imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Baltazar Estaço, 1604

Soneto - A Magdalena

Soneto - Da Magdanela aos pés de Cristo

Soneto - Da Mesma em busca de Christo

Ecloga - Da Magdanela

 


   Soneto - A Magdalena [1]

 

Muy grande agravo faz quem tem cantado,

Louvores, ou quem os vay cantando,

Se avendo de louvar, não diz louvando,

Igual louvor ao ser do que he louvado.

 

5       Não chega o ser a ser amplificado,

Quando elle a sy se está amplificando

O qual se não se alcança contemplando,

Não se louva depois de contemplado.

 

Louvouvos Magdalena o Rey do Ceo,

10    A quem com tanto amor amar soubestes,

Que engradeçeo o muyto que sentiste,

 

Elle he vosso louvor, vosso trofeo,

Pois quanto por humildade a vos deçestes,

Tanto por amorosa a Deos subistes.

 

 


 

   Soneto - Da Magdanela aos pés de Cristo

 

Agoas da culpa fria congeladas,

Por quem navega Deos, pera quem ama,

E a quem o vivo fogo que a alma inflama,

Faz sair pellos olhos destiladas.

 

5       Da terra vil ao Ceo sois levantadas,

E o Ceo com mais pureza vos derrama,

E convosco do amor puro creçe a chama,

E em vos morrem as culpas afogadas.

 

Sois as agoas que estais la sobre os Ceos,

10     Pois sobre os pes de Deos ides correndo,

O qual por vos em mï vive, & floreçe,

 

Regay agoas regay os pes de Deos,

Por que inda que elle em sy não và creçendo

Quanto mais os regais, mais nalma creçe.

 

 


 

   Soneto - Da Mesma em busca de Christo

 

Aquelle amor, que fere, & vay sarando,

Aquelle amor, que sara, & vay ferindo,

Aquelle amor, que o mal vay destruindo

Aquelle amor que o bem vay restaurando.

 

5       Aquelle amor que pede, & que vay dando,

O mesmo amor, que deu, que foy pedindo,

De mï causa do mal me tras fugindo,

Mas fugindo de mï, meu Deos buscando.

 

Ferida deste amor vivo morrendo,

10     E morro dü tormento doçe, & esquivo,

          Que ora me poem no mar, ora no porto,

 

Neste bem por que morro, vou vivendo,

Pois sinto deste bem o amor tão vivo,

Que morrendo por elle o busco morto.

 

 


   Ecloga - Da Magdanela

 

Per hum monte deserto

Esteril de boninas

A saudosa, & triste Magdalena,

Se vay, chegando perto

5       Doutras flores divinas,

Em cuja ausencia sofre tanta pena,

Que tem por mais pequena

Morrer com quem vivia

Que viver sem quem ama,

10     E tanto seu amor sua alma inflama,

Que a morte pretendia

Porque o divino amor

Em todo o amargoso poem sabor.

 

Tão leda de ser triste,

15    Que seu doce tormento

Bastante premio he do que padece,

As dores não resiste

Antes seu sofrimento

Se não padece dores se entristece:

20    Porque como conhece

Que toda a semelhança

He causa do amor

Por ser mais semelhante quer mais dor

E posta leva em Deos a confiança,

25    Que quem em Deos confia

O proprio inferno todo desafia.

 

Os olhos gotejando

Lagrimas amorosas

Cavão o brando peito, & amoroso,

30    Porque lhe vão lembrando

As dores espantosas

Que por ella quis ter seu doce esposo.

Com animo amoroso

Deseja de morrer,

35    Peraque morta veja

A quem depois de morto ver deseja:

Não cuidando que viva pode ser,

Amor se lhe acrecenta

Porque ausencia da mor, amor augmenta.

 

40     E tanta pena tem

De nã ter quanta teve

 Senhor que por ella padeceo,

Que na alma por mor bem

Com esta pena escreve,

45     Quantas penas por ella Deos sofreo;

E tudo o que escreveo

São dores porque lè

O Senhor que buscava

O qual jà dentro nalma escrito ve,

50     Com tão grande desejo o desejava.

 

Porque hum amor sobejo

Mil vezes forma a causa do desejo.

E nesta competencia

Com vida vai morrendo,

55     E morre porque vive andando ausente,

E com tanta longa ausência

Não vay desfalecendo,

Porque finge o esposo estar presente:

Assi quase contente

60    Com elle vai falando

Palavras amorosas

Que lhe amor, & a dor vão ensinando

Namoradas da mor, da dor queixosas

E desejando a morte

65     Falava contra a vida desta sorte:

 

Ah? vida dura, ou fonte de durezas,

Tão enganosa em tudo quanto das,

Que a quem das mays de ti, das mais tristezas

 

E sendo assim que tu não vens, mas vas,

70     Agora porque te eu desejo ida

Te deixas tu estar adonde estas,

 

Estando em tal ausencia convertida

Em morte, pello muito que atormentas,

Pois quando es mais penosa, es mais comprida

 

75     Mil maneiras de mortes me inventas

E a morte não ques dar por não dar bem,

Mas dalla a quem com ella não contentas.

 

A qual espera verte mais alem

Tu estas esperando, que ella venha

80     Assi nem tu te vas nem ella vem:

 

E sem que seu tormento se detenha,

Excita o amor que o fogo acenda

A quem a causa delle ajunta a lenha.

 

Não avera alguem que me defenda

85     De mim, que amim propria não entendo,

Ou quem entenda tanto que me entenda.

 

A mim de mim comigo não defendo,

Porque me custa tanto a defensão

Que quanto mais a busco, mais me ofendo.

 

90     Parece que o mar ao coração

As agoas emprestou com que chorasse.

Tão soltas por meus olhos inda vão.

 

E se chorando tanto descansasse,

Então continuo choro viviria,

95     Que nas agoas dos olhos me afogasse.

 

Mas folga nelle tanto a fantazia,

Cuidando que será causa do fim,

Que quando se acaba o principia,

 

E assi comigo jà de desavim

100  De modo que não vivo jà comigo,

Porque vivendo noutrem, morro em mim.

 

Ah? doce esposo meu, ah? doce amigo

De teus tormentos sò atormentada

Pello rastro do teu sangue te sigo.

 

105  Assim serâ tal dor remunerada

Que a terra que de teu sangue regaste,

Seja de minhas lagrimas regada.

 

Com tão imenso amor Senhor me amaste

Que não podendo a dor passar alem

110  Com teu amor allem dela passaste.

 

Doce descanso meu, todo meu bem

Largay vossa justiça em mim culpada

Dareis a pena a quem a culpa tem.

 

Que pode ser agloria atormentada,

115  Que pude dar a morte a propria vida?

Que pode a propria luz ser apagada,

 

Que quiseste verdade esclarecida

Querer alumiar a quem te offendia,

A custa de te ver tão offendida;

 

120   Contigo faleceo minha alegria

Por ty morrerey sempre inda que viva

Sem ty me segue o mal que me fugia.

 

Contigo livre fui sendo cativa

Por ty cativa sou, por ty chorando

125  Sem ty me sou mais dura, & mais esquiva.

 

Contigo vivy sempre em ty cuidando

Por ty só cuido em ser atormentada

Sem ty mil dores hüa está causando.

 

Contigo vivy sempre descansada,

130  Por ty todo o descanso vou perdendo,

Sem ty me nega o amor quanto me dava.

 

Porem a viva fè me vai dizendo

Que poderas jà ser resuscitado:

Isto cuidando vou, isto vou vendo.

 

135  Aviva coração tam desmayado,

Que jà não tës rezão de entristecerte

Pois desta gloria vas certificado.

 

Se grande pena tive de perderte,

Senhor, & redemptor desta alma minha

140  Mayor gloria terey se chego a verte,

 

Este o sepulchro he que o corpo tinha

Da quelle divindade esclarecida

Ah, peccadora, vil, triste, mesquinha,

 

Ay trsite coração, ay triste vida.

145  Choray cansados olhos ver perdido

O tempo, que perdi sendo perdida,

 

Fazey com vossas agoas tal roido

Que dellas ouça amor o movimento

A cujo tom applique o seu sentido,

 

150  Suspire, gema, canse o pensamento

Pois cansando merece o que deseja,

E merecendo cumpre o alto intento.

 

Este corpo imigo tambem seja

O que por este monte và buscando

155  A luz com que melhor seus males veja.

 

De dia em dia os dias vou passando,

Mas tudo me parece escuridade,

Pois quanto mais me chego, menos ando.

 

Aonde te acharei luz da verdade

160  Que cansa minha dor de me cansar

Mas para mayor dor ha mais vontade.

 

Porque parte Senhor te hey de buscar,

pera te achar a ty que te perdeste

Por mim, que sò em ty me posso achar;

 

165  E jà que por meu mal tanto sofreste,

Chegando ate ao fim onde me amaste,

Não te negues Senhor, pois que te deste.

 

Teu infinito amor jà me mostraste

E eu este pouco meu te vou mostrando

170  Tu perdido por mim ja me buscaste

E eu perdida por ty te vou buscando.

 

Christo.

Affligida molher triste, & chorosa

Que queres, ou que buscas, que pretendes;

 

Magdalena

Responda esta alma triste, & saudosa

175  Se minha tenção pura não entendes.

 

Christo.

A tenção que te vejo he amorosa

Com cuja causa teu sogeito offendes.

 

Magdalena

Antes com mor offensa me offendera

Se offensa mayor me não fizera.

 

Christo.

180   Basta que queres ser atormentada

E que essa tua dor teu premio seja,

 

Magdalena

Sy porque esta dor he hüa escada,

Por onde esta alma sobe ao que deseja,

E desejando ser asemelhada

185  Querendo que seu bem seu mal lhe veja

Sofre, morre, padece, chora, & sente,

E quando triste està, està mais contente.

 

Christo.

Enfim que esse teu mal te descansara

Se te dera mor dor,

 

Magdalena

Se elle ma dera

190   Padecendo mais dor, mais me apurara

Apurandome mais, mais merecera.

Nem com tão duro mal tanto folgara

Se todo mal a bem não me soubera

Que o fogo do amor mo faz tão doce

195  Como se meu pezar, meu prazer fosse,

 

Dizey por vida vossa se me vistes

O Senhor que sustenta a minha vida;

Ah? lindo amor emfim que me feristes,

E daisme por remedio esta ferida.

200  Ouvy, ouvy Senhor suspiros tristes

Que lançam esta alma triste, & afligïda,

Porque bem sey que em vos tristes suspiros

São como em fraco forte, forte tiros.

 

Christo.

Maria,

Magdalena

       Ay doce amor, doce cuidado

205   Assi escondeis Senhor vossa belleza

De tão vil peccadora namorado

Tão humilde mostrais vosssa grandeza

Em tão rusticos trajos disfraçado

Com tanto amor buscais tanta baixeza.

 

Christo.

210  Que disfrace averà que não aceite

Porque hüa alma que busco não me engeite,

 

A todos, quantos vivo me offenderão

Depois de morto, quero defender

Porque do mayor mal que me fizerão

215  Lhe faço o mayor bem que pode ser,

Ainda que meus bës tão mal sofrerão,

Seus males por seu bem quero sofrer,

Os quais por serem bës de quem os fazia

Com gosto de os sofrer os padecia.

 

220  Vay, diras aos meus que jà passou

O trabalhoso, triste, & duro inverno,

Como seu mestre jà resuscitou,

E tirou o poder a todo o Inferno.

 

Magdalena

Com azas deste amor voando vou

225  Onde quereis que vâ, descanso eterno;

Mas quem gostou amor de vosso amor

Então menos se irà quando se for.

 

[]


[1] In Sonetos, Canções, Éclogas e Outras Rimas, compostas por... Conego da Sé de Viseu, natural da cidade de Évora, dirigidas ao illustrissimo & Reverendissimo Senhor Dom João de Bragança, Bispo de Viseu, (Coimbra: na Officina de Diogo Gomez Loureyro, Impressor da Universidade, 1604), fol.46v-48; 156v.-161;