso, a seus peis, toda absorvida.
A quem vos vem buscar e se convida,
pareçe que friamente gasalhais.
Ó dest’alma hospede, tam querido,
10 onde vós mais folgais, vos gazalho;
o manjar, que mais quereis, vos offereço!
Com Maria, tendes já, meu bem, comido,
quando marta, em o dar, toma trabalho,
e assi, do que naõ sois, toda me esqueço!
Mil vezes mais que Marta, Madanela,
dos peis de Christo fala, estando muda;
Diz quanto ama. E quanto ama, ela,
sua alma só o diz, não lingoa ruda.
Num neçessario só, se funda a bela;
tudo o mais despreza, de sezuda.
Laa, naquela alma, solicita e trata,
asentada estando e queda, mais que Martha.
LXXXIII - Suma da Vida e Trânsito de Madanela
1
Liberdade, riqueza, e fermosura,
de Magdalo, destruem a senhora
e daõ lhe, por tudo, de peccadora
que alcançou do offiçio vida impura.
5 Vede, amor do Ceo como amor cura
que, não perdendo o nome de amadora,
o muito que amou, amando, chora;
e o muito que ama, lho assigura.
No convite de Simão, Christo convida
10 com lagrimas d’amor, manjar suave,
que lhe sabe milhor que o de Simão.
Tais offiçios de amor, aos peis da Vida,
co as mãos, cabelos, boca, fazer sabe
que alcança o mor amor e o mor perdão.
2
15 Aquelas quatro vozes pregoeiras,
graves, sonoras, suaves, penetrantes,
num toom sacro e celeste concordantes,
decantaõ vossas obras verdadeiras.
As amorosas agoas, que, em ribeiras,
20 corriaõ desses olhos abundantes,
como regaõ a Terra! Ó Ceo, quaõ possantes
para fertis, divinas sementeiras!
Do Spirito instruida, a Madre santa,
de vós, santa, que diz, por seus doutores?
25 Ó raiz de penitençia e alta planta!
Dessas entranhas que diz, desses amores?
Que diz o mesmo Deus, e que decanta?
Que obraõ, em fim, em vós os seus louvores.
3
Ó lagrimas d’amor taõ poderosas,
30 que o peito do Senhor enternecestes,
pois com outras mostrou quanto o movestes
a obrar, por vos, cousas milagrosas!
Ó culpas pello inguento tão ditosas
com que o Mestre as curou que vós lhe destes!
35 Ó cabelos belissimos, celestes,
que servistes de toalhas amorosas!
Quando Simão, de immunda, vos comprende;
quando Marta vos nota, de ociosa,
quando Iudas de prodiga vos chama,
40 Por vós Iesu responde e vos defende,
e de falsa justiça, logo, os groza.
Olhai bem, se o amais, como vos ama!
4
Puro amor, que em ausençia se refina,
despois da Paixaõ sacra quatorz’annos
45 gastados nos coloquios soberanos
passados no que mais vos fazem digna.,
Com milagre, a Marçelha vos inclina
e devastar seus idolos profanos,
Tudo, aly, bautizou vossa doutrina;
50 ali, as almas para Deus administrando.
Tornastevos, de muda, pregoeira;
solicita, de quieta, mais que Marta,
As almas para Deus administrando.
Fazeis gente pera o Ceo, ergueis bandeira.
55 Pois que, dealmas, essa alma não se farta,
acquiri esta minha a vosso bando.
5
Escolhestes hum ermo desabrido,
sem agoa, erva alguma, nem deporte,
pera, em jubilo, gozardes, té a morte.
60 de Iesu o deporte tão querido.
Foivos, do Alto, aplauzo conçedido,
ó molher, a que o Sabio chama forte.
As faltas do lugar suprio a corte
celeste, com seu nectar taõ subido.
65 Se o corpo, a sacra ambrosia vos provia,
a alma, o bom Iesu vos regalava.
Levantada aos canticos soberanos,
Gozando da celeste melodia,
assi, com Deus, essa alma conversava,
70 na vida, por espaço de trinta annos.
6
Como, divina santa e gloriosa,
só assi quereis gozar vossos amores?
Não sabeis que os perfeitos amadores
lhe he mais, a charidade, deleitosa?
75 Trinta annos, nos fugis, santa amorosa.
Como vos escondeis a peccadores?
Não vos lembra a chrus do Mestre e suas dores,
a caza de Simão, a vós ditosa?
Não no ermo, mas na corte, vos achastes;
80 não na corte, mas no ermo nos achamos.
Vós sem nós, nós sem vós, nossa esperança!
Mais, ahi, a charidade exerçitastes;
mais, nesse ermo, os deste ermo vos lembramos:
pera nós, grangeais essa privança.
7
85 E, porque o fim vosso, tão ditoso,
vosso comesso eterno, nos mostrasse,
quis, o Senhor, que essa alma naõ pasasse,
sem mostrar vosso transito glorioso.
Habitava em vosso ermo,hum dezejoso,
90 devoto sacerdote, de salvarsse;
abriolhe, Deus, os oçhos porque oulhasse
O Ceo, a vós porpiçio e milagroso.
Vio Anjos vir do Çeo a recebervos
e da Terra levantarvos, té o Ceo;
95 dahi a espaço grande, viu deçervos.
O espanto e o temor quasi o vençeo;
mas, posposto, quis logo conheçervos,
e d’esforço Deus, pera isso, o proveo.
8
Tres vezes, en voz alta, vos conjura,
100 se cousa sois racional que lho digais.
Co a resposta, alegre e branda, naõ tardais,
e taõ suave lha dais que o asegura.
Maria sou, aquela da Escritura,
famosa peccadora que cantais,
105 que lavou de Christo os peis, se vos lembrais,
e o perdaõ alcansou da vida impura.
Depois de trinta annos escondida,
tratada de merçês grandes, celestes,
reveloume meu fim, o bem divino.
110 Prestes estou, já, pera partida;
cumpre, ó padre meu, que tambem, prestes,
vades dizer isto a Macximino:
9
Que sua devota filha, Madanela,
que na casa de Simão foi perdoada,
115 ao oratorio seu sera levada,
no dia que o Senhor surgio por ella.
Às horas de matinas, entre a vêla
e será de sua maõ sacramentada;
passará logo, ao Amado, a sua amada,
120 a gozar a beatifica visaõ bela.
Voando, o sasçerdote, co recado
que, chorando, o Pontifiçe recebe,
mil oras lhe tarda huma, porém chega.
Do que o Santo, ali vio, fica emlevado
125 Assi de gloria e espanto se aperçebe,
que, em seus devotos termos, se lh’enxerga.
10
«Ó amores de Iesu», diz Maximino,
porque fostes no seu toda abrazada;
ó felice criatura, destinada
130 pera proveito humano e bem divino,
Eisme, aqui. Que quereis de hum pobre indino,
que entre Anjos, onde estais, não falta nada?
No ar resplandeçente e levantada!
Entrar não ouso mais que não sou dino.
135 Com sembrante celeste, Madanela:
Ó santo Padre meu, lhe diz, entrai;
da filha naõ fujais, vossa querida,
Que passe o Senhor, quer, da vossa cela.
O sacro convivio santo administray
140 e dai, a esta alma sua, a sua Vida!
11
Co alma lhe responde, emmudeçendo;
com lagrimas devotas, suspirando.
Revestesse o Pontifeçe, convocando
o clero, pera ver o que está vendo.
145 Prostrada ante o altar, em fogo ardendo,
com profunda humildade, a santa orando.
com sua visaõ bela edificando
as almas, que de a ver estaõ pendendo.
Consumindo o Paõ do Ceo, a consumada,
150 provida de seu Deus sua alma bela,
o caminho desejado logo segue.
Da angelica legiaõ acompanhada,
que veio do alto asento a reçebela,
a quem se entregou qua, foi lá entregue.
12
155 Taõ suave o lugar santo, taõ cheiroso
deixou, por dias muitos, a alma pura,
que mil almas consola e corpos cura
e recrea todo espirito amoroso.
Banhado todo, em lagrimas de gozo
160 deu logo ao santo corpo sepultura;
junto a ella, para si outra procura,
em que jaz, o Pastor santo e caridozo.
Ó grandes obras d’amor! Que desatino
he, naõ estar huma alma, a amor atada,
165 que a faz, sempre, obrar tantas façanhas!
Ó graõ mestra de amor, d’amor insino
me day, já que d’amor entendo nada,
e em amor me abrazai minhas entranhas!