imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Joaquim José Moreira de Mendonça, 1747

A Santa Maria Magdalena convertida seguindo o Christo  Senhor N. ao Calvário

Á Mesma Santa Penitente chorando as suas culpas

Á Mesma Santa, deixando em huma pedra da cova, em que viveo, impresso o seu cadáver. 


A Santa Maria Magdalena convertida seguindo o Christo  Senhor N. ao Calvário [1]

 

Tempestade infeliz no mar do mundo

Errante a Magdalena padecia,

E em tormentas fatal a confundia

Hum caos de vícios só de horror fecundo.

 

5       Da esperança no vento mais jucundo

A nuvem de vaidades já subia;

Entre mil ondas já se submergia

De culpas em Oceano profundo.

 

Sahio o Sol divino, e da tormenta

10     Applacado o furor, q açoçobravaa,

Por norte a sua luz seguir intenta:

 

Taboa o Sacro Madeiro lhe formava,

Onde ficou da morte a vida isenta,

Onde a memória do milagre grava.

  


Á Mesma Santa Penitente chorando as suas culpas

 

Romance.

Ao mundo toda se oculta

Magdalena Penitente,

Que como pecou por vista,

As vistas do mundo teme.

5       Os horrores de huma cova

Amante habita contente,

Que assim entre sombras tantas

Da graça as luzes pertende.

Às alegrias do mundo

10     Só a Solidão prefere,

Por lograr nesse retiro

A companhia celeste.

Em hum campo solitária

Mil incommodos padece,

15     Mas os tormentos pesados

o seu amor lhe faz leves.

No mais tormentosos inverno

se expõe ao rigor da neve,

Porque do seu peito o fogo

20     Este matyrio não teme.

Também os Rayos do Sol

Sem tormento algum recebe,

Porque aos amantes suspiros

Todo o seu alívio deve./

25     Entre aquellas brenhas pardas

Os brutos já lhe obedecem,

Rendimentos tributando

A quem já cultos merece.

A melhor transformação

30     Este retiro lhe oferece

Pois quanto já foi humano

Em divino se transfere.

De lagrymas em diluvio

Submergir culpas pretende,

35     E dos cabellos nas ondas

Chuva de perolas desce.

Como esta lá sobre o Ceo

O Mar da graça na enchente,

Quer que as lagrymas em rios

40     Corrão para o Mar celeste.

Nesta violência de amante

Acreditar-se pertence;

Pois artifícios do amor

Fazem subir as correntes.

45     Transformar póde em jardim

Aquelles campos agrestes,

E com lagrymas de amor

Amantes flores so crescem.

No dourado Heliotropio

50     Quando do Sol a luz segue,

Alli, exemploo de amantes,

Finezas mil se percebem. /

O Jacinto amante alli

com mil penas emmudece,

55    [...] se sentimentos calla,

Os ays nas folhas repete.

Alli se vê melhorado

O Amor perfeyto alegre,

Para que seu nome amante

60     Agora mais se celebre.

Mil bellas flores amantes

Mostrão as campinas verdes,

Pois alli novo prodigio

He amor quanto florece.

65     Como Amor a vio despida

Com muita riqueza a veste,

Pois de seus cabellos aureos

Bellas roupas de ouro tece.

No seu penitente Corpo

70     Continuos golspes  repete,

E neste amante rigor

Não permite amor que cesse.

He possivel pois que o amor

Pertenda em espaço breve

75     Que em mil gotas de seu Sangue

Minas de rubins despreze.

Neste tormento que intenta?

Tirar-lhe a vida pertende?

Não, que durando o martirio

80     O merecimento cresce. /

Pois logo este castigo

O seu rigor que consegue?

Que entre tormentos amantes

Martyr de amor se conf[esse]

85     Alli Aguia perspicaz

Ao Divino Sol se atreve

Registar rayos de gloria

Em extasis pouco breves.

As contemplações amantes

90     Os sentidos lhe suspendem,

Porque seu Divino Amado

He poderoso Iman delles.

Tem muitas vezes no dia

A gloria de Deos presente,

95     Que as suas grandes virtudes

Tão grande prémio merecem.

Se no mundo peccadora

Foy escandaloso da gente

Sempre será no retiro

100   Exemplar de Penitentes.

 


 Á Mesma Santa, deixando em huma pedra da cova, em que viveo, impresso o seu cadáver.

 

Desta pedra na dureza

Magdalena pertendia,

Esconder-se á luz do dia,

Ou sepultar a belleza:

5       Se pois nesta amante empresa

Não conseguiu a victoria,

Fabricou desta memoria

Da penitência mayor,

A empenhos do seu amor

10     Um padrão da sua gloria.

 

[]

 


 [1] apud. F. A. da Assumpção, Vida Da Fenis Da Penitencia S. Maria Magdalena, Assombro Dos Desertos e Exemplar Dos Anacoretas. Historia Panegyrica Ornada Com Todo o Genero de Erudiçäo Divina e Humana. Oferece-a a Jesus Christo Crucificado, Seu Autor.. Da Sagrada Ordem Dos Pregadores (Lisboa: Na Off. Alvarense, 1747).