imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas - a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003 |
Soneto - Da Magdanela aos pés de Cristo
Soneto - Da Mesma em busca de Christo
Muy grande agravo faz quem tem cantado,
Louvores, ou quem os vay cantando,
Se avendo de louvar, não diz louvando,
Igual louvor ao ser do que he louvado.
5 Não chega o ser a ser amplificado,
Quando elle a sy se está amplificando
O qual se não se alcança contemplando,
Não se louva depois de contemplado.
Louvouvos Magdalena o Rey do Ceo,
10 A quem com tanto amor amar soubestes,
Que engradeçeo o muyto que sentiste,
Elle he vosso louvor, vosso trofeo,
Pois quanto por humildade a vos deçestes,
Tanto por amorosa a Deos subistes.
Soneto - Da Magdanela aos pés de Cristo
Agoas da culpa fria congeladas,
Por quem navega Deos, pera quem ama,
E a quem o vivo fogo que a alma inflama,
Faz sair pellos olhos destiladas.
5 Da terra vil ao Ceo sois levantadas,
E o Ceo com mais pureza vos derrama,
E convosco do amor puro creçe a chama,
E em vos morrem as culpas afogadas.
Sois as agoas que estais la sobre os Ceos,
10 Pois sobre os pes de Deos ides correndo,
O qual por vos em mï vive, & floreçe,
Regay agoas regay os pes de Deos,
Por que inda que elle em sy não và creçendo
Quanto mais os regais, mais nalma creçe.
Soneto - Da Mesma em busca de Christo
Aquelle amor, que fere, & vay sarando,
Aquelle amor, que sara, & vay ferindo,
Aquelle amor, que o mal vay destruindo
Aquelle amor que o bem vay restaurando.
5 Aquelle amor que pede, & que vay dando,
O mesmo amor, que deu, que foy pedindo,
De mï causa do mal me tras fugindo,
Mas fugindo de mï, meu Deos buscando.
Ferida deste amor vivo morrendo,
10 E morro dü tormento doçe, & esquivo,
Que ora me poem no mar, ora no porto,
Neste bem por que morro, vou vivendo,
Pois sinto deste bem o amor tão vivo,
Que morrendo por elle o busco morto.
Per hum monte deserto
Esteril de boninas
A saudosa, & triste Magdalena,
Se vay, chegando perto
5 Doutras flores divinas,
Em cuja ausencia sofre tanta pena,
Que tem por mais pequena
Morrer com quem vivia
Que viver sem quem ama,
10 E tanto seu amor sua alma inflama,
Que a morte pretendia
Porque o divino amor
Em todo o amargoso poem sabor.
Tão leda de ser triste,
15 Que seu doce tormento
Bastante premio he do que padece,
As dores não resiste
Antes seu sofrimento
Se não padece dores se entristece:
20 Porque como conhece
Que toda a semelhança
He causa do amor
Por ser mais semelhante quer mais dor
E posta leva em Deos a confiança,
25 Que quem em Deos confia
O proprio inferno todo desafia.
Os olhos gotejando
Lagrimas amorosas
Cavão o brando peito, & amoroso,
30 Porque lhe vão lembrando
As dores espantosas
Que por ella quis ter seu doce esposo.
Com animo amoroso
Deseja de morrer,
35 Peraque morta veja
A quem depois de morto ver deseja:
Não cuidando que viva pode ser,
Amor se lhe acrecenta
Porque ausencia da mor, amor augmenta.
40 E tanta pena tem
De nã ter quanta teve
Senhor que por ella padeceo,
Que na alma por mor bem
Com esta pena escreve,
45 Quantas penas por ella Deos sofreo;
E tudo o que escreveo
São dores porque lè
O Senhor que buscava
O qual jà dentro nalma escrito ve,
50 Com tão grande desejo o desejava.
Porque hum amor sobejo
Mil vezes forma a causa do desejo.
E nesta competencia
Com vida vai morrendo,
55 E morre porque vive andando ausente,
E com tanta longa ausência
Não vay desfalecendo,
Porque finge o esposo estar presente:
Assi quase contente
60 Com elle vai falando
Palavras amorosas
Que lhe amor, & a dor vão ensinando
Namoradas da mor, da dor queixosas
E desejando a morte
65 Falava contra a vida desta sorte:
Ah? vida dura, ou fonte de durezas,
Tão enganosa em tudo quanto das,
Que a quem das mays de ti, das mais tristezas
E sendo assim que tu não vens, mas vas,
70 Agora porque te eu desejo ida
Te deixas tu estar adonde estas,
Estando em tal ausencia convertida
Em morte, pello muito que atormentas,
Pois quando es mais penosa, es mais comprida
75 Mil maneiras de mortes me inventas
E a morte não ques dar por não dar bem,
Mas dalla a quem com ella não contentas.
A qual espera verte mais alem
Tu estas esperando, que ella venha
80 Assi nem tu te vas nem ella vem:
E sem que seu tormento se detenha,
Excita o amor que o fogo acenda
A quem a causa delle ajunta a lenha.
Não avera alguem que me defenda
85 De mim, que amim propria não entendo,
Ou quem entenda tanto que me entenda.
A mim de mim comigo não defendo,
Porque me custa tanto a defensão
Que quanto mais a busco, mais me ofendo.
90 Parece que o mar ao coração
As agoas emprestou com que chorasse.
Tão soltas por meus olhos inda vão.
E se chorando tanto descansasse,
Então continuo choro viviria,
95 Que nas agoas dos olhos me afogasse.
Mas folga nelle tanto a fantazia,
Cuidando que será causa do fim,
Que quando se acaba o principia,
E assi comigo jà de desavim
100 De modo que não vivo jà comigo,
Porque vivendo noutrem, morro em mim.
Ah? doce esposo meu, ah? doce amigo
De teus tormentos sò atormentada
Pello rastro do teu sangue te sigo.
105 Assim serâ tal dor remunerada
Que a terra que de teu sangue regaste,
Seja de minhas lagrimas regada.
Com tão imenso amor Senhor me amaste
Que não podendo a dor passar alem
110 Com teu amor allem dela passaste.
Doce descanso meu, todo meu bem
Largay vossa justiça em mim culpada
Dareis a pena a quem a culpa tem.
Que pode ser agloria atormentada,
115 Que pude dar a morte a propria vida?
Que pode a propria luz ser apagada,
Que quiseste verdade esclarecida
Querer alumiar a quem te offendia,
A custa de te ver tão offendida;
120 Contigo faleceo minha alegria
Por ty morrerey sempre inda que viva
Sem ty me segue o mal que me fugia.
Contigo livre fui sendo cativa
Por ty cativa sou, por ty chorando
125 Sem ty me sou mais dura, & mais esquiva.
Contigo vivy sempre em ty cuidando
Por ty só cuido em ser atormentada
Sem ty mil dores hüa está causando.
Contigo vivy sempre descansada,
130 Por ty todo o descanso vou perdendo,
Sem ty me nega o amor quanto me dava.
Porem a viva fè me vai dizendo
Que poderas jà ser resuscitado:
Isto cuidando vou, isto vou vendo.
135 Aviva coração tam desmayado,
Que jà não tës rezão de entristecerte
Pois desta gloria vas certificado.
Se grande pena tive de perderte,
Senhor, & redemptor desta alma minha
140 Mayor gloria terey se chego a verte,
Este o sepulchro he que o corpo tinha
Da quelle divindade esclarecida
Ah, peccadora, vil, triste, mesquinha,
Ay trsite coração, ay triste vida.
145 Choray cansados olhos ver perdido
O tempo, que perdi sendo perdida,
Fazey com vossas agoas tal roido
Que dellas ouça amor o movimento
A cujo tom applique o seu sentido,
150 Suspire, gema, canse o pensamento
Pois cansando merece o que deseja,
E merecendo cumpre o alto intento.
Este corpo imigo tambem seja
O que por este monte và buscando
155 A luz com que melhor seus males veja.
De dia em dia os dias vou passando,
Mas tudo me parece escuridade,
Pois quanto mais me chego, menos ando.
Aonde te acharei luz da verdade
160 Que cansa minha dor de me cansar
Mas para mayor dor ha mais vontade.
Porque parte Senhor te hey de buscar,
pera te achar a ty que te perdeste
Por mim, que sò em ty me posso achar;
165 E jà que por meu mal tanto sofreste,
Chegando ate ao fim onde me amaste,
Não te negues Senhor, pois que te deste.
Teu infinito amor jà me mostraste
E eu este pouco meu te vou mostrando
170 Tu perdido por mim ja me buscaste
E eu perdida por ty te vou buscando.
Christo.
Affligida molher triste, & chorosa
Que queres, ou que buscas, que pretendes;
Magdalena
Responda esta alma triste, & saudosa
175 Se minha tenção pura não entendes.
Christo.
A tenção que te vejo he amorosa
Com cuja causa teu sogeito offendes.
Magdalena
Antes com mor offensa me offendera
Se offensa mayor me não fizera.
Christo.
180 Basta que queres ser atormentada
E que essa tua dor teu premio seja,
Magdalena
Sy porque esta dor he hüa escada,
Por onde esta alma sobe ao que deseja,
E desejando ser asemelhada
185 Querendo que seu bem seu mal lhe veja
Sofre, morre, padece, chora, & sente,
E quando triste està, està mais contente.
Christo.
Enfim que esse teu mal te descansara
Se te dera mor dor,
Magdalena
Se elle ma dera
190 Padecendo mais dor, mais me apurara
Apurandome mais, mais merecera.
Nem com tão duro mal tanto folgara
Se todo mal a bem não me soubera
Que o fogo do amor mo faz tão doce
195 Como se meu pezar, meu prazer fosse,
Dizey por vida vossa se me vistes
O Senhor que sustenta a minha vida;
Ah? lindo amor emfim que me feristes,
E daisme por remedio esta ferida.
200 Ouvy, ouvy Senhor suspiros tristes
Que lançam esta alma triste, & afligïda,
Porque bem sey que em vos tristes suspiros
São como em fraco forte, forte tiros.
Christo.
Maria,
Magdalena
Ay doce amor, doce cuidado
205 Assi escondeis Senhor vossa belleza
De tão vil peccadora namorado
Tão humilde mostrais vosssa grandeza
Em tão rusticos trajos disfraçado
Com tanto amor buscais tanta baixeza.
Christo.
210 Que disfrace averà que não aceite
Porque hüa alma que busco não me engeite,
A todos, quantos vivo me offenderão
Depois de morto, quero defender
Porque do mayor mal que me fizerão
215 Lhe faço o mayor bem que pode ser,
Ainda que meus bës tão mal sofrerão,
Seus males por seu bem quero sofrer,
Os quais por serem bës de quem os fazia
Com gosto de os sofrer os padecia.
220 Vay, diras aos meus que jà passou
O trabalhoso, triste, & duro inverno,
Como seu mestre jà resuscitou,
E tirou o poder a todo o Inferno.
Magdalena
Com azas deste amor voando vou
225 Onde quereis que vâ, descanso eterno;
Mas quem gostou amor de vosso amor
Então menos se irà quando se for.
[1] In Sonetos, Canções, Éclogas e Outras Rimas, compostas por... Conego da Sé de Viseu, natural da cidade de Évora, dirigidas ao illustrissimo & Reverendissimo Senhor Dom João de Bragança, Bispo de Viseu, (Coimbra: na Officina de Diogo Gomez Loureyro, Impressor da Universidade, 1604), fol.46v-48; 156v.-161;