imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Tratado da maravilhosa conversão da madalena... [1]

       Critérios de transcrição

 


 Ao leitor

 

Se entrando num jardim mui deleitoso,

terras fartas de ver a fermosura

do campo, esmaltado da verdura

qual rosa, qual jasmim, cravo cheiroso

 

Aqui verás leitor, se curioso

um jardim e vergel de tal frescura

que as Musas do Parnaso, por ventura

dirão não haver visto mais fermoso.

 

O lírio tens aqui da castidade

o cravo da afeição, rosa de amor

com flores mais que dão suavidade;

 

Nota pois tudo bem, sábio leitor

que quem de couzas tem tal, na verdade

que tesouros pode achar de mor valor?

 

             *    *    *

 

... triunfo serve a tua vitória

a qual, sem dura guerra não se alcança

o amor, Madalena, foi a lança

com que venceste guerra tão notória.

 

Sempiterna será tua memória,

e sempre viverá sem ter mudança

nos homens, e nos Anjos, a lembrança

de tanta fortaleza, e tanta glória.

 

O céu, por teus trabalhos, te tem dado

prémio, de que agora estás gozando,

que quem tão bem peleja, dom merece.

 

A tua alma não tem algum cuidado

senão daquele amor que estás amando

paga de teu amor, teu interesse.

 

 


 

Tratado da Maravilhosa

Conversão da Madalena

e das mais graves tenta-

ções que teve do demónio

 vai em modo de diálogo

 

Autor

 (1)

 Na manhã mais clara, e mais serena

de quantas jamais viu a redondeza

a Madalena s’atavia e ordena

pera dar ao mundo mate com beleza.

E, qual aurora bela e mui serena

fazendo vai nas almas grande empreza,

que a força de seus verdes olhos belos

cativos deixa quantos ousam vê-los.

 

(2)

... as Vaidades enlevada

... cheiros e perfumes mais se apura

... ser de muitos loucos cobiçada

a quem nunca perdoa a fermosura

De pensamentos vãos acompanhada,

a muitos vai fazendo guerra dura

roubando-lhes vai alma e sentidos

ficando só de vê-la bem perdidos.

 

(3)

Ia com tanta graça e tão airosa

mostrando mil efeitos amorosos

com que roubava a graça a toda a rosa

a frescura aos campos deleitosos.

Esquecida de si, mas desejosa

de dar vista de seus olhos fermosos

por ruas, e por praças vai passando

a todos, e quantos vê vai namorando.

 

(4)

Entra no sacro templo como estrela

com tanta fermosura e tal beleza

que todos logo põem os olhos nela

espantados de ver tal gentileza:

Mas o divino sol, cuja luz bela

resplandecia já na redondeza

vendo aquel’alma cega e tão perdida

dar-lhe luz, e graça não duvida.

 

(5)

Sucede à Madalena, nesse dia,

o que nunca alcançou seu pensamento

por que, nas mesmas redes que trazia,

ficou enredada em um momento:

Com redes d’amor, almas mil prendia

E nisto ganha seu contentamento

com redes d’amor fica agora presa

em que cuidou meter mui larga despesa.

 

(6)

Oh meu Deus, oh meu Deus soberano

como curais tudo sabiamente,

pois segund’o mal do peito humano,

lhe dais o remédio equivalente:

Não via a Madalena o seu engano,

mas vós lho mostrais logo claramente

se do mundano amor ferida vinha,

de amor divino leva já mézinha.

 

(7)

Os seus divinos olhos pôs Deus nela,

tirando-lhe a cegueira que trazia

e mostra-lhe que estava pouco bela,

mui feia, morta, cega e fria:

E tendo-a ferida com aquela

luz, que lhe mostrou bem quão mal vivia,

seu frio peito logo foi vencido

e de seu puro amor enlouquecido.

 

(8)

Mas sua fugitiva fermosura

que tão linda aos olhos se mostrava,

era engano certo, que a alma escura

mui feia, cega e triste sempre andava.

Defunta já estava já na sepultura,

que a fera e eterna morte rodeava

pois sete feros monstros n’alma tinha

os quais servia, amava e mantinha.

 

(9)

Já seus divinos raios derramava

O Deus mortal coberto e revestido,

aquele Sol divino que inda estava

no mundo dos mortais desconhecido:

Qual sol por antre nuvens já lançava

Seu raio em vivas chamas encendido

com que toda a dureza abranda logo

E frio é tornado em Vivo Fogo.

 

(10)

Qual caçador que leva seu destino

na caça que persegue sem repouso,

tal anda o caçador manso e benigno

da caça que prossegue desejoso.

O desejo que mostrava de contino

era dar a cegos vista, e o leproso

curar - a mortos dar eterna Vida

Mercê grande, e de nós mal merecida.

 

(11)

No templo estava já resplandecendo

com a luz de seus sermões e sã doutrina,

com raios rutilantes desfazendo

astúcias em que estava a gente indigna.

Pera ele a Madalena vai correndo,

e nele fazer presa determina

no templo onde o povo junto via

do que contentamento recebia.

 

(12)

Ah quantas Madalenas acharemos

hoje no mundo: ah grande Vaidade

tão más como esta que aqui temos,

entregues a seu querer e liberdade.

Olhemos pera os templos e veremos

que fundamentos os leva, que vontade

senão uma vã glória, um pensamento

que em fim acaba, e leva o vento.

 

(13)

Não falo das honestas, generosas

a quem a lei, e fé, e sangue obriga

a serem sempre castas, virtuosas,

nem é justo do bem que mal se diga.

Porque estas tais são pedras preciosas

a quem sujar não pode a língua imiga

antes é mui justo que s’engrandeçam

com louvores tais que não pereçam.

 

(14)

Querendo comer mel, amor, um dia

às colmeias se foi mui atrevido,

mas como andava nu, e nada via,

das abelhas foi todo bem mordido.

Chorando a grande dor que padecia

atrás se torna logo mui sentido

a mostrar vai correndo sua mágoa

a Vénus com seus olhos cheios de água.

 

(15)

Agora verá filho, lhe dizia

a fermosa Vénus com brandura,

a pena e grande dor que n’alma cria

quando aferra tua seta dura,

pois, quem tantos fere com porfia,

quem tantos lastimou[2], sempre procura

que sinta alguma ora dor e pena

a justa rezão assim o ordena.

 

(16)

Não merece colher o doce fruto

quem d’amargura nunca tem gostado

estima quem não tem o rosto enxuto

o gosto que por coro tem comprado,

lágrimas, dor e pena são tributo

com que se paga o doce cobiçado

não se preza muito o bem que se alcança

sem trabalho, pena e esquivança.

 

(17)

Andava a Madalena qual Diana

quando as montanhas  trácias frequentava

seguindo a loba não, nem tigre africana

mas almas amorosas que roubava.

Ah, quantas fere mal, quantas engana

com a vã fermosura que levava

com mui forçosa mão, todas consigo

sem verem seu engano nem perigo.

 

(18)

Oh divino Senhor, rei poderoso

quão profundas são, quão milagrosas

as obras com que sois maravilhoso

pois tidas são em si mui poderosas.

Vós em todas sois mui amoroso,

E todas são d’amor mui grandiosas

em todas resplandece qual sejais

pelo grande amor que nos mostrais.

 

(19)

Tal vai a Madalena mui rendida

a seu desonesto amor, amor mundano

buscando sabor nele vai perdida

sem ver (tão cega vai) seu grande dano.

Mas sendo d’aguilhões doces ferida,

vê logo claramente seu engano

o qual não vira nunca se não fora

ferida d’amor algu’a hora.

 

[Falta um fólio (estrofes 20 a 23); presume-se que o seguinte abra com a continuação de uma fala do «Autor» a comentar um sermão de Cristo.]

 

(24)

Um sermão fez mui alto e mui subido,

em que todos os vícios repreendia,

ameaça o vicioso esquecido?,

as virtudes somente encarecia:

ao torpe  desonesto e perdido.

E em vaidades gasta noite e dia,

dizia o clementíssimo Senhor

com palavras procedidas de amor

 

Cristo

(25)

Desonesto, em que empregas teu sentido?

que segue teu desejo e pensamento:

quem traz o seu juízo tão perdido

não vês que és pó e cinza e leve vento?

Quem te leva após si tão esquecido?

Quem faz que busques aqui contentamento?

Olha que vais errado como cego

se pretendes no mundo achar sossego.

 

(26)

Como não vês, pobre homem, teu engano

que deuses são os teus a quem adoras

não vês que foge o dia, o mês, o ano?

Não vês que foge a vida co’as horas?

Ah, triste sem juízo, vê teu dano

que tais riquezas são perecedoura

alarga terra, a terra, a mesma terra

não te vejas depois em dura guerra.

 

(27)

Ai de vós, ai de vós, homens sem siso

em que andais? Em que pondes os cuidados?

Não sabeis que há morrer, e que há juízo?

E todos haveis de ser julgados!

Pois eu vos admoesto e vos aviso

que façais penitência dos pecados

com dor de coração, com amargura

antes que venha a morte fera e dura.

 

(28)

Olha bem que a quem te deu riqueza,

a quem te deu tão rara fermosura

mostrar ingratidão é grã baixeza:

E ofendê-lo com ela é couza dura,

não sabes que essa tua gentileza

mui cedo se verá na sepultura

e tua alma arderá no fogo eterno

por ter tão ofendido o sempiterno.

 

Autor

(29)

O peito desta dama foi ferido

com um temor grande do que ouvira

Que os vivos, que Deus tinha repreendido

claramente em si todos os vira;

Já perde a cor do rosto e os sentidos

e corrida de si já se escondia

já cobre a bela face que ind’agora

estava de mil almas vencedora.

 

(30)

De sua vaidade pesarosa,

da vida mal gastada mui corrida,

de seu descuido grande mui queixosa

se mostra descontente e arrependida.

Confusa está de si, e vergonhosa,

e propõe de fazer mui nova vida

pedindo no secreto do seu peito

remédio, a quem o tem já sujeito.

 

(31)

Já chora amargamente suspirando

já geme, já soluça, e se lastima

já as liquidas pérolas vão regando

aquelas faces tidas em tanta estima:

Seus suspiros mil almas lastimando

estão: mas ela todas desestima,

já se cobre corrida e lança em terra

aquela que fazia a todos guerra.

 

(32)

Já os verdes olhos belos não levanta

que em fontes de cristal tem convertidos

destilando vai deles água tanta

que move à compaixão quaisquer sentidos:

O mundo já talvez muito se espanta

confuso está de ver tantos gemidos,

com quantos o céu puro vai rompendo

chorando, soluçando e mais gemendo.

 

(33)

Não sabe quando já fora se veja

do templo: pera dar lugar ao pranto,

pois não vê couza ali que lhe não seja

motivo de vergonha e mor espanto.

Em sua casa já ver-se deseja,

pera ela vai coberta com seu manto

por que já dado fim ao sermão tinha

aquele que a todos é mezinha.

 

(34)

Já julga por mui largo e mui comprido

o caminho que dantes parecia

tão curto a seu desejo, que perdido

por ali tão pouco há, perdido havia.

O amor leva seu peito mui ferido

o coração de dor e de agonia

e alma leva cheia de tormento

nascido de um triste pensamento.

 

(35)

Já caminhando vai, mui apressada

nada lhe põem diante impedimento

que n’alma vai ferida, e mui chagada

e todo vagar lhe é grande tormento.

De si fugindo vai mui lastimada

que n’alma leva pena e sentimento

de sua mal gastada e torpe vida,

da qual mostras dá de arrependida.

 

(36)

Qual cerva ferida que correndo

em busca vai da fonte conhecida

por dar remédio ao mal que vai sofrendo,

gastada quasi toda e consumida:

Tal vai a Madalena, pretendendo

de reparar nas águas sua vida,

que vida com tais vícios maculava

convém-lhe em muita água ser lavada.

 

(37)

Das águas de seus olhos determina

fazer um largo banho e banhar-se

E deles água lança tão contina

que dela pode um rio bem gerar-se:

Ah, peito generoso quem te ensina

que pode tua vida reparar-se

nas fontes cristalinas desses olhos

que lágrimas manando vêm a molhos.

 

(38)

Mas não m’espanta já banhar-se em água

uma alma cujo peito convertido

está já noutro Etna ardente frágoa

que causa amor, dor, choro e gemido:

Se é grão sinal de amor a muita mágoa

que mostra ter, de ter Deus ofendido

E da mágoa que pena lhe está dando

estar banhada em água, e soluçando.

 

(39)

Ah, lágrimas suaves, venturosas

quão certo remédio sois, e que triaga

das feras mordeduras venenosas

com que a serpente antiga as almas chaga,

sois em o alto céu mui preciosas

convosco se repara quanto estraga

nas almas, o maligno, com engano

que sempre anda buscando o dano.

 

(40)

As almas que mais andam maculadas

de vícios e torpezas alimpais,

por vós são nossas almas superadas

E a justiça divina mitigais:

As almas que por vós são navegadas

a bom porto seguro as levais

por vós é Deus movido à piedade,

e perdoa qualquer falta e maldade.

 

(41)

Que peito pode haver tão fero e duro

que lágrimas não movam à brandura!

Lágrimas abrandam e tornam puro

o céu: e clara tornam a noite escura:

As lágrimas são torre e forte muro,

em que alma se defende e está segura

se muito podem lágrimas na terra,

mais podem no céu, com sua guerra.

 

(42)

Lágrimas vão rompendo os elementos,

pelos céus cristalinos vão passando,

não param de chegar aos aposentos

donde  Deus está tudo contemplando:

Nossas necessidades e tormentos

de contino lhe estão apresentando

E Sara nos dirá, e o bom Tobias,

que lágrimas são mui seguras guias.

 

(43)

David em Israel rei escolhido,

com lágrimas choradas abrandou

o peito do Senhor dele ofendido,

e perdão de seus erros alcançou;

e Pedro que se via arrependido,

por negar ao bom mestre que negou

por lágrimas choradas de contino

o céu lhe foi propício e benigno.

 

(44)

Pecador que estás sujo e maculado

de vícios, e pecados, e mil mágoas

mostra dor, e pesar, e tem cuidado

de vir à Fonte pura destas aguas:

Vem logo, e ficarás purificado

qual sói ficar o ouro em vivas fráguas,

que lágrimas apuram, e fazem belas,

a todos os que se vêm lavar em elas.

 

(45)

Neste pranto ia toda consumida

mostrando quanta pena n’alma sente

aquela pecadora cuja vida

em vícios foi gastada cegamente:

Chorando vai mui triste e arrependida,

da vida que gastou tão torpemente,

nem busca já alguns contentamentos

senão suspiros, prantos e tormentos.

 

(46)

Depois que à sua casa foi chegada,

se foi recolher só num aposento,

em água de cristal toda banhada

onde melhor chore seu tormento.

Aqui de sua dor mui lastimada,

de seus vestidos ricos num momento

se despe, e diz às jóias e toucados

em outro tempo dela tão prezados.

 

Madalena

(47)

Tirai-vos lá falsas louçainhas,

invenções de Satanás,  só inventadas

em que mil almas míseras, mesquinhas

se enlevam de si mesmas descuidadas:

Tirai-vos lá toucados e vasquinhas

de pérolas custosas bem lavradas

por que corpo tão sujo e fedorento

não merece trazer tal ornamento.

 

(48)

E vós, cabelos louros tão prezados,

em que meus dias todos ocupava

pera serdes mais fermosos e dourados,

com que tantos mundanos enganava:

Já d’hoje por diante desprezados

vos vereis: de quem tanto vos prezava,

que quem de cousas  vãs foi instrumento

bem é que também o seja de tormento.

 

(49)

Já não sereis de unguentos preciosos

como dantes ungidos, nem curados,

nem de toucados ricos curiosos

com arte, e com cuidado, bem toucados;

E pois lhe fostes vãos e enganosos,

sereis de minhas unhas arrancados;

E laços em que tantos se prenderam

que paguem com tal pena mereceram.

 

(50)

E vós, olhos, por meu mal tão graciosos,

em vaidades dantes ocupados,

em prantos vos tornai mui copiosos,

por que possais lavar bem meus pecados.

De quão alegres fostes já, chorosos

vos tornai; por que fostes descuidados,

dando entrada na alma a cruel morte

que a vida me roubou com braço forte.

 

(51)

Não quero que vejais já cousa algu’a

das que vãmente vistes algu’hora;

Mas quero que cegueis, e se consuma

nosso costume mau não vendo agora:

que (quem não viu, vendo) cousa nenhuma,

ser cega e nunca ver melhor lhe fôra;

e pois não vistes mais que vaidade,

perdei de ver agora a liberdade.

 

(52)

E vós, tornai-vos surdos meus ouvidos,

tão prontos pera ouvir brandos enganos,

que tanto me enganavam meus sentidos,

que n’alma me meteram muitos danos:

Não me fora melhor ter-vos perdidos,

que ver que tendes dado, tantos anos,

Aos brandos assobios da serpente

que nunca diz verdade, e sempre mente?

 

(53)

Em lugar dos requebros amorosos,

em lugar do suave e doce canto

com que no mundo fostes tão viçosos

gemidos ouvireis e triste pranto.

suspiros ouvireis, mui lastimosos

que vos porão temor e grande espanto

e bem é que quem fez tantos enganos

padeça sempre muito graves danos.

 

(54)

De ledos vos tornai, meus olhos, tristes

pois n’alma não meteste, tão sem tento,

todas as vaidades quantas vistes

fazendo em todas elas fundamento?

E pois, com cousas vãs, sempre seguistes

o meu mais vão, cego pensamento;

não é justo ver cousa alguma

mas que um triste pranto nos consuma.

 

(55)

Bem é que não vejais cousas humanas,

pois merecestes vós a luz divina

que as mais são só vãs, falsas e profanas

esta mui clara, certa, e mui benigna:

Está lá nas alturas soberanas

alumia cá na terra  e nos ensina

o caminho do céu, sereno e puro

e livra do inferno triste e escuro.

 

(56)

Quanto mais que, quem tal som ouviu,

quem ouviu tão suave melodia,

quem dentro n’alma tal som sentiu,

não deve sentir lá outra alegria:

E pois ele vos sofreu, e não puniu,

esperando vossa emenda cada dia;

Não é justo que ouçais cousas humanas,

tendo ouvido tais, tão soberanas.

 

(57)

E vós,  narizes meus, tão cobiçosos

de cheiros e perfumes delicados,

agora sentireis quão enganosos

sempre foram vossos vãos cuidados:

Buscáveis cheiros bons, e deleitosos

e neles como cegos ocupados

não víeis os maus cheiros e perfumes

de vossos mui torpíssimos costumes.

 

(58)

Do cheiro que buscáveis com engano,

um cheiro mui ruim estáveis dando,

deste s’estava sempre afastando:

Pois se fugir queríeis tão grave dano

convém-vos outro cheiro ir buscando,

cheiro de virtude e castidade

pera que assim purgueis vossa maldade.

 

(59)

Que tu, língua minha, foste instrumento

de lascivas palavras ociosas

e de brandos requebros fundamento

da perdição de almas amorosas:

Teus enganos falsos, teu fingimento

são a causa destas queixas lastimosas;

Ah quanto melhor fora seres muda,

ou mais severa, grave e mais sisuda.

 

(60)

Cuidavas que vencias bem falando,

mas então tuas falas descobrias

Que devêras encobrir, sempre calando,

ou pesar as palavras que dizias:

Que bem fala aquilo que, obrando,

ensina a deixar vãs palavrias;

E pois nunca aprendeste a calar-te

agora calarás em toda a parte.

 

(61)

E tu, ventre cruel, apetitoso

inventor de manjares delicados,

de mimos e regalos cobiçoso

de mil doces bocados concertados:

Agora sentirás quão desgostoso

é o gosto em que punhas teus cuidados,

Que se gosto te davam iguarias,

desgosto te darão noites e dias.

 

(62)

Em cuidar que te tinha farto e cheio,

pera ti mil bocados inventando,

fico fora de mim, toda me enleio,

pois um tão fero imigo fui criando:

Quanto mais te metia no meu seio

tanto mais contra mim te ia armando;

E em paga de poupar tal inimigo

A vida tenho posta em perigo.

 

(63)

Ah, engano grande, no mundo usado

Que buscam para o ventre mil manjares

fazendo seu inimigo esforçado

donde lhe soem nascer tantos pesares:

Pois quem quiser ter sempre sopeado

este inimigo fez em mil milhares,

não lhe deixe criar força, nem armar-se

por que assim não pode rebelar-se.

 

(64)

Que as mãos minhas, sempre perfumadas

de cheiros, tão cobertas de branduras,

tão mimosas de mi, tão estimadas

tão ocupadas em minhas vestiduras:

Pois que a mimos brandos fostes dadas

ásperas vos tornai, cruéis e duras;

E pois fostes de maldade instrumento,

agora o sereis de meu tormento.

 

(65)

Não servireis a falsa fermosura

com os ricos vestidos que vestindo

andáveis neste corpo sem ventura

que tanto m’andou sempre perseguindo:

Mas, em lugar dos mimos e brandura,

o castigo lhe anda sempre servindo

por brandas sedas lhe dareis cilícios,

que este quero que seja justo ofício.

 

(66)

De vós, meus pés, me irei sempre queixando

mui triste, descontente, e magoada

por que sempre convosco andei errando,

E me trouxestes sempre mui errada:

Não me fora melhor estar louvando,

recolhida em minha casa encerrada?

Isto é o que convém a dama honesta

que o demais é soltura manifesta.

 

(67)

De pérolas cobertos e calçados

andasteis: tudo o mais desprezando,

tantos mimosos de mi estão poupados

indo-me à morte sempre encaminhando:

Vós perdidos sempre, sempre errados,

andaste-me da vida trasmontando,

E quem segue tal caminho perde a vida.

a qual de todo tínheis já perdida.

 

(68)

Ai de mi, onde tinha meu sentido,

olhai onde trazia o pensamento,

não vias, ó mulher, a quão perdido

caminho te levava teu intento?

De mundo tão imundo e sementido

em cousas vãs fazias fundamento

torna sobre ti mulher perdida

e cobrarás de novo nova vida

 

(69)

Que vida foi a tua pecadora?

indigna de viver, de morrer digna,

má mulher, de ti mesma matadora.

Que cegueira foi esta, tão maligna,

que conta de ti tens dado, ofensora

daquela majestade tão divina,

diz da pureza que guardavas?

A que Deus servias? Quem adoravas?

 

(70)

Ai triste de mi, ai mulher perdida,

mulher abominável, sem juízo,

de mulheres afronta conhecida,

e de todas as castas prejuízo:

Má mulher: sem saber, sempre esquecida

de sua salvação; sem nenhum siso,

onde trazias, diz, os teus cuidados

que esperavas de intentos mal fundados?

 

(71)

Onde trazias, diz, o pensamento,

qu’é da vergonha honrosa que guardavas

de peitos feminis próprio ornamento

se de teu nome e fama, e fama não curavas:

De que fazias triste fundamento?

Que das torres do vento que fundavas

entende que fundaste torpe fama

que pelo mundo todo se derrama.

 

(72)

Lágrimas que fazeis, que não brotais

manando destes olhos como fontes!

E vós suspiros d’alma, onde estais

Que não saís rompendo os altos montes?

Saiam de meu duro peito tristes ais,

meus gemidos ouçam os horizontes,

acabem d’estilar meus olhos águas

acompanhando sempre minhas mágoas.

 

(73)

Ah! peito mais que pedra, endurecido,

como não se abranda já tua dureza

que parecias estar todo convertido

em mármore mui duro na frieza?

Abranda que mostrar-se empedernido

não é esforço não, mas é bruteza;

Larga a rédea já a meus gemidos

que com dureza tens tão impedidos.

 

(74)

Saí,  suspiros tristes, das entranhas

com tão comprido pranto e tais gemidos,

que feras se lastimem, e montanhas

e se entristeçam os campos floridos:

Seriam vossas mágoas tão estranhas

que mágoa de vós tenham os nascidos

acabai de sair, dareis alento

à grave pena e dor que n’alma sento.

 

(75)

Não quero que me deis algum alento

na dor que estou sentindo, dura e forte,

mas quero que não cesse meu tormento

e nele a vida passe até à morte;

Que quem tão mal gastou tão grão talento

em vida vã, levada por seu norte,

por justo galardão, e interesse,

a morte, e toda a pena, bem merece.

 

(76)

Não cesses de chorar, geme e suspira,

desonesta mulher que, porventura,

com lágrimas, cessava a justa ira

que vingança de ti pede e procura:

Se teu erro no mundo não se vira,

não fora minha dor tão fera e dura

mas erros no mundo manifestos

a Deus e a homens são molestos.

 

(77)

Não cesseis de chorar olhos cansados,

o tormento cruel que esta alma sente,

que pois em ver não fostes moderados

chorai sem moderação eternamente:

Mostrai-vos olhos meus mui lastimados,

chorai vosso descuido amargamente,

chorai sem dar descanso, nem alento,

a tão contino mal e tal tormento.

 

(78)

Correi lágrimas minhas, correi tanto

que abram todo o mundo vossas águas,

que fique eu satisfeita de tal pranto,

em o lavrar gritando tantas magoas:

Correi lágrimas minhas, ponde espanto

com vossa grã corrente às altas fráguas

donde nascem e correm de contino

mil fontes de cristal mui puro e fino.

 

(79)

Pagai à dor tão grande grã tributo

não cesseis de estar sempre banhando

nunca de vós meu rosto seja enxuto

não canseis d’estar sempre manando:

De vós não quero colher outros frutos,

que estardes ao céu manifestando

a mágoa, dor, pena e tormento

que, de ter tão mal vivido, n’alma sento.

 

(80)

Aparta-te de mi, oh vida triste,

que fazes vida tão má aqui comigo?

aparta-te de mi, pois não fugiste

o mal que te trouxe a tal perigo:

Acaba, pois meu mal nunca sentiste

deixa-me que não quero estar contigo,

que mais me vale morrer sem tal consorte

pois sempre m’encaminhas pera morte.

 

(81)

Deixa-me, vida, indigna de ter vida

que vida tão vã e mal gastada

com rezão deve ser aborrecida

e sempre perseguida e maltratada:

Vai-te ao eterno fogo, alma perdida

a que te têm teus erros condenada,

que bem convém arder em fogo eterno

quem tem tão ofendido o sempiterno.

 

(82)

Ali terás o prémio das maldades

que, contra teu ser, tens cometido;

Ali se verão tuas vaidades

em que sempre ocupaste teu sentido;

Ali sempre terão eternidades

a pena que tens, e mal crescido.

E bem é que padeças mal tão forte

pois a vida deixaste pela morte.

 

(83)

Não cuides vida mais que alguma hora

de mi serás tratada brandamente,

porque a dor que nesta alma triste mora,

tratar-te com brandura não consente:

E tanto me aborreces que já’gora

tormento em te suster minha alma sente;

Vai-te daqui maldita, que me queres?

Se meu favor pretendes, não no esperes.

 

(84)

Que me fica, vida, em te perder perdendo?

Que posso estar de ti triste esperando?

Sabes, ó mísera vida, que estou vendo?

Que com perder-te fico mais ganhando:

A vida que me foi sempre metendo

na morte, tantos males inventando,

não recebo, em perdê-la, algum perigo,

antes ganho em perder este inimigo.

 

(85)

Onde me esconderei que me não vejam,

porque de ver-me eu mesma estou corrida

onde estarei segura que não sejam

meus erros manifestos em a vida:

Acaba vida nefanda, que me pesam

os anos que vivi cega e perdida;

Acaba de acabar-me, ó dura morte

que me corro viver já desta sorte.

 

(86)

Ó, quão ditosa fora se morrera

no dia que nasci, e nunca o vira

por qu’assim, a meu Deus nunca ofendera,

nem esta dor que sento, não sentira:

Nunca erros tão enormes cometera;

Isto chora minha alma, isto suspira

por que em muito viver mais se ofendeu

os homens na terra, e a Deus no céu.

 

(87)

Dos céus que me estão vendo, estou corrida.

da terra, esconder-me assaz desejo,

de ser de tantos vista, estou sentida,

que isto já pera mi é mal sobejo:

Tomara nunca ver, nem ser nascida

porque me da tormento quando vejo,

os olhos com que vejo me aborrecem

e os céus de ver-me se escurecem.

 

(88)

Não fora tão ditosa minha sorte

como daqueles todos que, em nascendo,

lhe rouba a vida logo a dura morte,

antes que a tal Deus perder vivendo:

Não fora tão cruel, tão dura e forte

a pena que minha alma está sofrendo,

a causa da qual, se a vida larga

o quanto mais se estende, mais s’estraga.

 

(89)

Cessem já todos meus contentamentos,

cessem meus vãos prazeres tão buscados,

recolhei-vos perdidos pensamentos

que não convém andar tão espalhados:

Convertam-se meus gostos em tormentos,

não vivam já nesta alma vãos cuidados,

que quem sempre viveu tão largamente

bem lhe convém chorar eternamente.

 

(90)

Quem tão bom Senhor tem ofendido,

quem deve quanto eu estou devendo,

pera cobrar o bem que tem perdido,

a tudo se deve estar oferecendo:

Mostra-te coração arrependido,

teus gostos deixando, e não querendo

já cousa que te dê contentamento

se não chorar vivendo teu tormento.

 

(91)

Apartai de mi vãs alegrias,

não se veja em mi senão só pranto,

nem vejam já meus olhos ledos dias,

mas todos lhes causem pena e espanto:

Lágrimas me sejam doces e pias,

a morte bom refugio, mas enquanto

se detém, não cobrindo meus cuidados,

não cesseis de chorar olhos cansados.

 

(92)

Ai, meu Deus, Senhor a quem confesso,

por quem esta alma minha já suspira,

e sempre suspirara se tal preço

qual tem o vosso amor em si sentira:

Se dantes conhecera o que conheço,

nunca minha alma cega s’impedira

com vão amor do mundo desonesto

engano da minha alma manifesto.

 

(93)

Ai, meu bom Deus, meu pai, meu redentor

que cegueira era a minha, pois não via

que vossa clara luz, e resplendor,

a terra, mar, e céu, sempre alumia:

Que dureza era a minha, meu Senhor!

que os golpes de amor vosso não sentia,

quem me apartou de vós com tal engano

fazendo-me seguir tão grave dano.

 

(94)

Que de vós, meu bom Deus, sempre fugia,

e vós, após mi íeis bradando,

quando de vós fugir mais pretendia,

tanto vos vínheis mais a mi chegando:

Se de vós fugindo me escondia,

vós me andáveis, meu Deus, sempre buscando,

e fugindo de vós, amor divino,

vós me chamáveis mais, dizendo de contino:

 

Cristo

(95)

Ah, cega pecadora, não te fies

do mundo, pois te anda enganando;

Mas vem-te pera mi, não te desvies,

pois sabes que a ti ando buscando:

Madalena acaba, não porfies,

não te queiras andar sempre ausentando;

Olha de quem foges, cega pecadora

que da vida vais fugindo de ora em ora.

 

(96)

Torna sobre si teu pensamento,

acaba de deixar tão grande engano,

em cousas vãs não faças fundamento;

não se te siga daí tão grave dano:

acaba de seguir teu cego intento,

acaba, deixa esse amor mundano,

que é mau, sem proveito e enganoso,

e a quem o vai seguindo mui custoso.

 

(97)

Oh cega, quem te cega, quem te engana

e quem te traz de ti tão apartada?

Não sejas, Madalena, desumana;

Ah, torna sobre ti, que vais errada:

Deixa a vida que segues, que é mundana,

e te traz após si tão enganada,

acaba de seguir teu mau caminho,

toma repouso já neste meu ninho.

 

(98)

Não vez que após ti ando de contino?

Oh, não me fujas, espera, espera,

acaba, deixa, cega, teu destino,

atenta já por ti, não sejas fera:

Olha este brando peito, tão benigno

que cheio de amor vem da alta esfera;

Ah, não fujas de mi: por que me foges?

Acaba de me ouvir, e não me anojes.

 

(99)

Não vez que, sendo Deus tão poderoso,

dos altos céus eterno criador,

por ser de condição mui piedoso

tomei forma de servo pecador:

Quem já mais se mostrou tão amoroso

que assim se desprezasse por amor?

Quem já mais perdeu a vida, por dar vida

a quem de todo a tinha perdida?

 

(100)

Não sabes que, por ti, dos céus à terra

desci: só de salvar-te desejoso?

Digno pois de amor é quem se desterra

só por ser clemente e piedoso:

Não vês que com fugir me fazes guerra

com que me trazes sempre mui queixoso?

Olha que por ti venho dar a vida

pera que a terra seja redimida.

 

(101)

Olha que, por te dar vida, me dispus

a padecer afronta e morte dura,

com outros mil opróbios, numa cruz,

sendo Criador eu da criatura:

Cobri-me de negra sombra por dar a luz

a quem viveu sempre em noite escura.

Olha pois, Madalena, que merece

quem por amor de ti tanto padece.

 

(102)

Que quem tudo isto vê, e não responde,

parece que me vai já desprezando

e bem mostra ser assi pois se esconde,

fugindo as costas me vai dando:

Ah espera, Madalena, espera já onde

te vês, perdida e cega, caminhando,

ah, torna sobre ti, torna e verás

que fora deste caminho errada vás.

 

(103)

Tantas faltas d’amor em mi conheces

tão pobre d’amor sou, tão abatido,

que por falta d’amor assim me deixes

pondo no falso mundo teu sentido?

Olha bem, e verás quem aborreces,

que não mereço ser aborrecido,

pois te venho buscar com grande amor

de desejoso de dar-te meu favor.

 

(104)

Que pode dar o mundo que não seja

engano manifesto e leve vento!

Quem seus gostos pretende e que deseja

colher descansos vãos, colhe tormento:

Se queres acertar, nunca te veja

no falso mundo pôr teu pensamento,

antes o põe em mi, com grande estudo,

que eu tudo posso dar, pois tenho tudo.

 

(105)

Quanto o mundo promete são enganos

e nunca cumpriu cousa prometida,

no cabo, dá mui claros desenganos

com que traz enganada a breve vida:

Se queres pois fugir tão graves danos

e ganhar tua vida já perdida,

chega-te pera mi, pois vês que t’espero

deixa esse mentiroso falso e fero.

 

(106)

Vem-te pera mi teu criador

que pera receber-te aparelhado

estou: com grã desejo, com amor,

os braços abertos e com o lado:

Olha que sou teu Deus e teu Senhor,

serve-me como tal com grã cuidado,

e deixa já enganos tão manifestos

que sempre te serão assaz molestos.

 

Madalena

(107)

Estas e outras cousas me dizia

na minha alma o Senhor cada minuto;

Mas eu, como perversa, não queria

d’amor tão grande fazer fundamento:

Afastava-me dele e lhe fugia,

por que nele não tinha o pensamento

que ao mundo a quem seguia o tinha dado

e nele tinha posto meu cuidado.

 

(108)

Mas ai, triste de mim, como já’gora

diante do Senhor me mostrarei

pois dele fui fugindo de hora em hora

por mil cuidados vãos a que me dei;

Ai pobre de mi, ai triste pecadora,

com que olhos a tão bom Senhor olharei

se por seguir um falso e vão engano

lhe fui sempre fugindo por meu dano.

 

(109)

Ai de mim, mulher cheia de maldade,

com que olhos chegarei a um Senhor

de cuja boca sempr’ouvi Verdade

e em que sempre enxerguei um puro amor:

Eu, cega em meu desejo e vaidade,

fugia da luz clara e resplendor;

Agora, que o conheço o meu engano,

chorarei com rezão tão grave dano.

 

(110)

Divina boca, cheia de brandura,

donde todo sabor está manando;

Ó fonte de desejos, ó doçura,

em quem se está minh’alma deleitando:

Que alma pode ser tão cega e dura

que não s’abrande vendo amor tão brando,

ou que coração tão endurecido,

que a tal amor não fique mui rendido.

 

(111)

Como poderei ver vida tão pura,

sendo a minha passada em torpezas,

se tua piedade me assegura

não teme grã temor minhas baixezas:

Mas quem assim me trata com brandura

esforço me está dando, e mil certezas,

que me vá sem temor, seguramente,

após quem me quer levar tão brandamente.

 

(112)

Com que olhos vos verei, meu redentor,

se os meus estão tão cheios de veneno

que, matam quem os vê, com grande dor;

E vede vós tal dano, se é pequeno,

vede-me vós, c’os vossos, meu Senhor,

com que fazeis o mar e céu sereno,

porque livreis os meus de tal peçonha

E vos vejam, inda que seja com vergonha.

 

(113)

Amor sempre amoroso, amor divino,

amor que tudo tens de amor rendido,

amor brando e suave, amor benigno,

amor desta alma, amor de amor nascido:

Amor de quem fugia de contino

por não te ter, amor, bem conhecido;

Agora que de ti estou ferida

te darei, amor, minha alma e vida.

 

(114)

Amor, em cujo amor sempre descansa

toda a alma que de amor anda ferida,

amor em cujo amor não há mudança,

amor que só sustenta nossa vida,

amor, em cujo amor minh’esperança

se sustenta d’amor elanguescida,

que paga vos darei, amor divino,

ou penhor, que seja d’amor digno.

 

(115)

Amor, que por amor vieste à terra

e por amor, amor dos céus desceste,

amor, que com amor nos fazes guerra,

amor, que com amor tudo venceste

amor, em cujo amor toda sentença

est’alma que d’amor enriqueceste;

Que vos darei amor? que dar-vos posso

com que pague, amor, este amor vosso?

 

(116)

Amor, que com amor, andas buscando

as almas que de amor andam despidas,

amor, que por amor vens suspirando

pedindo amor, amor a nossas vidas:

Amor, que com amor andas ganhando

as almas que estão cegas e perdidas.

Que vos darei, amor brando e benigno,

que seja de tal amor, meu amor, digno?

 

(117)

Amor, de cujo amor tanto fugia

est’alma que d’amor anda encendida,

amor, meu grande amor e alegria,

amor, que com amor, dais vida à vida,

não sei como sem vós, amor, vivia,

nem sei como de vós era esquecida;

Ou cuido não vivia (amor divino)

quem de vós se esquece de contino.

 

(118)

Que vos darei amor brando e suave

que se já amor de vós (meu amor) digno

dest’alma vos darei, amor, a chave

pera nela morardes de contino:

E nada me dava já pena grave

tendo-vos eu comigo, amor benigno

que quem merece ter tal bem consigo,

não tema da vida algum perigo.

 

(119)

Amor que vences tudo com brandura,

deleite da minh’alma e bom amigo

amor em cujo amor vivo segura

em paz, quietação, e sem perigo:

Amor, em cujo amor muito se apura

est’alma que vos tem por seu abrigo;

Que vos darei, amor brando e benigno

que não seja desse amor muito indigno?

 

(120)

Com que vos pagarei, amor divino:

que paga posso eu dar? pola ventura

e apreço, amor meu, que seja digno

de vosso amor, e de tal brandura:

E a cousa com que possa amor benigno

pagar tão grande amor, e fé tão pura?

Que vos darei amor, pois tudo é vosso,

toda me dou amor, se dar me posso.

 

(121)

Dou-te meu coração, pois me tens dado,

toma-o, leva-o lá, tem-no contigo;

Dou-te o desejo, amor, dou-te o cuidado,

a ti só quero, amor, por meu abrigo:

o peito em teu amor mui apurado

te dou, como a mui fiel amigo;

Se mais pudera dar-te, mais daria

que tudo vence amor, quando porfia.

 

Autor

(122)

Nisto a Madalena estava influída,

gostando da doçura e grã sabor

daquele doce amor que adoça a vida

sem que não pode ser amor, amor;

Estava neste amor toda embebida,

não lhe lembrando mais o seu ser,

a quem de seu amor quis dar a chave

por ver que era mui doce, e mui suave.

 

(123)

Gosta de Deus ó cego pecador

se queres viver vida mui contente,

que é mui suave e brando seu amor

e nele a alma repousa brandamente:

Em nenhuma cousa vã busques favor,

nem no mundo que é falso e sempre mente

que se agora seu bocado é saboroso,

no fim se torna em fel, e mui amargoso.

 

(124)

Não te perturbes não, tem confiança

naquele que te pode dar a vida,

põe sempre nele tua esperança

não haja quem hoje mais tal bem t’imiga:

Que quem pode fazer tão grã mudança

num’alma pecadora já perdida,

também pode mudar teu pensamento

por mais duro que seja e violento.

 

(125)

Oh meu Deus e meu Senhor, quão poderosa

é a força do amor que nos mostrais,

quão suave e quão branda, e quão forçosa

pois com ela de tudo triunfais:

Com vossa condição tão amorosa

endurecidos peitos abrandais,

o ferro não tem força, nem a pedra,

tudo vence vosso amor e tudo quebra.

 

(126)

Que peito se viu mais endurecido

que o peito desta cega pecadora?

Olhai, quão duro andava, quão perdido,

olhai qual foi, olhai qual é agora:

Olhai quão facilmente foi vencido,

olhai como agora geme, como chora,

já toda se converte em amor puro,

daquele amor do céu, amor seguro.

 

(127)

A pedra de cevar vai atraindo,

por natural virtude, o ferro duro,

o sol com sua luz vai consumindo

o manto vaporoso negro escuro:

A negra noite sempre vai fugindo

do claro resplandor sereno e puro,

o fogo, a lenha segura vai gastando

o ígneo metal vai purificando.

 

(128)

Vós pedra de cevar sois, meu Senhor,

que com virtude própria ides atraindo

o mais que duro ferro pecador

que de vós, com dureza, vai fugindo:

Que cousa pode haver, meu redentor,

que possa a tanta força ir resistindo:

ferro, a dura pedra, o diamante

se abranda ante vós, no mesmo instante.

 

(129)

Vós sois o claro sol resplandecente

que com raios de amor ides consumindo

as trevas em que estava a cega gente

a quem de vossa luz ides revestindo,

a vossa luz serena  e mui fulgente,

a Madalena a está em si sentindo,

pois vendo-a tão bela, clara e pura

da noite foge logo, negra e escura.

 

(130)

Vós sois o resplendor de que fugindo

a noite escura vai de meu pecado;,

Ai triste de quem jaz sempre dormindo

em noite tão escura descuidado:

Mas vós, luz bela, estais sempre ferindo

os olhos que de si não têm cuidado

que vejam vossa luz serena e pura

e fujam do pecado, noite escura.

 

(131)

Vós sois fogo do céu mandado à terra

fogo de puro amor, suave e brando

com que de nossas almas se desterra

o céu do pecado, que ides gastando:

Só vós a nossos vícios fazeis guerra,

vós nos ides em virtudes apurando,

metal mui estimado nessa altura

que o fogo d’amor vosso mais apura.

 

(132)

Tudo quanto a Madalena a Deus dizia

os brandos amores que lhe falava

os prantos, os estremos que fazia,

o fero imigo nosso bem notava:

E não podendo já sofrer quanto ouvia,

que de furor e raiva cego estava,

não duvida mostrar-se à penitente

dizendo agastado e impaciente:

 

Diabo

(133)

Oh, fúrias infernais vinde rompendo

desses lugares lá donde habitais,

e acudi aos males que estou vendo

e que vós vereis, senão remediais;

Acudi, acudi, fúrias, correndo

vereis os meus tormentos sem iguais

acudi com tão grandes alaridos

que ponham grande espanto nos nascidos.

 

(134)

Tomai, tomai de mi cruel vingança

abrasai-me já com fogo imortal,

não haja em meus tormentos já mudança

pois eu a causa fui de tanto mal:

A Madalena, em que eu tinha confiança,

me deixa, e me faz guerra campal,

mas bem mereço ser atormentado

pois em guardá-la fui tão descuidado.

 

(135)

Não vedes esta minha perdição?

Que fazeis? Que é dos fogos infernais?

Não me tenhais respeito, nem sujeição,

antes me dai tormentos imortais:

Por que é tal minha dor, minha paixão

que me deram pena, penas tais

que quem pera si foi tão descuidado

mui bem merece ser atormentado.

 

(136)

Já mais poderei viver descansado

pois perdi a Madalena serva minha,

laço de meu engenho fabricado,

no qual a presa certa sempre tinha;

Agora perdi tudo e me é roubado,

mas quem podia ser disto adivinha,

quem podia cuidar que tal amiga

sem causa se tornasse em dura imiga!

 

(137)

Com ela, sem trabalho, mil cativos

se vinham pera mi cada momento,

por mil mortos, ganhava cem mil vivos

com a isca de seu vão pensamento:

Mil modos rebuscava, mil motivos

de sua perdição certo instrumento,

agora me foge e me despreza,

e tirando-me da mão tão grande preza.

 

(138)

Estou fora de mi com grande espanto

em ver que a Madalena me despreza.

Vejo que me buscam a cada canto

e que todo o mundo me serve e preza:

Só meu, quanto quero tudo planto,

de toda a terra colho grã riqueza;

Mas tudo me parece pouco ou nada

em ver a Madalena tão mudada.

 

(139)

De todos comummente sou buscado:

Uns honra me pedem, outros riqueza;

D’outros por deleites sou rogado

negaça com que faço grande preza:

Mas só pela Madalena, meu cuidado

e tudo o mais trocara se certeza

tivesse, de poder cobrar tal goiá,

que de rede me servia e de bóia.

 

(140)

Ah! Madalena, minha rosa bela

por quem me tendes meu amor trocado?

Ah, tornai-vos pera mi minha estrela,

pois vedes meu amor e meu cuidado:

Tornai sobre vós, pois sois aquela

a quem sempre servi sem ser mudado;

Olhai, que não diz bem haver mudança

em peitos em que amor firme descansa.

 

(141)

Dizei-me, Madalena, minha rosa

quem fez em vosso amor tão grã mudança,

quem me vos roubou pedra preciosa?

Que de cansar-me tanto não descansa!

Quem vos apartou de mi, antiga esposa,

quem fez em tal amor destemperança?

Convosco estava ledo e com repouso

mas sem vós sou cego, é mui penoso.

 

(142)

Ah, Madalena minha, que motivos

te dão ocasião pera deixar-me?

Achas cousa por ventura entre os vivos

por que tão sem rezão possas negar-me?

Não mostres desfavores tão esquivos

que não te mereci tão maltratar-me;

Olha que amor firme e tão constante

merece um coração melhor amante.

 

(143)

Ah hospedeira minha tão antiga

com quem mui descansado repousava!

Sempre cuidei de ti que eras amiga

e teu amor então bem mo mostrava:

Olha Madalena minha, não se diga

que meu amor em ti mal se empregava,

e que todos afirmem com certeza

que em peito de mulher não há firmeza.

 

(144)

Olha que é grande mal, em peito amante

que tem mostrado amor e grã firmeza,

ser notado desvario, e de mi constante

que em sangue generoso é baixeza:

Não queiras imitar os diamantes,

não queiras ser mais forte na dureza,

abranda, por que a tanta fermosura

não convém tal dureza, mas brandura.

 

(145)

Que mal te fiz, cruel e desumana,

por que rezão me tens assim deixado?

Ah, Madalena minha, quem te engana,

Quem te aparta de mi doce cuidado?

Por que quebrar, cruel fera e tirana,

a fé, e firme amor, que me tens dado?

perdeste porventura já teu siso?

Olha que diz mal mudança com aviso.

 

(146)

Não olhas quantos bens te tenho dado!

No rosto linda graça e fermosura,

beleza nesse corpo delicado,

mil graças no falar, no rir brandura

riquezas te busquei com grã cuidado,

Mil honras pera viveres mais segura,

tudo o que desejavas te buscava

cem mil deleites sempre te inventava.

 

(147)

Que cousas desejaste que negada

te fosse? Ou de que fosses descontente?

Porque és cruel, vingativa e descuidada

pera quem servo foi tão diligente?

Sem causa não te mostres agravada

que agravos meu amor não nos consente;

Se desejas de tomar de mi vingança,

assaz a tens tomada já, descansa.

 

(148)

Diz-me que ganhaste em deixar-me

senão dor, choro, pena, confusão,

que engano te moveu, que mal tratar-me

que movimento foi este ou que paixão?

Não te fôra melhor sempre poupar-me

mostrando eu amor grande e afeição?

Pois comigo sempre tinhas alegria,

agora não cessas de chorar noite e dia.

 

(149)

Comigo andavas leda, e contente

e agora suspiras de contino,

chorar te vejo sempre amargamente

não sei pera que segues tal destino:

Agora vives vida descontente,

mágoa tenho de ver-te em tal tristeza,

mas, ver que tu te matas, mais me pesa.

 

(150)

Ah, deixa de seguir tão triste vida

recolhe, acaba já teu pensamento;

Não sigas quem te traz tão abatida,

que te faz viver em pena e tormento;

Não vês que andas de ti mui esquecida,

mui cega, sem sentido e sem tento?

Já’gora deves de ter experimentado

quanto custa seguir um vão cuidado.

 

(151)

Esses são, Madalena, os olhos belos,

tão vivos de graças e de brandura,

por quem mil se perderão só c’o vê-los

espantados de ver tal fermosura?

Determinas com pranto escurecê-los,

não sejas pera ti tão fera e dura,

que olhos, que tantos olhos abatiam,

mais ledos e contentes ser deviam.

 

(152)

Esse é teu lindo rosto de amor cheio

em quem se quis mostrar a natureza

não é assim não, se não me enleio

por que o outro tinha mais beleza.

E esse é bem mudado, e bem alheio

o vejo d’antiga gentileza,

da que com grande espanto se falava

e de quem até o sol se não curvava.

 

(153)

Disciplina num corpo delicado,

e em tão alvas carnes tais cilícios,

não achas que merecia ser tratado

com mimos e mais brandos benefícios?

Ah, cega, não vês que meu cuidado

é dor de meu amor claros indícios?

Eu sempre te busquei contentamentos

e tu pera ti buscas tais tormentos.

 

(154)

Foges de ter descanso e alegria

por viver em perpétua tristeza;

Olha que mal te quer quem te desvia

da fé que me guardavas com firmeza:

Deixa tal destino e porfia

e não sigas tão triste e vil baixeza;

Ah, deixa disciplinas e cilícios

que são, de pouco siso, bons indícios.

 

(155)

Ah, deixa, cruel, deixa desatinos,

enganos manifestos sem proveito;

De que te servem prantos tão continos,

de que serve chorar com tal efeito?

Ah, deixa pensamentos peregrinos

e tem, a quem te serve, algum respeito:

Amostra-te mais branda, acaba e cansa

de cansar a quem te serve sem mudança.

 

(156)

Nunca já, enquanto foste minha amiga,

nesse teu duro peito entrou tristeza;

Agora, justo é que te persiga

pois deixas quem te ama e quem te preza:

Cilícios de que servem? Quem te obriga

jejuar, nem fazer tal aspereza?

Ah, deixa Madalena tal engano,

pois tudo te redunda em grande dano.

 

Madalena

(157)

Aparta-te de mi, pai da maldade

lisonjeiro enganoso e fementido;

Aparta-te daqui com brevidade

que em mi nunca terás já bom partido;

Aparta-te daqui, porque a verdade

de quem tu és, já tenho conhecido;

De mi não comeras já bom bocado

e em outros tenho posto meu cuidado.

 

(158)

A Deus meu coração tenho já dado,

também o fiz Senhor do pensamento,

que tu mos trazias enganado

com esperanças vãs de leve vento:

Aparta-te daqui que meu cuidado

já descansa e repousa no seu centro;

Agora vejo claro quão mal via

pois que teus enganos não sentia.

 

(159)

Vai-te, maldito, pois de mentiras

não cuides de levar-me com branduras,

que já mui pouco temo tuas iras

e bem sei o que me queres e procuras:

Se tu bem me quiseras, não feriras

minha alma com tão feras mordeduras;

Aparta-te já daqui, fera serpente

por que a minha alma ver-te não consente.

 

(160)

Se te gabas de me ter enobrecida

com cousas preciosas e de estima

bem me vês estar delas já despedida

de sorte que só vê-las me lastima.

De tê-las estou bem arrependida,

e todas minha alma desestima,

por isso aí tas dou, que não nas quero

pois de cousas tais nada espero.

 

Autor

(161)

Aqui lhe entregou logo seus vestidos

profanos, mas de rica pedraria,

em que seus vãos cuidados e sentidos

tinha dantes postos e lhes dizia:

 

Madalena

Ah laços de mil cegos e perdidos!

Deixai já esta vã que vos seguia

tirai-vos já, pois fostes instrumento

de meu louco e cego pensamento.

 

(162)

Já não cobrireis vãs profanidades

deste meu corpo noutro já mudado,

que se dantes era dado a vaidades

agora foge delas com cuidado:

Vós fostes sempre porta de maldades,

por quem meu corpo entrou mui enganado,

agora, quem sois, já claro vejo

em vós nunca porei mais meu desejo.

 

(163)

E tu, corpo mortal e sem ventura,

que tão cego seguias tal engano

buscando pera ti toda a doçura

contentamento vão, e bem profano;

Em lugar dos regalos e brandura,

a que te davas sempre por meu dano,

serás tratado de mi mui cruelmente

sentindo apenas dor qu’esta alma sente.

 

(164)

Tu, que ricos vestidos inventavas,

cobrindo-te de mil galanterias

em que toda  vãmente te enlevavas,

gastando nisto anos, noites, dias;

Por te mostrar ao mundo te enfeitavas

de pérolas, ouros, argentarias,

agora bem darão grande ornamento

cilícios, disciplinas e tormento.

 

(165)

Pois eu, que dantes por donde ia

um cheiro mui suave ia lançando,

o qual, por toda a parte recendia,

agora um cilício irei buscando;

Quem de ti se espantava quando via

que com mil vestidos te ias ornando,

agora mostrará maior espanto

vendo-te andar nua e posta em pranto.

 

(166)

As mãos, que tantas vezes concertaram

este meu corpo dado a vaidades,

pois em tal oficio se empregaram,

agora o tratarão com crueldade:

Os pés, que de jóias se calçaram,

tendo tudo mais por pouquidade,

usando só de rica pedraria,

 terão por seu regalo a pedra fria.

 

Autor

(167)

Despedida pois, de todos seus vestidos,

chorando com dor, disse a seus cabelos:

 

Madalena

Cobri-me, cabelos, estes perdidos

membros: pois já servistes de pecados;

De mi fostes amados e servidos,

e gabados do mundo por mui belos;

Já servistes de laços, e de engano

a muitos; mas a mi de grave dano.

 

(168)

Agora servireis, cabelos tristes,

de cobrir este corpo despojado

das cousas vãs do mundo a que servistes

com todas vossas forças e cuidado:

Alimpareis as lágrimas, que vistes

correr, por este rosto já mudado

porque vós, também nelas lavados,

de vossa bela cor sejais mudados.

 

Autor

(169)

A todas estas cousas que dizia

a Madalena, grande penitente,

inda que sua raiva reprimia

se cala o fero imigo impaciente;

Mas vendo que movê-la não podia

antes se vê tratado cruelmente,

está com feros gritos atroando

o mundo, ao qual diz suspirando:

 

Diabo

(170)

Ai de mi, que farei, que farei, perdido!

Oh mundo, meu fiel e caro amigo,

onde estás, que não ouves meu gemido,

que fazes, que não sentes meu perigo?

Tão longe estás, de mi tão esquecido,

de amigo tão fiel, e amor tão antigo,

acode a meu aperto, acode logo,

que me vejo abrasar em vivo fogo.

 

(171)

Oh carne, por que te sujeitas tanto!

Sofres que uma mulher te faça guerra,

não vês que com louvor, e grande espanto,

tuas vitórias canta toda a terra?

Dá-me tua ajuda agora, enquanto

pelejo contra quem já me desterra,

porque se for de ti favorecido,

não serei desprezado nem vencido.

 

(172)

Ah Madalena minha, bem entendo

que quereis que vos sirva de vontade,

e não me engano não, pois estou vendo

vossa fé, vosso amor e lealdade;

Entendei, meu amor, que não pretendo

mais que servir-vos sempre de verdade,

por isso não me dês tanto desgosto,

pois já quase no fim me tendes posto.

 

Madalena

(173)

Aparta-te de mi, cruel imigo

das almas, manjar torpe e venenoso;

Aparta-te daqui, que sem perigo

noutro amor me sustento, mais gostoso

amor suave e brando, e mais amigo

em que sempre descanso, em quem repouso

nele mil honras acho, e mil riquezas

que as tuas são enganos e baixezas.

 

Diabo

(174)

Oh mundo, que falar tão atrevido

de uma mulher má, desatinada,

coitada sem saber, e sem sentido

não vês quão cega vai, e quão errada.

Pois sabe que se deixas meu partido,

te farei conhecer que és malfadada,

porque te posso dar mui cruel morte

se deixas de seguir meu claro norte.

 

(175)

Espera-me e verás, mulher coitada;

Não sabes que és minha por direito

e que posso lançar-te no inferno?

Determinas lançar-me de teu peito

em que já fiz alento sempiterno?

Não sabes que me deves ter respeito

se queres escusar tormento eterno?

E cuidas que, por falar-te brandamente,

me podes tratar tão cruelmente?

 

(176)

Espera-me e verás, mulher coitada;

Que ganharás de teu atrevimento?

Má mulher, sem vergonha, desbocada,

de que fazes, me diz, fundamento?

 Se queres escusar ser maltratada,

deixa já tão perdido pensamento,

e se não, levarás o prémio logo,

de teu atrevimento, em vivo fogo.

 

(177)

Perdida, já cuidavas que eras santa?

Pois vais mui longe disso claramente,

porq’em toda a terra não se canta

se não de tua fama, e bem se sente;

Não colhe fruto Deus de tão má planta,

nem tais almas o puro céu consente;

Bem sabes que Deus é suma limpeza

e não se paga mais que de pureza.

 

(178)

Se confias em tua penitência,

entende que já nada te aproveita,

porque aquela divina sapiência

de tão nefanda boca nada aceita:

Mofina, teu jejum, tua abstinência

não agrada ao Senhor, nem no deleita,

por isso entende que és já perdida

e te não vale chorar, nem mudar vida.

 

(179)

Não vês que estás já presa do meu laço

no qual te terei sempr’a bom recado?

Não vez quão facilmente te desfaço

quanto fazer pretendes com cuidado?

Imaginas vencer meu forte braço

do qual poder em ti já Deus tem dado?

Não fiz morada em ti eu até’gora?

Pois queres-me lançar já de ti fora.

 

Autor

(180)

Aqui, lançava mão, o fero imigo,

da pobre pecadora, mui raivoso;

Mas ela, no Senhor pôs seu abrigo

a quem, branda rezava, piedoso:

 

Madalena

Livrai-me Senhor, vos peço, desse antigo

cruel imigo meu, e dai repouso

à alma tão aflita e atribulada,

tão perseguida agora, e maltratada.

 

(181)

Ó doce Jesus, meu amor seguro

ó bom Jesus, misericordioso

sede, meu bom Jesus, meu forte muro

contra este imigo fero e revoltoso:

Ó bom Jesus, em cujo amor me apuro

manjar dest’alma minha saboroso,

sede, ó bom Jesus, escudo forte

contra este cruel imigo, pai da morte.

 

(182)

Ó doce Jesus, pai clementíssimo

fonte de piedade, e de brandura

de aflitos remédio mui certíssimo,

consolação de todos mui segura:

Muro dos fracos mui certíssimo,

fortaleza de toda a criatura,

pois pus em vós minha esperança,

livrai-me deste mau, por que me cansa.

 

(183)

Ó doce Jesus, Mestre da minha alma

em quem descanso tenho, e grã repouso,

livrai-me desta afronta, que não acalma,

socorrei-me, amor meu, mui deleitoso:

Concedei-me Senhor, que leve a palma

de quem de mi quer ser vitorioso,

que, com vosso amor, mui facilmente

vencedora serei desta serpente.

 

(184)

Em vós doce Jesus, minha esperança

minha alma tão rendida ao amor vosso,

segura em vós repousa, em vós descansa

vencei vós esta fera que eu não posso:

Dai-me, Senhor, esforço e confiança,

com que vença o cruel imigo nosso,

e mostrai-lhe que só vós sois poderoso

E pera pecadores piedoso.

 

(185)

Pois vós me esperaste até ’gora

pera que em mi houvesse esta mudança;

Defendei-me, bom Jesus, em esta hora

desta fera cruel que assi me lança:

Eu confesso, Senhor, ser pecadora

e digna que tomeis de mi vingança;

Mas, pois me fostes sempre piedoso,

defendei-me com o braço poderoso.

 

Autor

(186)

Não pôde sofrer mais, o feio imigo,

vencido desta força e fé tão pura;

Mas foge sem detença seu perigo,

e se mete na cova negra e escura,

onde cheio de raiva diz consigo:

 

Diabo

Sofrerei que uma fraca criatura,

minha morada antiga, e aposento,

mo tire com tão grande abatimento?

 

(187)

Ai de mi, que farei, pois sou lançado

de minha antiga casa sem rezão;

Onde me irei, coitado, desterrado?

Onde farei minha habitação?

É possível que me veja maltratado

de quem sempre tratei com afeição?

É possível que me faça dura guerra

aquela por quem fiz tanta na terra?

 

(188)

A quem me queixarei da grave pena,

que de tal sem rezão, meu peito sente?

Olhai o duro fado que me ordena

pera que viva triste e descontente:

Olhai a quantas mágoas me condena,

uma alma a quem servia alegremente;

Olhai, como se mostra agradecida

aquela que de mi foi tão servida!

 

(189)

Ó cousa não vista, nem ouvida,

que veio contra mim, com mão armada,

aquela que de mi foi tão querida,

tão mimosa em tudo, e tão amada:

Ai de mi, que me abafa a dor crescida,

e tenho em mi a pena mais dobrada,

sem poder dar sossego nem alento,

a muito grave dor que n’alma sento.

 

(190)

Porém, quem se mudou tão brevemente,

me dá, por outra parte, confiança

que poderá tornar mais levemente,

pois na mulher é certo haver mudança;

Mas, ah, o meu tormento não consente,

que possa d’algum bem ter esperança,

porque a mulher no mal só tem firmeza

e em bem ser mudável é certeza.

 

Autor

(191)

Grande alegria, e grã contentamento,

recebe a Madalena em ver queixoso

o rei das negras trevas, cujo intento

era tirar-lhe da alma o seu esposo:

Mas como seu perverso pensamento,

não pode sossegar, nem ter repouso,

determina movê-la com brandura,

mostrando-se queixoso de ventura.

 

Diabo

(192)

Até quando, Madalena, até quando

hás-de ser pera mi tão fera e dura?

Mostra-me já, cruel, teu peito brando

pois nele nunca mais faltou brandura:

Madalena cruel, não vês qual ando

não vês minha grave dor, desventura?

Qu’é da tua brandura e piedade?

Toda te converteste em crueldade?

 

(193)

Até quando, hás-de usar de desfavores

com quem te serviu sempre sem teu dano?

Não deixes, Madalena, meus amores

pois sabes que te amo sem engano:

Lembra-te que te fiz com mil favores

cuidando ser teu peito mais humano;

Olha que é ânimo vil e acanhado

do bem que recebe não ser lembrado

 

(194)

Quem se esquece do bem já recebido,

dá mostras manifestas de baixeza;

Mas quem por bem, dá mal não merecido

além de ser ingrato, é grã crueza:

Põe nisto, Madalena, teu sentido,

que muito choravas, se não te pesa

da paga que me dás, pois não se paga

amor com desamor, que é dura paga

 

(195)

Volve-me esses teus olhos, desumana

acaba de abrandar teu peito duro;

Olha que não diz bem ser tão tirana

com quem tem amor tão firme e puro;

Ah! Madalena minha, quem te engana?

Quem te aparta de mi? Pois eu te juro

que um amor tão firme e tão constante,

já pudera abrandar um diamante.

 

(196)

Ah cruel, porque vais de mi fugindo?

Foges a quem te segue de contino,

não vês como me vou já consumindo?

Ah, não vês que por teu amor me fino:

Acaba de estar sempre resistindo

a quem tanto te quer, que é desatino;

Olha que não é justo, nem se espera,

mostrar condição dura e fera.

 

(197)

Bons males, se me deixas, vais fazendo,

deixas a quem se perde e por ti tanto

que mais não pode ser, nem eu entendo

quem mais te possa amar, disto m’encanto:

E dar ocasião a que vá perdendo,

com grande afronta minha, tudo quanto,

com tanto suor meu, tenho ganhado

ficando de todo já desbaratado.

 

(198)

Vê, cruel, que me dás mau tratamento

havendo-te comigo cruelmente;

Olha bem de que fazes fundamento,

não deixes meu amor tão facilmente:

Mas o que me dá pena, e grã tormento,

é ver que o mundo todo, comummente

os erros por virtudes vai julgando,

e as virtudes por vícios condenando.

 

(199)

Os erros, como cegos vão seguindo,

não faltam pera mal mil defensores;

(Ai dor) e de uns em outros vão caindo

de muito pequeninos ou maiores:

Isto só de contino estou sentindo,

recebendo mil penas, e mil dores

o que lamentarei eternamente

pois que o mal se segue comummente.

 

(200)

Mas, inda que me dás mau tratamento,

o muito que te quero não consente

ver-te posta em tal pena, e tal tormento,

e crê-me que estou triste e descontente:

Não posso encobrir mais o sentimento

de te ver andar tal, que escassamente

te posso conhecer, que grande engano

é seguir tantos extremos com tal dano.

 

(201)

Mas já que amor não vale nada contigo,

nem mágoas, nem rezão pode abrandar,

nem queres fazer caso do que digo,

sequer tem dó de ti, que maltrataste:

Bem sabes que é desatino, e grã perigo

usar contigo mesma de tal arte;

Olha que Deus não quer que nos matemos,

mas quer que por rezão nos governemos.

 

(202)

Alimpa desses olhos tantas águas

que posta estás no fim com tanto pranto;

Tuas penas e mágoas me dão mágoas,

acaba de chorar, não chores tanto:

De te ver tão triste, as duras fráguas

se abrandam e se esquecem de seu canto

as aves, dando mostras de tristeza;

Mas teu peito não, que tem mais dureza.

 

(203)

Não vês que todo estremo é mui danoso,

e que não pode durar a violência?

O rigor, sem justiça, é perigoso

perigosa a justiça sem prudência:

O jejum moderado, é proveitoso

proveitosa a prudente penitência,

mas extremos sem prudência ordenados

são de Deus e dos homens condenados.

 

(204)

O meio comummente é mui louvado,

nem tema quem o tem algum perigo;

Mas viva com sossego, e descansado,

que a natureza guarda isto consigo:

Pelo contrário, está violentado

quem busca nos extremos seu perigo

que muitas vezes cai o mais sabido

e é alevantado o abatido.

 

(205)

De que te serve logo chorar tanto,

de que te serve tão contina abstinência,

de que serve pôr no mundo tal espanto

senão seguir conselho, nem prudência?

Ah deixa, Madalena, já teu pranto,

ah deixa tão comprida penitência!

Não cuides que a grandes penitentes

se dará o céu só, mas a prudentes.

 

(206)

Abranda, abranda já, não sejas dura

que serve para humanos tal dureza;

Usa de mansidão, e de brandura

deixa teu rigor, tua aspereza:

Não queiras acanhar a fermosura

de que te quis dotar a natureza;

Não queiras ser de ti mesma homicida,

mas goza enquanto a tens, de tua vida.

 

(207)

Torna-te Madalena a teu estado

que Deus também se serve de riquezas,

com elas também pode ser louvado,

pois elas remedeiam mil pobrezas:

Não cuides que deixá-las é forçoso

se quer cometer grandes emprezas,

que riquezas não são impedimento

às almas que desejam salvamento.

 

(208)

Nenhuma cousa é má naturalmente

mas todas tem um bem certo consigo,

que Deus, todas criou mui sabiamente

e deu a cada cousa seu abrigo:

Ser verdade tudo isto, bem o sente

quem sabe usar das cousas sem perigo;

O mar visto de longe é deleitoso

mas a quem nele se mete, é perigoso.

 

(209)

Jamais fez nojo o claro imigo

a quem se guarda dele, e se desvia,

nem deixou de ser bom, o bom amigo;

Ditoso de quem achou de quem se fia:

Bom é tomar conselho do antigo,

bom é o caminhante, a boa guia,

ser constante no bem é fortaleza

mas cansar logo é grã baixeza.

 

(210)

Não queiras resistir à natureza

que quem resistir quer não permanece;

O tronco que resiste com firmeza

está sempre quebrando e não floresce;

A pedra que resiste com dureza,

às brandas gotas d’água desfalece;

A cana dá lugar ao rijo vento

por isso permanece em seu assento.

 

(211)

O ouro, não faz mal, nem embaraça

a quem dele não é mui cobiçoso;

O vinho que se dá por mão escassa

a todos comummente é proveitoso;

O regrado comer tem muita graça

mas o demasiado é mui danoso;

O fogo dá luz clara e mais aquenta,

lástima a quem o palpa e atormenta.

 

(212)

Bem vês do que te digo, claramente,

quão cega vais seguindo o teu intento;

Entende que te falo fielmente,

sem engano, sem mal, sem fingimento:

Conserva, Madalena, o bem presente

não chores tua perda com tormento:

Acaba de tomar meu bom conselho

porque é de amor, e de amigo velho.

 

(213)

Não queiras encurtar teus breves dias

com ásperos jejuns e penitências,

que todos julgam ser hipocrisias

e não se enganam nas aparências;

Ah deixa, acaba já, deixa porfias,

não uses tão duras abstinências

que basta pera Deus dizer pequei

perdoai-me Senhor que vos errei?

 

Autor

(214)

Com grande e importuna tentação

tentou a Madalena o fero imigo,

mas ela, que em Deus pôs seu coração,

sem falar-lhe dizia só consigo

 

Madalena

Meu Senhor, pois me dais ocasião

de ganhar-me ou perder-me em tal perigo,

ajudai-me com fé e fortaleza

pera que em vosso amor tenha firmeza.

 

(215)

Não permitais, Senhor, que desfaleça

esta alma vossa já com tal combate,

mas dai-me vossa ajuda, não pereça,

nem este cruel imigo mal me trate:

Socorrei-me, Senhor, que não me impeça

este fero Satanás, ou desbarate,

socorrei-me, Senhor, com vossa ajuda

e respondei por mi, que já sou muda.

 

[Autor]

(216)

Oh exemplo de virtudes admirável

não de fraca mulher, mas do céu dado

saber calar é cousa mui louvável

tudo vence o prudente bem calado:

Quem quiser ter o céu mui favorável

imite a Madalena com cuidado

em bem saber calar, pois comummente

quem sabe bem calar é mui prudente.

 

(217)

A língua vai mil faltas descobrindo

daquele que sem tento vai falando,

é espada mui cruel que vai ferindo

com golpes incuráveis magoando:

É fogo que vai tudo consumindo,

é morte que vai vivos sepultando

o néscio se se cala vence tudo

e de todos é julgado por sisudo.

 

(218)

Ficou a Madalena triunfando

daquele que vencê-la pretendia,

porque nas mãos de Deus foi deixando

a quem favor com lágrimas pedia:

Venceu o fero imigo bem calando

e bem vence quem cala em tal porfia,

e se lhe respondera, porventura

perdera seu sossego e paz segura.

 

(219)

Se queres acertar, não dês ouvidos

a certos mofadores lisonjeiros,

não fies de perversos e perdidos,

foge de suspeitosos companheiros:

Aqueles que por bons são conhecidos

são sempre proveitosos companheiros:

Chega-te pera o secreto e calado,

viverás sem trabalho e descansado.

 

(220)

Se te o perverso fala com brandura,

com ela vai dourando seu engano,

não te fies dele, que procura

com brando fingimento, o teu dano:

Se queres viver quieta e segura

põe teu cuidado só no soberano,

se fores perseguido e maltratado

tem sempre sofrimentos sê calado.

 

(221)

Mui grande dor sentiu o fero imigo

vendo-se tão vencido e maltratado,

cuidando em seu desprezo, diz consigo:

 

Diabo

Sofrerei ser assim tão desprezado?

Não faz caso de mi, nem do que digo,

que farei? Se me vou afrontado,

se fico temo ser mais abatido,

pois onde me irei assim corrido?

 

(222)

Ora, porque não fique assim zombando

uma tão mala mulher com tal vanglória,

com todo o inferno junto virei dando

vingança a todo o mundo mui notória:

O céu farei que esteja fuzilando

mil raios que me dêem dela vitória,

moverei todo inferno e toda a terra

por levar a vitória desta guerra.

 

(223)

Armas, armas, socorro companheiros!

Oh fúrias infernais do negro Averno,

acudi com trovões, e com chuveiros,

apareçam os abismos desse inferno:

Cubra-se todo o céu de nevoeiros,

arrebente na terra o fogo eterno!

Mostrai tais estrondos e bramidos

que ponham grande espanto nos nascidos.

 

Autor

(224)

Não tinha inda bem dado este bramido

o fero Satanás, já junto estava

aquele esquadrão fero escurecido

e o ar de negras nuvens se toldava:

Um negro manto foi logo estendido

de névoa tão espessa, que tirava

a luz do sol e tudo escurecia,

ficando em noite escura o claro dia.

 

(225)

Logo trovões medonhos atroaram

com grande estrondo e vozes toda a terra,

mil raios e coriscos se quebravam

nos montes, nos outeiros e na serra:

Vozes infernais então soaram

dizendo todas juntas, guerra, guerra

padeça a Madalena cruel morte

entenda quanto pode um braço forte!

 

(226)

Um estrondo se ouviu logo, espantoso,

com grande motinada num momento

daquele esquadrão fero, furioso,

que a terra se abalava desd’o centro:

Mil figuras de aspeito temeroso

aparecem, com cujo movimento

os ares se vão todos corrompendo,

e a terra que tal sente está tremendo.

 

(227)

Megera com Alecto governava

a parte principal desta manada

Tisífone o restante encaminhava

e indo com esquadrão bem ordenado;

logo que chegaram onde estava

a Satanás, diz Maguera ousada

Mestre Capitão aqui te trago

soldados com que faças grande estrago.

 

(228)

Com vê-los, Satanás ficou contente

sentindo menos dor do que sentia,

porque com seu favor ousadamente

determina de vingar-se de Maria;

E como mui manhoso e diligente,

a todos quantos juntos ali via

refaz um sermão, grande e avisado,

dizendo com aspecto confiado:

 

Diabo

(229)

Chamei-vos, homens fortes, companheiros,

porque tenho vosso valor conhecido,

pois nos meus perigos sois primeiros

e convosco tudo já tenho vencido:

Tendo comigo tão fiéis guerreiros,

não tenho que temer, antes temido

serei do mundo todo e elementos

porqu’os revolverei de seus assentos

 

(230)

Bem sabeis que depois que fui lançado

daquele glorioso firmamento,

em que com tantas graças fui criado,

por braço poderoso e violento:

Com quanto valor meu, com que cuidado

a terra sujeitei, o mar, o vento,

as plantas, os animais, os elementos

da minha sujeição não são isentos.

 

(231)

Bem sabeis o triunfo glorioso

que levei do primeiro pai da gente,

quando no Paraíso deleitoso

com ele combati numa serpente:

Bem vistes como fui vitorioso,

pois nele cativei eternamente

a todos filhos seus e descendentes,

e logo fiquei sendo rei das gentes.

 

(232)

Bem vedes como tenho enriquecido

meus reinos com triunfos gloriosos,

sempre fui vencedor, nunca vencido,

em guerras e combates espantosos:

Olhai quantos mil homens tenho trazido

a meu poder; olhai quão animosos

varões tirei da mão dos soberanos

com guerra que lhes fiz com grande dano.

 

(233)

Bem vedes que de todos sou prezado,

de todos comummente mui temido,

em templos sumptuosos adorado

de reis e sacerdotes mui servido:

No mundo sou querido, e acatado

no templo como Deus, por Deus havido;

Já fui por muito tempo desservindo

sua lei, e repouso consumindo.

 

(234)

Que faço tempestades perigosas,

revolvo todo o mar desd’o seu centro,

alevanto mil ondas furiosas

eu faço embravecer o leve vento:

Eu faço mil batalhas sanguinosas,

destruo mil cidades num momento,

invento mil enganos, mil discórdias,

engrandeço meus reinos por vitórias.

 

(235)

Porém, não me dão contentamento

as cousas que vos digo brevemente,

nem posso ter sossego, em sofrimento

na dor que me lastima gravemente:

A Madalena me dá graves tormentos,

nossa amiga fiel antigamente,

a qual se revelou ter-me vencido:

Se dela me não vingo sou perdido.

 

(236)

Que determino dar-lhe tal castigo

que seja pera todos grande emenda,

porque vendo a vingança que prossigo

não haja depois dela quem me ofenda:

A empreza assaz grande é, e de perigo

mas de honra e de proveito é contenda,

quem quer que cometer tão grande empreza

que comete uma rocha em fortaleza.

 

(237)

Não cuide que é mulher fraca e mudável

que se muda a qualquer bafo de vento,

é mais forte que torre inexpugnável,

mais firme que o firme firmamento:

É forte nos combates, incansável

em braço por qualquer cometimento,

aqui convém mostrar um braço forte

e bem pago será quem lhe der morte.

 

(238)

Cuide quem vencer, que tem vencido

o mundo todo junto; e por tal feito

será com grã louvor enobrecido,

e com prémios mui grandes satisfeito:

E por isso cada um siga o partido

com todas suas forças, pois proveito,

honra, fama, louvor e grande glória

alcança pera si desta vitória.

 

Autor

(239)

Acabada a oração lhe responderam

com vozes as fúrias temerosas:

 

Fúrias

Bem sabes, rei das trevas, que temeram

de nosso poder serras mui fragosas;

Bem sabes quão bem sempre sucedemos

nossas batalhas, sendo mais famosas;

Pois que nossa fama é tão notória,

não tens que arrecear desta vitória.

 

Autor

(240)

Eis logo pelo ar fogo se acende,

a terra por mil partes parecia

querela  só verter: aqui se fende

ali se abre com tremores que fazia:

Em grande aperto, esta bem se defende

dizendo ao bom Jesus em que confia:

 

Madalena

Valei-me, meu Senhor, neste perigo

que contra mi intenta o fero imigo.

 

Fúrias

(241)

Não te há-de valer não, falsa traidora,

pois vês que contra ti vimos raivosos;

Agora, mal aventurada, agora

pagarás com castigos rigorosos:

Aqui pagarás logo, na mesma hora

teus feitos mui infames e danosos,

já és nossa por direito em toda a parte

ninguém de nossas mãos pode livrar-te.

 

(242)

Nela, nela, soldados animosos

demos com grã furor e crueldade!

Feri, feri com golpes furiosos

este corpo tão cheio de maldade:

Aqui, aqui, vos mostrai mui rigorosos

aqui executai com grã vontade

os golpes valorosos e revezes

com que vencestes fortes tantas vezes.

 

(243)

Feri tudo, feri, nesta malvada,

Não haja membro nela sem castigo!

Será toda ferida e retalhada,

veremos quem lhe vale em tal perigo:

 

Autor

Remete com furor, mui indignada,

a canalha infernal com seu antigo

estrondo, por tomar nela vingança,

mas logo vira as costas sem tardança.

 

(244)

Logo dali fugiram espantados,

não podendo sofrer a fortaleza

do nome com que foram já lançados

dos alvos céus na baixa profundeza:

Do nome de Jesus amedrontados

que a Madalena chama com firmeza;

Se afastam dali logo, mui raivosos,

e de vingar-se dela desejosos.

 

(245)

Mas Satanás, que viu tal cobardia

tal afronta e grande abatimento,

com ira e grande raiva os repreendia

dizendo-lhes com grande agastamento:

 

Satanás

Qu’é da vossa valentia

qu’é do vosso valor e atrevimento?

Qu’é do vosso esforço? Com tal fraqueza

acabais vossa antiga fortaleza.

 

(246)

Sus, tornemos, tornemos com fervor

não soframos tal abatimento!

Lembrai-vos, companheiros, do valor

por vós tem o mundo acatamento,

isto se há-de sofrer que tal tremor

acanhe tão ousado ajuntamento?

Que soframos que a fraqueza é feminil

afugente e desbarate tantos mil?

 

(247)

Olhai, que ficais aqui vencidos

por vossa cobardia nesta guerra

perdeis vosso valor, e sereis tido

em desprezo mui grande pela terra:

Cobrai forças, soldados abatidos,

mostrai que nesses peitos se encerra

ânimo grande, forças, ousadia

e que tudo vence, pode o que porfia.

 

Autor

(248)

Acometem-na logo os furiosos

com tanto estrondo, grita e alaridos,

que nos rochedos altos cavernosos,

e  remotos vales foram ouvidos:

Chamas de fogo lançam, mui raivosos

de afronta recebida, mui servidos

estavam em tomar dela vingança

mas atrás logo se tornam sem tardança.

 

(249)

Os olhos põe no céu, lágrimas lança

a Madalena, guerreira valerosa,

sem mostrar cobardia, nem mudança

diz perant’aquela turba furiosa:

 

Madalena

Cansai, peço Senhor, a quem me cansa,

defendei-me com mão mui poderosa

que convosco não temo mil armados,

nem fortes esquadrões bem concertados.

 

(250)

Em vós pus, meu Senhor, minha esperança

não seja confundida eternamente

peço-vos, bom Jesus, com confiança,

que me queirais livrar desta serpente:

Bem vedes, meu Deus, que não descansa

tentando-me cruel e fortemente,

defendei-me Senhor, com braço forte

porque não temerei a mesma morte.

 

(251)

Inclinai vosso peito com brandura

pois nele nunca falta piedade,

nos brados desta vossa criatura

socorrei, meu Senhor, com brevidade:

Olhai minha aflição, tão fera e dura

no meio de tão grande tempestade

livrai-me, não desmaie com fraqueza

em tão vigorosa e áspera empreza.

 

(252)

Peço-vos, doce Jesus, doce cuidado

refúgio de minha alma, e meu abrigo,

pois já meu coração vos tenho dado,

me livreis Senhor meu deste perigo:

Bem vedes, bom Jesus, quão forte e ousado

se mostra contra mim o fero imigo;

Quebrai-lhe suas forças, que não possa

prevalecer contra mim, serva vossa.

 

(253)

Mostrai-lhe que só vós sois poderoso,

E que só vós deveis de ser temido;

Lançai no lago triste tenebroso

este inimigo que nada já perdido:

Permiti-me Senhor, que com  repouso

vos dê sempre minha alma e meu sentido;

Veja o autor do mal e da discórdia

que vós sói só pai de misericórdia.

 

Autor

(254)

Teve tão grande força esta oração

e pôs tanto pavor no seu imigo,

que com vergonha sua, confusão

teve, experimentou mais seu perigo:

Desapareceu logo a multidão

que veio de Aqueronte, seu abrigo,

tornando-se a meter no negro Averno

com temor do poder do sempiterno.

 

(255)

Acha-se a Madalena consolada,

sentindo dentro de si nova alegria

por ver-se socorrida e ajudada

do céu, a quem favor sempre pedia:

Já livre se vê, já desabafada

daquela multidão que, com porfia,

tão grande perdição lhe procurava

e sem lhe dar descanso a molestava.

 

(256)

Está louvores mil e graças dando

ao bom Jesus, seu mestre e seu Senhor;

Lágrimas de prazer está lançando

dizendo por ver Deus em seu favor:

 

Madalena

Meu Senhor, por quem sempre suspirando

esta alma está, meu abrigo e defensor,

que graças vos darei, amor divino,

pelos bens que recebo de contino?

 

(257)

Em lágrimas meus olhos desfarei

com lembrança de vossa saudade

com que a dura terra humedecerei

ficando com ver-me o sol sem claridade:

O ar, com tais suspiros encherei

que os pássaros mova à piedade,

e quanto mais chorar, mais crescerá

a fonte que de meus olhos manará.

 

(258)

E pois por amor choro, amor me ajuda,

amor que me tem toda em si mudada

o qual me faz falar, me faz ser muda

e a tanta alteza me subiu do nada:

Amor, minha esperança, minha ajuda,

amor, repouso meu, minha morada,

mostrai-me, claro amor, a bela face

da qual todo meu bem e amor nasce.

 

(259)

Quem como vós amou no céu e terra?

Quem como vós, meu Deus tão glorioso?

Quem como vós Senhor, em quem se encerra

todo saber? E quem tão poderoso?

vós venceste só a dura guerra

com que me perseguia sem repouso,

com todo o seu poder, o fero imigo

que tanto desejo tem de meu perigo.

 

(260)

Convosco recebi grande alegria

meu fraco coração ficou mui forte,

minha alma, que temores padecia,

já’gora não teme a mesma morte:

Temia, meu Senhor, por que não via,

na grande tempestade, o claro norte,

por quem seguisse sempre sem mudança

pondo só em vós minha esperança.

 

(261)

Cantarei, meu Senhor, vossa vitórias

pois, por vossa mão foram vencidos

os feros inimigos; darão glórias

ao vosso santo nome meus sentidos:

Serão por todo o mundo mui notórias

vossas obras, pois que vejo destruídos

com grande prazer meu, por braço forte

aqueles que buscavam minha morte.

 

(262)

Quem santo, como vós, meu doce amor?

Quem como vós, meu Deus, tão amoroso?

Quem, forte como vós, meu redentor?

Quem como vós, Senhor, tão poderoso?

Não há Deus senão vós, meu defensor

de quem treme o abismo tenebroso:

Vós defendeis os vossos de perigos,

de vós têm grã temor os inimigos.

 

(263)

As armas dos mais fortes são vencidas,

os fracos por vós cobram fortaleza,

as forças dos soberbos destruídas,

são dadas novas forças à fraqueza:

Vós só, Senhor, tendes e dais vidas

vós pobres fazeis, vós dais riqueza

soberbos nos infernos alançais

humildes lá no céu alevantais.

 

(264)

Vencestes o cavalo e cavaleiro,

esquadrões bem armados destruístes

vencestes mui fero aventureiro

livraste com mão forte e redimistes:

Quem, como vós, amor forte e guerreiro

que choros e gemidos não ouvistes?

Os fracos são por vós favorecidos

e os fortes e soberbos abatidos.

 

(265)

Quem vos pediu favor que não no visse?

Qual dos vossos se viu tão perseguido

que logo vossa ajuda não sentisse,

sendo de vossa mão favorecido?

Ou quem bradou por vós, que não ouvisse

resposta mui suave a seu gemido?

Que natureza, há tão fera e dura,

que não sinta em si vossa brandura.

 

(266)

Não mostreis, alma minha, ter receio

dos medos do demónio e seu bramidos,

mostra um forte coração, um peito cheio

de amor, e nele emprega teus sentidos:

Todo temor já’gora seja alheio

de corações doces favorecidos,

nem temas, pois fugiram teus imigos

e tu ficaste livre de perigos.

 

(267)

Alegra-te no Senhor, ó alma minha,

canta-lhe mil louvores de contino,

pois ele é teu favor, tua mézinha

teu amor mui suave, e mui benigno:

Alegra-te, pois deixas quem te tinha,

e tens por defensor contra o maligno

aquele que governa céus e terra,

e o imigo mau de ti se desterra.

 

(268)

Louvai céus, o Senhor, lá nas alturas

e vós com doce voz cantai louvores,

anjos, arcanjos e virtudes puras

em cujo peito nunca há temores:

E vós também, humanas criaturas

o louvai, por mi, por tais favores,

cantando seu louvor eternamente,

pois pera mulher má foi tão clemente.

 

(269)

E tu, sol, cuja luz tão clara e pura

e às baixas terras mostras o claro dia,

de quem se esconde sempre a noite escura,

e os campos se revestem de alegria:

Pois és obra de Deus, e criatura,

louva teu criador a grã porfia,

pois te deu tais virtudes e belezas

que o mundo enches de luz e de riquezas.

 

(270)

Ah deixa, Délio, deixa o arco duro

com que já deste a Piton morte dura,

de Dafne não te lembres, pois em ouro

tem já mudada a sua fermosura:

A tua doce lira, grão tesouro

das brandas musas, canta com brandura

louvores do Senhor, pois é mui digno

que a teu criador louves de contino.

 

(271)

E tu, Diana bela, que as montanhas

seguindo vais, por gosto, com donzelas

em bela fermosura mui estranhas,

parecendo sol claro, e elas estrelas:

Deixa de louvar tuas façanhas

e louva teu Senhor com todas elas,

que eu nele me vou toda transformando

e vós, olhos, qual de lince o ide buscando.

 

(272)

E vós, ninfas do cristal do firmamento,

livres de corrupção, mansas, benignas,

louvai também a Deus cada momento

por suas maravilhas tão divinas:

Louve também a Deus todo o elemento,

montes, serras, vales e campinas,

pois Ele disse, e tudo foi criado,

e logo obedeceu a seu mandado.

 

(273)

Tudo que criou, tão sabiamente

ordenou, com tal sorte e com tal arte,

que permanece assim eternamente,

sem falta se enxergar n’alguma parte:

A uns tempos noutros, sucessivamente.

a geração das cousas se reparte,

conservando-se todas com cuidado

sem passar do que Deus lhe tem mandado.

 

(274)

Louvai dragões, e abismos cavernosos,

o Senhor que governa céus e terra!

Vós fogo, raios, ventos espantosos,

pois ele por mi venceu a guerra:

Outeiros, montes, plantas e cheirosos

cedros; fontes, rios e alta serra,

rebanhos, feras, aves e serpentes

cantai de seus louvores entre as gentes.

 

(275)

Vós príncipes da terra, imperadores,

que por mercê de Deus sois mais subidos,

dai-lhe mil graças sempre, dai louvores

por mostrar-vos nisso agradecidos:

E isto tanto mais deveis, quanto maiores

sois na terra, de todos tão servidos;

Mancebos, moços, velhos e meninos,

cantai a Deus louvores mui continos.

 

Autor

(276)

Fez pausa a Madalena, e deu remate,

influída no amor que n’alma tinha,

por que viu que ligeiro as asas bate

um anjo que do céu por ela vinha:

 

Anjo

Alegra-te mulher que tu és mate

de grandes corações, e bem convinha

padeceres: que em casos perigosos

se mostram os fortes e animosos.

 

(277)

Qual no fogo o ouro que mais se apura,

nos trabalhos se apura a fortaleza,

nos casos mais adversos da ventura

a constância do forte é grã riqueza:

Nas cousas a que néscios não dão cura

resplandece a prudência com viveza,

sem guerra não se alcança bem vitória

com que se goza paz com grande glória.

 

(278)

Na terra oprimis o fraco, mas o forte

que fica em campo sendo vencedor,

sai vitorioso sempre, em toda a sorte,

o coração ousado e sem temor:

Quem segue e tem a Deus sempre por norte,

não poderá sentir nunca desfavor,

sem guerra não se alcança a fama

que pelo mundo corre e se derrama.

 

(279)

Não pode contra estar a parca dura

a fortes corações que em Deus confiam,

aqueles que esperam na ventura

da suma omnipotência não se fiam:

aqueles andavam sempre em noite escura

que da luz do sol divino se desviam,

aquele é vencedor da morte fera

que no Senhor confia e nele espera.

 

(280)

Venceste Madalena a fera morte

vencendo-te a ti mesma nesta guerra,

mostraste coração ousado e forte,

ao céu deste prazer, espanto à terra,

em prémio desta tua boa sorte

aquele em cuja mão tudo se encerra

te dá por companheira a fortaleza

que te defenda sempre de fraqueza.

 

(281)

A fé, e caridade, e esperança

em teu peito farão sua morada;

De ti nunca farão já mais mudança

a prudência e modéstia tão gabada:

Terás sempre contigo a confiança

em Deus, de quem serás aconselhada;

Terás sempre por escudo a paciência

por armas, mansidão e mais clemência.

 

(282)

As lágrimas te dá por doce fruto

em amor e temperança temperadas,

e delas não será teu rosto enxuto

que se elas de amor são, são estimadas:

Com elas pagarás a Deus tributo

e serão tuas mágoas bem lavadas;

Será teu manto a pura honestidade

e teu manjar amor, e sã vontade.

 

(283)

Terás mais por brasão de tua fama,

humilde coração, manso e benigno;

Com eles vencerás a viva chama

em que soberbos ardem de contino;

Não te porá temor a mão que brama

de inveja contra bons: mas teu destino

será servir a Deus com fé mui pura

com sossego, descanso e paz segura.

 

(284)

Esta coroa rica, e bem lavrada

por mãos dos mesmos anjos, nessa glória

de virtudes cem mil, mui esmaltada,

tens sempre em sinal desta vitória;

Depois de morta, vida descansada

no céu: e na terra, honras por memória,

que bem merece uma alma vencedora

mais honra que esta; fica-te embora.

 

Madalena

(285)

Se minha alma, meu Deus e meu Senhor,

muito tempo há rendida não tivera,

tem tal força, tal poder este favor

que, no mesmo instante, logo a rendera:

Que quem já se transformou em vós, Senhor

cousa não pode ter, que vos não dera;

E pois, não tendo já de meu que vos dar possa

deixarei de ser minha, por ser vossa.

 

(286)

Bem vejo que não é de muito preço

cousa tão suja, e cheia de maldade,

mas o que por ser esta desmereço

mereço na pureza da vontade:

É verdade Senhor, que me ofereço

gastada em torpezas já a flor da idade,

mas não me desprezeis em tal estado

pois tenho meu amor em vós mudado.

 

(287)

Tão firme serei, e tão constante

na troca do amor que tenho feito

que cousa algu’a não será bastante

pera tirar vosso amor já de meu peito:

E pois esta há-de ser d’hoje em diante

o coração, a fé, e amor perfeito

daqui vos dou, e muito mais dera

se outra cousa melhor de meu tivera.

 

(288)

Por que tão outra sou do que soía

que própria a mi mesma desconheço,

por que se a mi o mundo me seguia

já agora por vosso amor o aborreço:

Pois de todo então não conhecia

o engano que já claro conheço,

pera satisfazer tal malefício

a vós me ofereço com sacrifício.

 

 


      

Soneto à mesma Santa

 

Ditosa penitente, amor ditoso

lágrimas amorosas bem choradas

com dor e grave pena derramadas

aos pés do soberano e doce esposo:

 

Ó pranto só, felice e venturoso

ó lágrimas no céu mui estimadas,

ó lágrimas cristalinas só geradas

no peito donde o amor tem seu repouso.

 

Aqui mudaste vossa natureza

tornando-vos de tristes deleitosas

todas vos converteste em doçura.

 

Esforço estais mostrando e não fraqueza,

nem sois amargas já, mas deleitosas

porque vos ides banhar em fonte pura.

 

 

Outro

 

De teus fermosos olhos vão correndo

pérolas de cristal em tal brandura

que nelas não haja se não brandura

em que todas se vão já convertendo;

 

Todo seu amargor estão perdendo,

Madalena, naquela fonte pura,

na qual tua alma tanto mais se apura

quanto mais largo pranto vais fazendo;

 

Andavas feia, e cega, e mui perdida,

agora que em tal banho estás banhada,

de sua luz te vejo revestida;

 

A vista de teus olhos tens ganhada

depois que te chegaste à mesma vida

com vida, e fermosura melhorada.

 

 

Outro

 

Com rezão Madalena te é dado

o bem que com descanso tens presente

e dele gozavas eternamente

pois por fogo e água tens passado;

 

As águas que tens, os olhos tem chorado,

mostraste estar de ti mui descontente

o fogo foi amor em Deus ardente

em quem teu coração foi apurado:

 

Daqui saiu tua alma renovada

vencido mesmo o sol em fermosura

de vestidos divinos esmaltada;

 

Daqui ficou tão limpa, bela e pura

que dos coros celestiais foi levada

pera gozar de Deus lá nessa altura.

 

 

Outro

 

A escada de Jacob da terra via

por arte singular tocar no céu

de anjos resplandecentes pareceu

mas nem um sem descer ao céu subia.

 

Assi pera subir, desce Maria

das torres ao estado em que nasceu

E no degrau primeiro que escolheu

em lágrimas de amor se desfazia.

 

Desta arte pôs amor a Madalena

no mais baixo lugar da humilde terra

por que subindo mais, fosse mais bela.

 

E sobe a santa tanto que aferra

nos pés do eterno Deus, exemplo nela

que do mais baixo vale faz mor serra.

 


Critérios de Transcrição:

O Tratado da Maravilhosa Conversão é um documento manuscrito, anónimo, sem indicação de fólio, que apresenta as primeiras páginas muito estragadas nos cantos. Não oferece, portanto, quaisquer indicações quanto aos aspectos da escrita.

Relativamente à sintaxe, encontram-se algumas faltas de concordância entre sujeito e verbo, entre substantivo e adjectivo. A pontuação é rara. Quanto à ortografia, mostra opções não uniformes (imigo/inimigo, p.ex.), além de troca de letras, esquecimento de marcas de nasalação, etc.

Adoptou-se o critério da modernização, mas com o cuidado de não afectar a realidade fonológica e fonética do estado da língua tal como se apresenta, o que levou ao manter de alguns arcaísmos. No caso de dúvida, a reconstituição foi orientada pelo respeito entre sentido e prosódia, que também conduziram ao aceitar da segunda proposta quando perante uma rasura do copista.

As unidades estróficas e o destaque de indicações de fala nos diálogos são originais, assim como a numeração das estrofes.

Relativamente à ortografia, normalizou-se a acentuação, desenvolveram-se as abreviaturas, separaram-se (ou uniram-se) as palavras, bem como os pronomes enclíticos e mesoclíticos do verbo, de acordo com o uso actual. Substituiram-se os raros grafemas <y> por <i>, e os grupos vocálicos orais <eo>, por <éu> ou <eio>; <ea> por <eia>. As vogais nasais, quando em sílaba interior e em posição pré consonântica, foram transcritas seguidas de <m> ou <n>; quando em sílaba final, ficaram com til (vam - vã). Foram desdobradas as vogais  que aparecem em contracção, e contraídas as que exigiam acentuação (fee-fé). Porque aleatória, regularizou-se a ortografia das terminações nasais correspondentes a ditongos: (dizião-diziam); aos grafemas <ç> e <s>, <-s-> e <-ss->, <s> e <z>, <j> e <g>; o uso de <h> foi restituído quando ausente, ou eliminado quando associado a consoante (excepto nos casos <nh> e <lh>); o <u> nasalado, passou a um. Normalizou-se o uso dos dígrafos <gu> (digua/diga), e <qu> antes de vogal com valor de <k> (nunqua/nunca); <-ff->, <-ll->, <-mm-> e <-cc-> são reduzidas a consoante simples.

Por exigências prosódicas, ou por respeito ao sentido do termo na época, manteve-se a grafia de: antre; contino; cousa; empreza; estremo; fermoso; imigo; mui; mor; pera; rezão; por norma, quando aparece mais do que uma versão das outras palavras, optou-se pela mais recente.

[]


[1] Anónimo, TRATADO DA MARAVILHOSA CONVERSÃO DA MADALENA E DAS MAIS GRAVES TENTAÇÕES QUE TEVE DO DEMONIO [B.P.E. Ms., Cód. CXIX/2-10] 

[2]  Aparece sempre com o sentido de causar dano-lástima;