imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas - a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003 |
[] Tratado da maravilhosa conversão da madalena... [1]
Ao leitor
Se entrando num jardim mui deleitoso,
terras fartas de ver a fermosura
do campo, esmaltado da verdura
qual rosa, qual jasmim, cravo cheiroso
Aqui verás leitor, se curioso
um jardim e vergel de tal frescura
que as Musas do Parnaso, por ventura
dirão não haver visto mais fermoso.
O lírio tens aqui da castidade
o cravo da afeição, rosa de amor
com flores mais que dão suavidade;
Nota pois tudo bem, sábio leitor
que quem de couzas tem tal, na verdade
que tesouros pode achar de mor valor?
* * *
... triunfo serve a tua vitória
a qual, sem dura guerra não se alcança
o amor, Madalena, foi a lança
com que venceste guerra tão notória.
Sempiterna será tua memória,
e sempre viverá sem ter mudança
nos homens, e nos Anjos, a lembrança
de tanta fortaleza, e tanta glória.
O céu, por teus trabalhos, te tem dado
prémio, de que agora estás gozando,
que quem tão bem peleja, dom merece.
A tua alma não tem algum cuidado
senão daquele amor que estás amando
paga de teu amor, teu interesse.
Tratado da Maravilhosa
Conversão da Madalena
e das mais graves tenta-
ções que teve do demónio
vai em modo de diálogo
Autor
(1)
Na manhã mais clara, e mais serena
de quantas jamais viu a redondeza
a Madalena s’atavia e ordena
pera dar ao mundo mate com beleza.
E, qual aurora bela e mui serena
fazendo vai nas almas grande empreza,
que a força de seus verdes olhos belos
cativos deixa quantos ousam vê-los.
(2)
... as Vaidades enlevada
... cheiros e perfumes mais se apura
... ser de muitos loucos cobiçada
a quem nunca perdoa a fermosura
De pensamentos vãos acompanhada,
a muitos vai fazendo guerra dura
roubando-lhes vai alma e sentidos
ficando só de vê-la bem perdidos.
(3)
Ia com tanta graça e tão airosa
mostrando mil efeitos amorosos
com que roubava a graça a toda a rosa
a frescura aos campos deleitosos.
Esquecida de si, mas desejosa
de dar vista de seus olhos fermosos
por ruas, e por praças vai passando
a todos, e quantos vê vai namorando.
(4)
Entra no sacro templo como estrela
com tanta fermosura e tal beleza
que todos logo põem os olhos nela
espantados de ver tal gentileza:
Mas o divino sol, cuja luz bela
resplandecia já na redondeza
vendo aquel’alma cega e tão perdida
dar-lhe luz, e graça não duvida.
(5)
Sucede à Madalena, nesse dia,
o que nunca alcançou seu pensamento
por que, nas mesmas redes que trazia,
ficou enredada em um momento:
Com redes d’amor, almas mil prendia
E nisto ganha seu contentamento
com redes d’amor fica agora presa
em que cuidou meter mui larga despesa.
(6)
Oh meu Deus, oh meu Deus soberano
como curais tudo sabiamente,
pois segund’o mal do peito humano,
lhe dais o remédio equivalente:
Não via a Madalena o seu engano,
mas vós lho mostrais logo claramente
se do mundano amor ferida vinha,
de amor divino leva já mézinha.
(7)
Os seus divinos olhos pôs Deus nela,
tirando-lhe a cegueira que trazia
e mostra-lhe que estava pouco bela,
mui feia, morta, cega e fria:
E tendo-a ferida com aquela
luz, que lhe mostrou bem quão mal vivia,
seu frio peito logo foi vencido
e de seu puro amor enlouquecido.
(8)
Mas sua fugitiva fermosura
que tão linda aos olhos se mostrava,
era engano certo, que a alma escura
mui feia, cega e triste sempre andava.
Defunta já estava já na sepultura,
que a fera e eterna morte rodeava
pois sete feros monstros n’alma tinha
os quais servia, amava e mantinha.
(9)
Já seus divinos raios derramava
O Deus mortal coberto e revestido,
aquele Sol divino que inda estava
no mundo dos mortais desconhecido:
Qual sol por antre nuvens já lançava
Seu raio em vivas chamas encendido
com que toda a dureza abranda logo
E frio é tornado em Vivo Fogo.
(10)
Qual caçador que leva seu destino
na caça que persegue sem repouso,
tal anda o caçador manso e benigno
da caça que prossegue desejoso.
O desejo que mostrava de contino
era dar a cegos vista, e o leproso
curar - a mortos dar eterna Vida
Mercê grande, e de nós mal merecida.
(11)
No templo estava já resplandecendo
com a luz de seus sermões e sã doutrina,
com raios rutilantes desfazendo
astúcias em que estava a gente indigna.
Pera ele a Madalena vai correndo,
e nele fazer presa determina
no templo onde o povo junto via
do que contentamento recebia.
(12)
Ah quantas Madalenas acharemos
hoje no mundo: ah grande Vaidade
tão más como esta que aqui temos,
entregues a seu querer e liberdade.
Olhemos pera os templos e veremos
que fundamentos os leva, que vontade
senão uma vã glória, um pensamento
que em fim acaba, e leva o vento.
(13)
Não falo das honestas, generosas
a quem a lei, e fé, e sangue obriga
a serem sempre castas, virtuosas,
nem é justo do bem que mal se diga.
Porque estas tais são pedras preciosas
a quem sujar não pode a língua imiga
antes é mui justo que s’engrandeçam
com louvores tais que não pereçam.
(14)
Querendo comer mel, amor, um dia
às colmeias se foi mui atrevido,
mas como andava nu, e nada via,
das abelhas foi todo bem mordido.
Chorando a grande dor que padecia
atrás se torna logo mui sentido
a mostrar vai correndo sua mágoa
a Vénus com seus olhos cheios de água.
(15)
Agora verá filho, lhe dizia
a fermosa Vénus com brandura,
a pena e grande dor que n’alma cria
quando aferra tua seta dura,
pois, quem tantos fere com porfia,
quem tantos lastimou[2], sempre procura
que sinta alguma ora dor e pena
a justa rezão assim o ordena.
(16)
Não merece colher o doce fruto
quem d’amargura nunca tem gostado
estima quem não tem o rosto enxuto
o gosto que por coro tem comprado,
lágrimas, dor e pena são tributo
com que se paga o doce cobiçado
não se preza muito o bem que se alcança
sem trabalho, pena e esquivança.
(17)
Andava a Madalena qual Diana
quando as montanhas trácias frequentava
seguindo a loba não, nem tigre africana
mas almas amorosas que roubava.
Ah, quantas fere mal, quantas engana
com a vã fermosura que levava
com mui forçosa mão, todas consigo
sem verem seu engano nem perigo.
(18)
Oh divino Senhor, rei poderoso
quão profundas são, quão milagrosas
as obras com que sois maravilhoso
pois tidas são em si mui poderosas.
Vós em todas sois mui amoroso,
E todas são d’amor mui grandiosas
em todas resplandece qual sejais
pelo grande amor que nos mostrais.
(19)
Tal vai a Madalena mui rendida
a seu desonesto amor, amor mundano
buscando sabor nele vai perdida
sem ver (tão cega vai) seu grande dano.
Mas sendo d’aguilhões doces ferida,
vê logo claramente seu engano
o qual não vira nunca se não fora
ferida d’amor algu’a hora.
[Falta um fólio (estrofes 20 a 23); presume-se que o seguinte abra com a continuação de uma fala do «Autor» a comentar um sermão de Cristo.]
(24)
Um sermão fez mui alto e mui subido,
em que todos os vícios repreendia,
ameaça o vicioso esquecido?,
as virtudes somente encarecia:
ao torpe desonesto e perdido.
E em vaidades gasta noite e dia,
dizia o clementíssimo Senhor
com palavras procedidas de amor
Cristo
(25)
Desonesto, em que empregas teu sentido?
que segue teu desejo e pensamento:
quem traz o seu juízo tão perdido
não vês que és pó e cinza e leve vento?
Quem te leva após si tão esquecido?
Quem faz que busques aqui contentamento?
Olha que vais errado como cego
se pretendes no mundo achar sossego.
(26)
Como não vês, pobre homem, teu engano
que deuses são os teus a quem adoras
não vês que foge o dia, o mês, o ano?
Não vês que foge a vida co’as horas?
Ah, triste sem juízo, vê teu dano
que tais riquezas são perecedoura
alarga terra, a terra, a mesma terra
não te vejas depois em dura guerra.
(27)
Ai de vós, ai de vós, homens sem siso
em que andais? Em que pondes os cuidados?
Não sabeis que há morrer, e que há juízo?
E todos haveis de ser julgados!
Pois eu vos admoesto e vos aviso
que façais penitência dos pecados
com dor de coração, com amargura
antes que venha a morte fera e dura.
(28)
Olha bem que a quem te deu riqueza,
a quem te deu tão rara fermosura
mostrar ingratidão é grã baixeza:
E ofendê-lo com ela é couza dura,
não sabes que essa tua gentileza
mui cedo se verá na sepultura
e tua alma arderá no fogo eterno
por ter tão ofendido o sempiterno.
Autor
(29)
O peito desta dama foi ferido
com um temor grande do que ouvira
Que os vivos, que Deus tinha repreendido
claramente em si todos os vira;
Já perde a cor do rosto e os sentidos
e corrida de si já se escondia
já cobre a bela face que ind’agora
estava de mil almas vencedora.
(30)
De sua vaidade pesarosa,
da vida mal gastada mui corrida,
de seu descuido grande mui queixosa
se mostra descontente e arrependida.
Confusa está de si, e vergonhosa,
e propõe de fazer mui nova vida
pedindo no secreto do seu peito
remédio, a quem o tem já sujeito.
(31)
Já chora amargamente suspirando
já geme, já soluça, e se lastima
já as liquidas pérolas vão regando
aquelas faces tidas em tanta estima:
Seus suspiros mil almas lastimando
estão: mas ela todas desestima,
já se cobre corrida e lança em terra
aquela que fazia a todos guerra.
(32)
Já os verdes olhos belos não levanta
que em fontes de cristal tem convertidos
destilando vai deles água tanta
que move à compaixão quaisquer sentidos:
O mundo já talvez muito se espanta
confuso está de ver tantos gemidos,
com quantos o céu puro vai rompendo
chorando, soluçando e mais gemendo.
(33)
Não sabe quando já fora se veja
do templo: pera dar lugar ao pranto,
pois não vê couza ali que lhe não seja
motivo de vergonha e mor espanto.
Em sua casa já ver-se deseja,
pera ela vai coberta com seu manto
por que já dado fim ao sermão tinha
aquele que a todos é mezinha.
(34)
Já julga por mui largo e mui comprido
o caminho que dantes parecia
tão curto a seu desejo, que perdido
por ali tão pouco há, perdido havia.
O amor leva seu peito mui ferido
o coração de dor e de agonia
e alma leva cheia de tormento
nascido de um triste pensamento.
(35)
Já caminhando vai, mui apressada
nada lhe põem diante impedimento
que n’alma vai ferida, e mui chagada
e todo vagar lhe é grande tormento.
De si fugindo vai mui lastimada
que n’alma leva pena e sentimento
de sua mal gastada e torpe vida,
da qual mostras dá de arrependida.
(36)
Qual cerva ferida que correndo
em busca vai da fonte conhecida
por dar remédio ao mal que vai sofrendo,
gastada quasi toda e consumida:
Tal vai a Madalena, pretendendo
de reparar nas águas sua vida,
que vida com tais vícios maculava
convém-lhe em muita água ser lavada.
(37)
Das águas de seus olhos determina
fazer um largo banho e banhar-se
E deles água lança tão contina
que dela pode um rio bem gerar-se:
Ah, peito generoso quem te ensina
que pode tua vida reparar-se
nas fontes cristalinas desses olhos
que lágrimas manando vêm a molhos.
(38)
Mas não m’espanta já banhar-se em água
uma alma cujo peito convertido
está já noutro Etna ardente frágoa
que causa amor, dor, choro e gemido:
Se é grão sinal de amor a muita mágoa
que mostra ter, de ter Deus ofendido
E da mágoa que pena lhe está dando
estar banhada em água, e soluçando.
(39)
Ah, lágrimas suaves, venturosas
quão certo remédio sois, e que triaga
das feras mordeduras venenosas
com que a serpente antiga as almas chaga,
sois em o alto céu mui preciosas
convosco se repara quanto estraga
nas almas, o maligno, com engano
que sempre anda buscando o dano.
(40)
As almas que mais andam maculadas
de vícios e torpezas alimpais,
por vós são nossas almas superadas
E a justiça divina mitigais:
As almas que por vós são navegadas
a bom porto seguro as levais
por vós é Deus movido à piedade,
e perdoa qualquer falta e maldade.
(41)
Que peito pode haver tão fero e duro
que lágrimas não movam à brandura!
Lágrimas abrandam e tornam puro
o céu: e clara tornam a noite escura:
As lágrimas são torre e forte muro,
em que alma se defende e está segura
se muito podem lágrimas na terra,
mais podem no céu, com sua guerra.
(42)
Lágrimas vão rompendo os elementos,
pelos céus cristalinos vão passando,
não param de chegar aos aposentos
donde Deus está tudo contemplando:
Nossas necessidades e tormentos
de contino lhe estão apresentando
E Sara nos dirá, e o bom Tobias,
que lágrimas são mui seguras guias.
(43)
David em Israel rei escolhido,
com lágrimas choradas abrandou
o peito do Senhor dele ofendido,
e perdão de seus erros alcançou;
e Pedro que se via arrependido,
por negar ao bom mestre que negou
por lágrimas choradas de contino
o céu lhe foi propício e benigno.
(44)
Pecador que estás sujo e maculado
de vícios, e pecados, e mil mágoas
mostra dor, e pesar, e tem cuidado
de vir à Fonte pura destas aguas:
Vem logo, e ficarás purificado
qual sói ficar o ouro em vivas fráguas,
que lágrimas apuram, e fazem belas,
a todos os que se vêm lavar em elas.
(45)
Neste pranto ia toda consumida
mostrando quanta pena n’alma sente
aquela pecadora cuja vida
em vícios foi gastada cegamente:
Chorando vai mui triste e arrependida,
da vida que gastou tão torpemente,
nem busca já alguns contentamentos
senão suspiros, prantos e tormentos.
(46)
Depois que à sua casa foi chegada,
se foi recolher só num aposento,
em água de cristal toda banhada
onde melhor chore seu tormento.
Aqui de sua dor mui lastimada,
de seus vestidos ricos num momento
se despe, e diz às jóias e toucados
em outro tempo dela tão prezados.
Madalena
(47)
Tirai-vos lá falsas louçainhas,
invenções de Satanás, só inventadas
em que mil almas míseras, mesquinhas
se enlevam de si mesmas descuidadas:
Tirai-vos lá toucados e vasquinhas
de pérolas custosas bem lavradas
por que corpo tão sujo e fedorento
não merece trazer tal ornamento.
(48)
E vós, cabelos louros tão prezados,
em que meus dias todos ocupava
pera serdes mais fermosos e dourados,
com que tantos mundanos enganava:
Já d’hoje por diante desprezados
vos vereis: de quem tanto vos prezava,
que quem de cousas vãs foi instrumento
bem é que também o seja de tormento.
(49)
Já não sereis de unguentos preciosos
como dantes ungidos, nem curados,
nem de toucados ricos curiosos
com arte, e com cuidado, bem toucados;
E pois lhe fostes vãos e enganosos,
sereis de minhas unhas arrancados;
E laços em que tantos se prenderam
que paguem com tal pena mereceram.
(50)
E vós, olhos, por meu mal tão graciosos,
em vaidades dantes ocupados,
em prantos vos tornai mui copiosos,
por que possais lavar bem meus pecados.
De quão alegres fostes já, chorosos
vos tornai; por que fostes descuidados,
dando entrada na alma a cruel morte
que a vida me roubou com braço forte.
(51)
Não quero que vejais já cousa algu’a
das que vãmente vistes algu’hora;
Mas quero que cegueis, e se consuma
nosso costume mau não vendo agora:
que (quem não viu, vendo) cousa nenhuma,
ser cega e nunca ver melhor lhe fôra;
e pois não vistes mais que vaidade,
perdei de ver agora a liberdade.
(52)
E vós, tornai-vos surdos meus ouvidos,
tão prontos pera ouvir brandos enganos,
que tanto me enganavam meus sentidos,
que n’alma me meteram muitos danos:
Não me fora melhor ter-vos perdidos,
que ver que tendes dado, tantos anos,
Aos brandos assobios da serpente
que nunca diz verdade, e sempre mente?
(53)
Em lugar dos requebros amorosos,
em lugar do suave e doce canto
com que no mundo fostes tão viçosos
gemidos ouvireis e triste pranto.
suspiros ouvireis, mui lastimosos
que vos porão temor e grande espanto
e bem é que quem fez tantos enganos
padeça sempre muito graves danos.
(54)
De ledos vos tornai, meus olhos, tristes
pois n’alma não meteste, tão sem tento,
todas as vaidades quantas vistes
fazendo em todas elas fundamento?
E pois, com cousas vãs, sempre seguistes
o meu mais vão, cego pensamento;
não é justo ver cousa alguma
mas que um triste pranto nos consuma.
(55)
Bem é que não vejais cousas humanas,
pois merecestes vós a luz divina
que as mais são só vãs, falsas e profanas
esta mui clara, certa, e mui benigna:
Está lá nas alturas soberanas
alumia cá na terra e nos ensina
o caminho do céu, sereno e puro
e livra do inferno triste e escuro.
(56)
Quanto mais que, quem tal som ouviu,
quem ouviu tão suave melodia,
quem dentro n’alma tal som sentiu,
não deve sentir lá outra alegria:
E pois ele vos sofreu, e não puniu,
esperando vossa emenda cada dia;
Não é justo que ouçais cousas humanas,
tendo ouvido tais, tão soberanas.
(57)
E vós, narizes meus, tão cobiçosos
de cheiros e perfumes delicados,
agora sentireis quão enganosos
sempre foram vossos vãos cuidados:
Buscáveis cheiros bons, e deleitosos
e neles como cegos ocupados
não víeis os maus cheiros e perfumes
de vossos mui torpíssimos costumes.
(58)
Do cheiro que buscáveis com engano,
um cheiro mui ruim estáveis dando,
deste s’estava sempre afastando:
Pois se fugir queríeis tão grave dano
convém-vos outro cheiro ir buscando,
cheiro de virtude e castidade
pera que assim purgueis vossa maldade.
(59)
Que tu, língua minha, foste instrumento
de lascivas palavras ociosas
e de brandos requebros fundamento
da perdição de almas amorosas:
Teus enganos falsos, teu fingimento
são a causa destas queixas lastimosas;
Ah quanto melhor fora seres muda,
ou mais severa, grave e mais sisuda.
(60)
Cuidavas que vencias bem falando,
mas então tuas falas descobrias
Que devêras encobrir, sempre calando,
ou pesar as palavras que dizias:
Que bem fala aquilo que, obrando,
ensina a deixar vãs palavrias;
E pois nunca aprendeste a calar-te
agora calarás em toda a parte.
(61)
E tu, ventre cruel, apetitoso
inventor de manjares delicados,
de mimos e regalos cobiçoso
de mil doces bocados concertados:
Agora sentirás quão desgostoso
é o gosto em que punhas teus cuidados,
Que se gosto te davam iguarias,
desgosto te darão noites e dias.
(62)
Em cuidar que te tinha farto e cheio,
pera ti mil bocados inventando,
fico fora de mim, toda me enleio,
pois um tão fero imigo fui criando:
Quanto mais te metia no meu seio
tanto mais contra mim te ia armando;
E em paga de poupar tal inimigo
A vida tenho posta em perigo.
(63)
Ah, engano grande, no mundo usado
Que buscam para o ventre mil manjares
fazendo seu inimigo esforçado
donde lhe soem nascer tantos pesares:
Pois quem quiser ter sempre sopeado
este inimigo fez em mil milhares,
não lhe deixe criar força, nem armar-se
por que assim não pode rebelar-se.
(64)
Que as mãos minhas, sempre perfumadas
de cheiros, tão cobertas de branduras,
tão mimosas de mi, tão estimadas
tão ocupadas em minhas vestiduras:
Pois que a mimos brandos fostes dadas
ásperas vos tornai, cruéis e duras;
E pois fostes de maldade instrumento,
agora o sereis de meu tormento.
(65)
Não servireis a falsa fermosura
com os ricos vestidos que vestindo
andáveis neste corpo sem ventura
que tanto m’andou sempre perseguindo:
Mas, em lugar dos mimos e brandura,
o castigo lhe anda sempre servindo
por brandas sedas lhe dareis cilícios,
que este quero que seja justo ofício.
(66)
De vós, meus pés, me irei sempre queixando
mui triste, descontente, e magoada
por que sempre convosco andei errando,
E me trouxestes sempre mui errada:
Não me fora melhor estar louvando,
recolhida em minha casa encerrada?
Isto é o que convém a dama honesta
que o demais é soltura manifesta.
(67)
De pérolas cobertos e calçados
andasteis: tudo o mais desprezando,
tantos mimosos de mi estão poupados
indo-me à morte sempre encaminhando:
Vós perdidos sempre, sempre errados,
andaste-me da vida trasmontando,
E quem segue tal caminho perde a vida.
a qual de todo tínheis já perdida.
(68)
Ai de mi, onde tinha meu sentido,
olhai onde trazia o pensamento,
não vias, ó mulher, a quão perdido
caminho te levava teu intento?
De mundo tão imundo e sementido
em cousas vãs fazias fundamento
torna sobre ti mulher perdida
e cobrarás de novo nova vida
(69)
Que vida foi a tua pecadora?
indigna de viver, de morrer digna,
má mulher, de ti mesma matadora.
Que cegueira foi esta, tão maligna,
que conta de ti tens dado, ofensora
daquela majestade tão divina,
diz da pureza que guardavas?
A que Deus servias? Quem adoravas?
(70)
Ai triste de mi, ai mulher perdida,
mulher abominável, sem juízo,
de mulheres afronta conhecida,
e de todas as castas prejuízo:
Má mulher: sem saber, sempre esquecida
de sua salvação; sem nenhum siso,
onde trazias, diz, os teus cuidados
que esperavas de intentos mal fundados?
(71)
Onde trazias, diz, o pensamento,
qu’é da vergonha honrosa que guardavas
de peitos feminis próprio ornamento
se de teu nome e fama, e fama não curavas:
De que fazias triste fundamento?
Que das torres do vento que fundavas
entende que fundaste torpe fama
que pelo mundo todo se derrama.
(72)
Lágrimas que fazeis, que não brotais
manando destes olhos como fontes!
E vós suspiros d’alma, onde estais
Que não saís rompendo os altos montes?
Saiam de meu duro peito tristes ais,
meus gemidos ouçam os horizontes,
acabem d’estilar meus olhos águas
acompanhando sempre minhas mágoas.
(73)
Ah! peito mais que pedra, endurecido,
como não se abranda já tua dureza
que parecias estar todo convertido
em mármore mui duro na frieza?
Abranda que mostrar-se empedernido
não é esforço não, mas é bruteza;
Larga a rédea já a meus gemidos
que com dureza tens tão impedidos.
(74)
Saí, suspiros tristes, das entranhas
com tão comprido pranto e tais gemidos,
que feras se lastimem, e montanhas
e se entristeçam os campos floridos:
Seriam vossas mágoas tão estranhas
que mágoa de vós tenham os nascidos
acabai de sair, dareis alento
à grave pena e dor que n’alma sento.
(75)
Não quero que me deis algum alento
na dor que estou sentindo, dura e forte,
mas quero que não cesse meu tormento
e nele a vida passe até à morte;
Que quem tão mal gastou tão grão talento
em vida vã, levada por seu norte,
por justo galardão, e interesse,
a morte, e toda a pena, bem merece.
(76)
Não cesses de chorar, geme e suspira,
desonesta mulher que, porventura,
com lágrimas, cessava a justa ira
que vingança de ti pede e procura:
Se teu erro no mundo não se vira,
não fora minha dor tão fera e dura
mas erros no mundo manifestos
a Deus e a homens são molestos.
(77)
Não cesseis de chorar olhos cansados,
o tormento cruel que esta alma sente,
que pois em ver não fostes moderados
chorai sem moderação eternamente:
Mostrai-vos olhos meus mui lastimados,
chorai vosso descuido amargamente,
chorai sem dar descanso, nem alento,
a tão contino mal e tal tormento.
(78)
Correi lágrimas minhas, correi tanto
que abram todo o mundo vossas águas,
que fique eu satisfeita de tal pranto,
em o lavrar gritando tantas magoas:
Correi lágrimas minhas, ponde espanto
com vossa grã corrente às altas fráguas
donde nascem e correm de contino
mil fontes de cristal mui puro e fino.
(79)
Pagai à dor tão grande grã tributo
não cesseis de estar sempre banhando
nunca de vós meu rosto seja enxuto
não canseis d’estar sempre manando:
De vós não quero colher outros frutos,
que estardes ao céu manifestando
a mágoa, dor, pena e tormento
que, de ter tão mal vivido, n’alma sento.
(80)
Aparta-te de mi, oh vida triste,
que fazes vida tão má aqui comigo?
aparta-te de mi, pois não fugiste
o mal que te trouxe a tal perigo:
Acaba, pois meu mal nunca sentiste
deixa-me que não quero estar contigo,
que mais me vale morrer sem tal consorte
pois sempre m’encaminhas pera morte.
(81)
Deixa-me, vida, indigna de ter vida
que vida tão vã e mal gastada
com rezão deve ser aborrecida
e sempre perseguida e maltratada:
Vai-te ao eterno fogo, alma perdida
a que te têm teus erros condenada,
que bem convém arder em fogo eterno
quem tem tão ofendido o sempiterno.
(82)
Ali terás o prémio das maldades
que, contra teu ser, tens cometido;
Ali se verão tuas vaidades
em que sempre ocupaste teu sentido;
Ali sempre terão eternidades
a pena que tens, e mal crescido.
E bem é que padeças mal tão forte
pois a vida deixaste pela morte.
(83)
Não cuides vida mais que alguma hora
de mi serás tratada brandamente,
porque a dor que nesta alma triste mora,
tratar-te com brandura não consente:
E tanto me aborreces que já’gora
tormento em te suster minha alma sente;
Vai-te daqui maldita, que me queres?
Se meu favor pretendes, não no esperes.
(84)
Que me fica, vida, em te perder perdendo?
Que posso estar de ti triste esperando?
Sabes, ó mísera vida, que estou vendo?
Que com perder-te fico mais ganhando:
A vida que me foi sempre metendo
na morte, tantos males inventando,
não recebo, em perdê-la, algum perigo,
antes ganho em perder este inimigo.
(85)
Onde me esconderei que me não vejam,
porque de ver-me eu mesma estou corrida
onde estarei segura que não sejam
meus erros manifestos em a vida:
Acaba vida nefanda, que me pesam
os anos que vivi cega e perdida;
Acaba de acabar-me, ó dura morte
que me corro viver já desta sorte.
(86)
Ó, quão ditosa fora se morrera
no dia que nasci, e nunca o vira
por qu’assim, a meu Deus nunca ofendera,
nem esta dor que sento, não sentira:
Nunca erros tão enormes cometera;
Isto chora minha alma, isto suspira
por que em muito viver mais se ofendeu
os homens na terra, e a Deus no céu.
(87)
Dos céus que me estão vendo, estou corrida.
da terra, esconder-me assaz desejo,
de ser de tantos vista, estou sentida,
que isto já pera mi é mal sobejo:
Tomara nunca ver, nem ser nascida
porque me da tormento quando vejo,
os olhos com que vejo me aborrecem
e os céus de ver-me se escurecem.
(88)
Não fora tão ditosa minha sorte
como daqueles todos que, em nascendo,
lhe rouba a vida logo a dura morte,
antes que a tal Deus perder vivendo:
Não fora tão cruel, tão dura e forte
a pena que minha alma está sofrendo,
a causa da qual, se a vida larga
o quanto mais se estende, mais s’estraga.
(89)
Cessem já todos meus contentamentos,
cessem meus vãos prazeres tão buscados,
recolhei-vos perdidos pensamentos
que não convém andar tão espalhados:
Convertam-se meus gostos em tormentos,
não vivam já nesta alma vãos cuidados,
que quem sempre viveu tão largamente
bem lhe convém chorar eternamente.
(90)
Quem tão bom Senhor tem ofendido,
quem deve quanto eu estou devendo,
pera cobrar o bem que tem perdido,
a tudo se deve estar oferecendo:
Mostra-te coração arrependido,
teus gostos deixando, e não querendo
já cousa que te dê contentamento
se não chorar vivendo teu tormento.
(91)
Apartai de mi vãs alegrias,
não se veja em mi senão só pranto,
nem vejam já meus olhos ledos dias,
mas todos lhes causem pena e espanto:
Lágrimas me sejam doces e pias,
a morte bom refugio, mas enquanto
se detém, não cobrindo meus cuidados,
não cesseis de chorar olhos cansados.
(92)
Ai, meu Deus, Senhor a quem confesso,
por quem esta alma minha já suspira,
e sempre suspirara se tal preço
qual tem o vosso amor em si sentira:
Se dantes conhecera o que conheço,
nunca minha alma cega s’impedira
com vão amor do mundo desonesto
engano da minha alma manifesto.
(93)
Ai, meu bom Deus, meu pai, meu redentor
que cegueira era a minha, pois não via
que vossa clara luz, e resplendor,
a terra, mar, e céu, sempre alumia:
Que dureza era a minha, meu Senhor!
que os golpes de amor vosso não sentia,
quem me apartou de vós com tal engano
fazendo-me seguir tão grave dano.
(94)
Que de vós, meu bom Deus, sempre fugia,
e vós, após mi íeis bradando,
quando de vós fugir mais pretendia,
tanto vos vínheis mais a mi chegando:
Se de vós fugindo me escondia,
vós me andáveis, meu Deus, sempre buscando,
e fugindo de vós, amor divino,
vós me chamáveis mais, dizendo de contino:
Cristo
(95)
Ah, cega pecadora, não te fies
do mundo, pois te anda enganando;
Mas vem-te pera mi, não te desvies,
pois sabes que a ti ando buscando:
Madalena acaba, não porfies,
não te queiras andar sempre ausentando;
Olha de quem foges, cega pecadora
que da vida vais fugindo de ora em ora.
(96)
Torna sobre si teu pensamento,
acaba de deixar tão grande engano,
em cousas vãs não faças fundamento;
não se te siga daí tão grave dano:
acaba de seguir teu cego intento,
acaba, deixa esse amor mundano,
que é mau, sem proveito e enganoso,
e a quem o vai seguindo mui custoso.
(97)
Oh cega, quem te cega, quem te engana
e quem te traz de ti tão apartada?
Não sejas, Madalena, desumana;
Ah, torna sobre ti, que vais errada:
Deixa a vida que segues, que é mundana,
e te traz após si tão enganada,
acaba de seguir teu mau caminho,
toma repouso já neste meu ninho.
(98)
Não vez que após ti ando de contino?
Oh, não me fujas, espera, espera,
acaba, deixa, cega, teu destino,
atenta já por ti, não sejas fera:
Olha este brando peito, tão benigno
que cheio de amor vem da alta esfera;
Ah, não fujas de mi: por que me foges?
Acaba de me ouvir, e não me anojes.
(99)
Não vez que, sendo Deus tão poderoso,
dos altos céus eterno criador,
por ser de condição mui piedoso
tomei forma de servo pecador:
Quem já mais se mostrou tão amoroso
que assim se desprezasse por amor?
Quem já mais perdeu a vida, por dar vida
a quem de todo a tinha perdida?
(100)
Não sabes que, por ti, dos céus à terra
desci: só de salvar-te desejoso?
Digno pois de amor é quem se desterra
só por ser clemente e piedoso:
Não vês que com fugir me fazes guerra
com que me trazes sempre mui queixoso?
Olha que por ti venho dar a vida
pera que a terra seja redimida.
(101)
Olha que, por te dar vida, me dispus
a padecer afronta e morte dura,
com outros mil opróbios, numa cruz,
sendo Criador eu da criatura:
Cobri-me de negra sombra por dar a luz
a quem viveu sempre em noite escura.
Olha pois, Madalena, que merece
quem por amor de ti tanto padece.
(102)
Que quem tudo isto vê, e não responde,
parece que me vai já desprezando
e bem mostra ser assi pois se esconde,
fugindo as costas me vai dando:
Ah espera, Madalena, espera já onde
te vês, perdida e cega, caminhando,
ah, torna sobre ti, torna e verás
que fora deste caminho errada vás.
(103)
Tantas faltas d’amor em mi conheces
tão pobre d’amor sou, tão abatido,
que por falta d’amor assim me deixes
pondo no falso mundo teu sentido?
Olha bem, e verás quem aborreces,
que não mereço ser aborrecido,
pois te venho buscar com grande amor
de desejoso de dar-te meu favor.
(104)
Que pode dar o mundo que não seja
engano manifesto e leve vento!
Quem seus gostos pretende e que deseja
colher descansos vãos, colhe tormento:
Se queres acertar, nunca te veja
no falso mundo pôr teu pensamento,
antes o põe em mi, com grande estudo,
que eu tudo posso dar, pois tenho tudo.
(105)
Quanto o mundo promete são enganos
e nunca cumpriu cousa prometida,
no cabo, dá mui claros desenganos
com que traz enganada a breve vida:
Se queres pois fugir tão graves danos
e ganhar tua vida já perdida,
chega-te pera mi, pois vês que t’espero
deixa esse mentiroso falso e fero.
(106)
Vem-te pera mi teu criador
que pera receber-te aparelhado
estou: com grã desejo, com amor,
os braços abertos e com o lado:
Olha que sou teu Deus e teu Senhor,
serve-me como tal com grã cuidado,
e deixa já enganos tão manifestos
que sempre te serão assaz molestos.
Madalena
(107)
Estas e outras cousas me dizia
na minha alma o Senhor cada minuto;
Mas eu, como perversa, não queria
d’amor tão grande fazer fundamento:
Afastava-me dele e lhe fugia,
por que nele não tinha o pensamento
que ao mundo a quem seguia o tinha dado
e nele tinha posto meu cuidado.
(108)
Mas ai, triste de mim, como já’gora
diante do Senhor me mostrarei
pois dele fui fugindo de hora em hora
por mil cuidados vãos a que me dei;
Ai pobre de mi, ai triste pecadora,
com que olhos a tão bom Senhor olharei
se por seguir um falso e vão engano
lhe fui sempre fugindo por meu dano.
(109)
Ai de mim, mulher cheia de maldade,
com que olhos chegarei a um Senhor
de cuja boca sempr’ouvi Verdade
e em que sempre enxerguei um puro amor:
Eu, cega em meu desejo e vaidade,
fugia da luz clara e resplendor;
Agora, que o conheço o meu engano,
chorarei com rezão tão grave dano.
(110)
Divina boca, cheia de brandura,
donde todo sabor está manando;
Ó fonte de desejos, ó doçura,
em quem se está minh’alma deleitando:
Que alma pode ser tão cega e dura
que não s’abrande vendo amor tão brando,
ou que coração tão endurecido,
que a tal amor não fique mui rendido.
(111)
Como poderei ver vida tão pura,
sendo a minha passada em torpezas,
se tua piedade me assegura
não teme grã temor minhas baixezas:
Mas quem assim me trata com brandura
esforço me está dando, e mil certezas,
que me vá sem temor, seguramente,
após quem me quer levar tão brandamente.
(112)
Com que olhos vos verei, meu redentor,
se os meus estão tão cheios de veneno
que, matam quem os vê, com grande dor;
E vede vós tal dano, se é pequeno,
vede-me vós, c’os vossos, meu Senhor,
com que fazeis o mar e céu sereno,
porque livreis os meus de tal peçonha
E vos vejam, inda que seja com vergonha.
(113)
Amor sempre amoroso, amor divino,
amor que tudo tens de amor rendido,
amor brando e suave, amor benigno,
amor desta alma, amor de amor nascido:
Amor de quem fugia de contino
por não te ter, amor, bem conhecido;
Agora que de ti estou ferida
te darei, amor, minha alma e vida.
(114)
Amor, em cujo amor sempre descansa
toda a alma que de amor anda ferida,
amor em cujo amor não há mudança,
amor que só sustenta nossa vida,
amor, em cujo amor minh’esperança
se sustenta d’amor elanguescida,
que paga vos darei, amor divino,
ou penhor, que seja d’amor digno.
(115)
Amor, que por amor vieste à terra
e por amor, amor dos céus desceste,
amor, que com amor nos fazes guerra,
amor, que com amor tudo venceste
amor, em cujo amor toda sentença
est’alma que d’amor enriqueceste;
Que vos darei amor? que dar-vos posso
com que pague, amor, este amor vosso?
(116)
Amor, que com amor, andas buscando
as almas que de amor andam despidas,
amor, que por amor vens suspirando
pedindo amor, amor a nossas vidas:
Amor, que com amor andas ganhando
as almas que estão cegas e perdidas.
Que vos darei, amor brando e benigno,
que seja de tal amor, meu amor, digno?
(117)
Amor, de cujo amor tanto fugia
est’alma que d’amor anda encendida,
amor, meu grande amor e alegria,
amor, que com amor, dais vida à vida,
não sei como sem vós, amor, vivia,
nem sei como de vós era esquecida;
Ou cuido não vivia (amor divino)
quem de vós se esquece de contino.
(118)
Que vos darei amor brando e suave
que se já amor de vós (meu amor) digno
dest’alma vos darei, amor, a chave
pera nela morardes de contino:
E nada me dava já pena grave
tendo-vos eu comigo, amor benigno
que quem merece ter tal bem consigo,
não tema da vida algum perigo.
(119)
Amor que vences tudo com brandura,
deleite da minh’alma e bom amigo
amor em cujo amor vivo segura
em paz, quietação, e sem perigo:
Amor, em cujo amor muito se apura
est’alma que vos tem por seu abrigo;
Que vos darei, amor brando e benigno
que não seja desse amor muito indigno?
(120)
Com que vos pagarei, amor divino:
que paga posso eu dar? pola ventura
e apreço, amor meu, que seja digno
de vosso amor, e de tal brandura:
E a cousa com que possa amor benigno
pagar tão grande amor, e fé tão pura?
Que vos darei amor, pois tudo é vosso,
toda me dou amor, se dar me posso.
(121)
Dou-te meu coração, pois me tens dado,
toma-o, leva-o lá, tem-no contigo;
Dou-te o desejo, amor, dou-te o cuidado,
a ti só quero, amor, por meu abrigo:
o peito em teu amor mui apurado
te dou, como a mui fiel amigo;
Se mais pudera dar-te, mais daria
que tudo vence amor, quando porfia.
Autor
(122)
Nisto a Madalena estava influída,
gostando da doçura e grã sabor
daquele doce amor que adoça a vida
sem que não pode ser amor, amor;
Estava neste amor toda embebida,
não lhe lembrando mais o seu ser,
a quem de seu amor quis dar a chave
por ver que era mui doce, e mui suave.
(123)
Gosta de Deus ó cego pecador
se queres viver vida mui contente,
que é mui suave e brando seu amor
e nele a alma repousa brandamente:
Em nenhuma cousa vã busques favor,
nem no mundo que é falso e sempre mente
que se agora seu bocado é saboroso,
no fim se torna em fel, e mui amargoso.
(124)
Não te perturbes não, tem confiança
naquele que te pode dar a vida,
põe sempre nele tua esperança
não haja quem hoje mais tal bem t’imiga:
Que quem pode fazer tão grã mudança
num’alma pecadora já perdida,
também pode mudar teu pensamento
por mais duro que seja e violento.
(125)
Oh meu Deus e meu Senhor, quão poderosa
é a força do amor que nos mostrais,
quão suave e quão branda, e quão forçosa
pois com ela de tudo triunfais:
Com vossa condição tão amorosa
endurecidos peitos abrandais,
o ferro não tem força, nem a pedra,
tudo vence vosso amor e tudo quebra.
(126)
Que peito se viu mais endurecido
que o peito desta cega pecadora?
Olhai, quão duro andava, quão perdido,
olhai qual foi, olhai qual é agora:
Olhai quão facilmente foi vencido,
olhai como agora geme, como chora,
já toda se converte em amor puro,
daquele amor do céu, amor seguro.
(127)
A pedra de cevar vai atraindo,
por natural virtude, o ferro duro,
o sol com sua luz vai consumindo
o manto vaporoso negro escuro:
A negra noite sempre vai fugindo
do claro resplandor sereno e puro,
o fogo, a lenha segura vai gastando
o ígneo metal vai purificando.
(128)
Vós pedra de cevar sois, meu Senhor,
que com virtude própria ides atraindo
o mais que duro ferro pecador
que de vós, com dureza, vai fugindo:
Que cousa pode haver, meu redentor,
que possa a tanta força ir resistindo:
ferro, a dura pedra, o diamante
se abranda ante vós, no mesmo instante.
(129)
Vós sois o claro sol resplandecente
que com raios de amor ides consumindo
as trevas em que estava a cega gente
a quem de vossa luz ides revestindo,
a vossa luz serena e mui fulgente,
a Madalena a está em si sentindo,
pois vendo-a tão bela, clara e pura
da noite foge logo, negra e escura.
(130)
Vós sois o resplendor de que fugindo
a noite escura vai de meu pecado;,
Ai triste de quem jaz sempre dormindo
em noite tão escura descuidado:
Mas vós, luz bela, estais sempre ferindo
os olhos que de si não têm cuidado
que vejam vossa luz serena e pura
e fujam do pecado, noite escura.
(131)
Vós sois fogo do céu mandado à terra
fogo de puro amor, suave e brando
com que de nossas almas se desterra
o céu do pecado, que ides gastando:
Só vós a nossos vícios fazeis guerra,
vós nos ides em virtudes apurando,
metal mui estimado nessa altura
que o fogo d’amor vosso mais apura.
(132)
Tudo quanto a Madalena a Deus dizia
os brandos amores que lhe falava
os prantos, os estremos que fazia,
o fero imigo nosso bem notava:
E não podendo já sofrer quanto ouvia,
que de furor e raiva cego estava,
não duvida mostrar-se à penitente
dizendo agastado e impaciente:
Diabo
(133)
Oh, fúrias infernais vinde rompendo
desses lugares lá donde habitais,
e acudi aos males que estou vendo
e que vós vereis, senão remediais;
Acudi, acudi, fúrias, correndo
vereis os meus tormentos sem iguais
acudi com tão grandes alaridos
que ponham grande espanto nos nascidos.
(134)
Tomai, tomai de mi cruel vingança
abrasai-me já com fogo imortal,
não haja em meus tormentos já mudança
pois eu a causa fui de tanto mal:
A Madalena, em que eu tinha confiança,
me deixa, e me faz guerra campal,
mas bem mereço ser atormentado
pois em guardá-la fui tão descuidado.
(135)
Não vedes esta minha perdição?
Que fazeis? Que é dos fogos infernais?
Não me tenhais respeito, nem sujeição,
antes me dai tormentos imortais:
Por que é tal minha dor, minha paixão
que me deram pena, penas tais
que quem pera si foi tão descuidado
mui bem merece ser atormentado.
(136)
Já mais poderei viver descansado
pois perdi a Madalena serva minha,
laço de meu engenho fabricado,
no qual a presa certa sempre tinha;
Agora perdi tudo e me é roubado,
mas quem podia ser disto adivinha,
quem podia cuidar que tal amiga
sem causa se tornasse em dura imiga!
(137)
Com ela, sem trabalho, mil cativos
se vinham pera mi cada momento,
por mil mortos, ganhava cem mil vivos
com a isca de seu vão pensamento:
Mil modos rebuscava, mil motivos
de sua perdição certo instrumento,
agora me foge e me despreza,
e tirando-me da mão tão grande preza.
(138)
Estou fora de mi com grande espanto
em ver que a Madalena me despreza.
Vejo que me buscam a cada canto
e que todo o mundo me serve e preza:
Só meu, quanto quero tudo planto,
de toda a terra colho grã riqueza;
Mas tudo me parece pouco ou nada
em ver a Madalena tão mudada.
(139)
De todos comummente sou buscado:
Uns honra me pedem, outros riqueza;
D’outros por deleites sou rogado
negaça com que faço grande preza:
Mas só pela Madalena, meu cuidado
e tudo o mais trocara se certeza
tivesse, de poder cobrar tal goiá,
que de rede me servia e de bóia.
(140)
Ah! Madalena, minha rosa bela
por quem me tendes meu amor trocado?
Ah, tornai-vos pera mi minha estrela,
pois vedes meu amor e meu cuidado:
Tornai sobre vós, pois sois aquela
a quem sempre servi sem ser mudado;
Olhai, que não diz bem haver mudança
em peitos em que amor firme descansa.
(141)
Dizei-me, Madalena, minha rosa
quem fez em vosso amor tão grã mudança,
quem me vos roubou pedra preciosa?
Que de cansar-me tanto não descansa!
Quem vos apartou de mi, antiga esposa,
quem fez em tal amor destemperança?
Convosco estava ledo e com repouso
mas sem vós sou cego, é mui penoso.
(142)
Ah, Madalena minha, que motivos
te dão ocasião pera deixar-me?
Achas cousa por ventura entre os vivos
por que tão sem rezão possas negar-me?
Não mostres desfavores tão esquivos
que não te mereci tão maltratar-me;
Olha que amor firme e tão constante
merece um coração melhor amante.
(143)
Ah hospedeira minha tão antiga
com quem mui descansado repousava!
Sempre cuidei de ti que eras amiga
e teu amor então bem mo mostrava:
Olha Madalena minha, não se diga
que meu amor em ti mal se empregava,
e que todos afirmem com certeza
que em peito de mulher não há firmeza.
(144)
Olha que é grande mal, em peito amante
que tem mostrado amor e grã firmeza,
ser notado desvario, e de mi constante
que em sangue generoso é baixeza:
Não queiras imitar os diamantes,
não queiras ser mais forte na dureza,
abranda, por que a tanta fermosura
não convém tal dureza, mas brandura.
(145)
Que mal te fiz, cruel e desumana,
por que rezão me tens assim deixado?
Ah, Madalena minha, quem te engana,
Quem te aparta de mi doce cuidado?
Por que quebrar, cruel fera e tirana,
a fé, e firme amor, que me tens dado?
perdeste porventura já teu siso?
Olha que diz mal mudança com aviso.
(146)
Não olhas quantos bens te tenho dado!
No rosto linda graça e fermosura,
beleza nesse corpo delicado,
mil graças no falar, no rir brandura
riquezas te busquei com grã cuidado,
Mil honras pera viveres mais segura,
tudo o que desejavas te buscava
cem mil deleites sempre te inventava.
(147)
Que cousas desejaste que negada
te fosse? Ou de que fosses descontente?
Porque és cruel, vingativa e descuidada
pera quem servo foi tão diligente?
Sem causa não te mostres agravada
que agravos meu amor não nos consente;
Se desejas de tomar de mi vingança,
assaz a tens tomada já, descansa.
(148)
Diz-me que ganhaste em deixar-me
senão dor, choro, pena, confusão,
que engano te moveu, que mal tratar-me
que movimento foi este ou que paixão?
Não te fôra melhor sempre poupar-me
mostrando eu amor grande e afeição?
Pois comigo sempre tinhas alegria,
agora não cessas de chorar noite e dia.
(149)
Comigo andavas leda, e contente
e agora suspiras de contino,
chorar te vejo sempre amargamente
não sei pera que segues tal destino:
Agora vives vida descontente,
mágoa tenho de ver-te em tal tristeza,
mas, ver que tu te matas, mais me pesa.
(150)
Ah, deixa de seguir tão triste vida
recolhe, acaba já teu pensamento;
Não sigas quem te traz tão abatida,
que te faz viver em pena e tormento;
Não vês que andas de ti mui esquecida,
mui cega, sem sentido e sem tento?
Já’gora deves de ter experimentado
quanto custa seguir um vão cuidado.
(151)
Esses são, Madalena, os olhos belos,
tão vivos de graças e de brandura,
por quem mil se perderão só c’o vê-los
espantados de ver tal fermosura?
Determinas com pranto escurecê-los,
não sejas pera ti tão fera e dura,
que olhos, que tantos olhos abatiam,
mais ledos e contentes ser deviam.
(152)
Esse é teu lindo rosto de amor cheio
em quem se quis mostrar a natureza
não é assim não, se não me enleio
por que o outro tinha mais beleza.
E esse é bem mudado, e bem alheio
o vejo d’antiga gentileza,
da que com grande espanto se falava
e de quem até o sol se não curvava.
(153)
Disciplina num corpo delicado,
e em tão alvas carnes tais cilícios,
não achas que merecia ser tratado
com mimos e mais brandos benefícios?
Ah, cega, não vês que meu cuidado
é dor de meu amor claros indícios?
Eu sempre te busquei contentamentos
e tu pera ti buscas tais tormentos.
(154)
Foges de ter descanso e alegria
por viver em perpétua tristeza;
Olha que mal te quer quem te desvia
da fé que me guardavas com firmeza:
Deixa tal destino e porfia
e não sigas tão triste e vil baixeza;
Ah, deixa disciplinas e cilícios
que são, de pouco siso, bons indícios.
(155)
Ah, deixa, cruel, deixa desatinos,
enganos manifestos sem proveito;
De que te servem prantos tão continos,
de que serve chorar com tal efeito?
Ah, deixa pensamentos peregrinos
e tem, a quem te serve, algum respeito:
Amostra-te mais branda, acaba e cansa
de cansar a quem te serve sem mudança.
(156)
Nunca já, enquanto foste minha amiga,
nesse teu duro peito entrou tristeza;
Agora, justo é que te persiga
pois deixas quem te ama e quem te preza:
Cilícios de que servem? Quem te obriga
jejuar, nem fazer tal aspereza?
Ah, deixa Madalena tal engano,
pois tudo te redunda em grande dano.
Madalena
(157)
Aparta-te de mi, pai da maldade
lisonjeiro enganoso e fementido;
Aparta-te daqui com brevidade
que em mi nunca terás já bom partido;
Aparta-te daqui, porque a verdade
de quem tu és, já tenho conhecido;
De mi não comeras já bom bocado
e em outros tenho posto meu cuidado.
(158)
A Deus meu coração tenho já dado,
também o fiz Senhor do pensamento,
que tu mos trazias enganado
com esperanças vãs de leve vento:
Aparta-te daqui que meu cuidado
já descansa e repousa no seu centro;
Agora vejo claro quão mal via
pois que teus enganos não sentia.
(159)
Vai-te, maldito, pois de mentiras
não cuides de levar-me com branduras,
que já mui pouco temo tuas iras
e bem sei o que me queres e procuras:
Se tu bem me quiseras, não feriras
minha alma com tão feras mordeduras;
Aparta-te já daqui, fera serpente
por que a minha alma ver-te não consente.
(160)
Se te gabas de me ter enobrecida
com cousas preciosas e de estima
bem me vês estar delas já despedida
de sorte que só vê-las me lastima.
De tê-las estou bem arrependida,
e todas minha alma desestima,
por isso aí tas dou, que não nas quero
pois de cousas tais nada espero.
Autor
(161)
Aqui lhe entregou logo seus vestidos
profanos, mas de rica pedraria,
em que seus vãos cuidados e sentidos
tinha dantes postos e lhes dizia:
Madalena
Ah laços de mil cegos e perdidos!
Deixai já esta vã que vos seguia
tirai-vos já, pois fostes instrumento
de meu louco e cego pensamento.
(162)
Já não cobrireis vãs profanidades
deste meu corpo noutro já mudado,
que se dantes era dado a vaidades
agora foge delas com cuidado:
Vós fostes sempre porta de maldades,
por quem meu corpo entrou mui enganado,
agora, quem sois, já claro vejo
em vós nunca porei mais meu desejo.
(163)
E tu, corpo mortal e sem ventura,
que tão cego seguias tal engano
buscando pera ti toda a doçura
contentamento vão, e bem profano;
Em lugar dos regalos e brandura,
a que te davas sempre por meu dano,
serás tratado de mi mui cruelmente
sentindo apenas dor qu’esta alma sente.
(164)
Tu, que ricos vestidos inventavas,
cobrindo-te de mil galanterias
em que toda vãmente te enlevavas,
gastando nisto anos, noites, dias;
Por te mostrar ao mundo te enfeitavas
de pérolas, ouros, argentarias,
agora bem darão grande ornamento
cilícios, disciplinas e tormento.
(165)
Pois eu, que dantes por donde ia
um cheiro mui suave ia lançando,
o qual, por toda a parte recendia,
agora um cilício irei buscando;
Quem de ti se espantava quando via
que com mil vestidos te ias ornando,
agora mostrará maior espanto
vendo-te andar nua e posta em pranto.
(166)
As mãos, que tantas vezes concertaram
este meu corpo dado a vaidades,
pois em tal oficio se empregaram,
agora o tratarão com crueldade:
Os pés, que de jóias se calçaram,
tendo tudo mais por pouquidade,
usando só de rica pedraria,
terão por seu regalo a pedra fria.
Autor
(167)
Despedida pois, de todos seus vestidos,
chorando com dor, disse a seus cabelos:
Madalena
Cobri-me, cabelos, estes perdidos
membros: pois já servistes de pecados;
De mi fostes amados e servidos,
e gabados do mundo por mui belos;
Já servistes de laços, e de engano
a muitos; mas a mi de grave dano.
(168)
Agora servireis, cabelos tristes,
de cobrir este corpo despojado
das cousas vãs do mundo a que servistes
com todas vossas forças e cuidado:
Alimpareis as lágrimas, que vistes
correr, por este rosto já mudado
porque vós, também nelas lavados,
de vossa bela cor sejais mudados.
Autor
(169)
A todas estas cousas que dizia
a Madalena, grande penitente,
inda que sua raiva reprimia
se cala o fero imigo impaciente;
Mas vendo que movê-la não podia
antes se vê tratado cruelmente,
está com feros gritos atroando
o mundo, ao qual diz suspirando:
Diabo
(170)
Ai de mi, que farei, que farei, perdido!
Oh mundo, meu fiel e caro amigo,
onde estás, que não ouves meu gemido,
que fazes, que não sentes meu perigo?
Tão longe estás, de mi tão esquecido,
de amigo tão fiel, e amor tão antigo,
acode a meu aperto, acode logo,
que me vejo abrasar em vivo fogo.
(171)
Oh carne, por que te sujeitas tanto!
Sofres que uma mulher te faça guerra,
não vês que com louvor, e grande espanto,
tuas vitórias canta toda a terra?
Dá-me tua ajuda agora, enquanto
pelejo contra quem já me desterra,
porque se for de ti favorecido,
não serei desprezado nem vencido.
(172)
Ah Madalena minha, bem entendo
que quereis que vos sirva de vontade,
e não me engano não, pois estou vendo
vossa fé, vosso amor e lealdade;
Entendei, meu amor, que não pretendo
mais que servir-vos sempre de verdade,
por isso não me dês tanto desgosto,
pois já quase no fim me tendes posto.
Madalena
(173)
Aparta-te de mi, cruel imigo
das almas, manjar torpe e venenoso;
Aparta-te daqui, que sem perigo
noutro amor me sustento, mais gostoso
amor suave e brando, e mais amigo
em que sempre descanso, em quem repouso
nele mil honras acho, e mil riquezas
que as tuas são enganos e baixezas.
Diabo
(174)
Oh mundo, que falar tão atrevido
de uma mulher má, desatinada,
coitada sem saber, e sem sentido
não vês quão cega vai, e quão errada.
Pois sabe que se deixas meu partido,
te farei conhecer que és malfadada,
porque te posso dar mui cruel morte
se deixas de seguir meu claro norte.
(175)
Espera-me e verás, mulher coitada;
Não sabes que és minha por direito
e que posso lançar-te no inferno?
Determinas lançar-me de teu peito
em que já fiz alento sempiterno?
Não sabes que me deves ter respeito
se queres escusar tormento eterno?
E cuidas que, por falar-te brandamente,
me podes tratar tão cruelmente?
(176)
Espera-me e verás, mulher coitada;
Que ganharás de teu atrevimento?
Má mulher, sem vergonha, desbocada,
de que fazes, me diz, fundamento?
Se queres escusar ser maltratada,
deixa já tão perdido pensamento,
e se não, levarás o prémio logo,
de teu atrevimento, em vivo fogo.
(177)
Perdida, já cuidavas que eras santa?
Pois vais mui longe disso claramente,
porq’em toda a terra não se canta
se não de tua fama, e bem se sente;
Não colhe fruto Deus de tão má planta,
nem tais almas o puro céu consente;
Bem sabes que Deus é suma limpeza
e não se paga mais que de pureza.
(178)
Se confias em tua penitência,
entende que já nada te aproveita,
porque aquela divina sapiência
de tão nefanda boca nada aceita:
Mofina, teu jejum, tua abstinência
não agrada ao Senhor, nem no deleita,
por isso entende que és já perdida
e te não vale chorar, nem mudar vida.
(179)
Não vês que estás já presa do meu laço
no qual te terei sempr’a bom recado?
Não vez quão facilmente te desfaço
quanto fazer pretendes com cuidado?
Imaginas vencer meu forte braço
do qual poder em ti já Deus tem dado?
Não fiz morada em ti eu até’gora?
Pois queres-me lançar já de ti fora.
Autor
(180)
Aqui, lançava mão, o fero imigo,
da pobre pecadora, mui raivoso;
Mas ela, no Senhor pôs seu abrigo
a quem, branda rezava, piedoso:
Madalena
Livrai-me Senhor, vos peço, desse antigo
cruel imigo meu, e dai repouso
à alma tão aflita e atribulada,
tão perseguida agora, e maltratada.
(181)
Ó doce Jesus, meu amor seguro
ó bom Jesus, misericordioso
sede, meu bom Jesus, meu forte muro
contra este imigo fero e revoltoso:
Ó bom Jesus, em cujo amor me apuro
manjar dest’alma minha saboroso,
sede, ó bom Jesus, escudo forte
contra este cruel imigo, pai da morte.
(182)
Ó doce Jesus, pai clementíssimo
fonte de piedade, e de brandura
de aflitos remédio mui certíssimo,
consolação de todos mui segura:
Muro dos fracos mui certíssimo,
fortaleza de toda a criatura,
pois pus em vós minha esperança,
livrai-me deste mau, por que me cansa.
(183)
Ó doce Jesus, Mestre da minha alma
em quem descanso tenho, e grã repouso,
livrai-me desta afronta, que não acalma,
socorrei-me, amor meu, mui deleitoso:
Concedei-me Senhor, que leve a palma
de quem de mi quer ser vitorioso,
que, com vosso amor, mui facilmente
vencedora serei desta serpente.
(184)
Em vós doce Jesus, minha esperança
minha alma tão rendida ao amor vosso,
segura em vós repousa, em vós descansa
vencei vós esta fera que eu não posso:
Dai-me, Senhor, esforço e confiança,
com que vença o cruel imigo nosso,
e mostrai-lhe que só vós sois poderoso
E pera pecadores piedoso.
(185)
Pois vós me esperaste até ’gora
pera que em mi houvesse esta mudança;
Defendei-me, bom Jesus, em esta hora
desta fera cruel que assi me lança:
Eu confesso, Senhor, ser pecadora
e digna que tomeis de mi vingança;
Mas, pois me fostes sempre piedoso,
defendei-me com o braço poderoso.
Autor
(186)
Não pôde sofrer mais, o feio imigo,
vencido desta força e fé tão pura;
Mas foge sem detença seu perigo,
e se mete na cova negra e escura,
onde cheio de raiva diz consigo:
Diabo
Sofrerei que uma fraca criatura,
minha morada antiga, e aposento,
mo tire com tão grande abatimento?
(187)
Ai de mi, que farei, pois sou lançado
de minha antiga casa sem rezão;
Onde me irei, coitado, desterrado?
Onde farei minha habitação?
É possível que me veja maltratado
de quem sempre tratei com afeição?
É possível que me faça dura guerra
aquela por quem fiz tanta na terra?
(188)
A quem me queixarei da grave pena,
que de tal sem rezão, meu peito sente?
Olhai o duro fado que me ordena
pera que viva triste e descontente:
Olhai a quantas mágoas me condena,
uma alma a quem servia alegremente;
Olhai, como se mostra agradecida
aquela que de mi foi tão servida!
(189)
Ó cousa não vista, nem ouvida,
que veio contra mim, com mão armada,
aquela que de mi foi tão querida,
tão mimosa em tudo, e tão amada:
Ai de mi, que me abafa a dor crescida,
e tenho em mi a pena mais dobrada,
sem poder dar sossego nem alento,
a muito grave dor que n’alma sento.
(190)
Porém, quem se mudou tão brevemente,
me dá, por outra parte, confiança
que poderá tornar mais levemente,
pois na mulher é certo haver mudança;
Mas, ah, o meu tormento não consente,
que possa d’algum bem ter esperança,
porque a mulher no mal só tem firmeza
e em bem ser mudável é certeza.
Autor
(191)
Grande alegria, e grã contentamento,
recebe a Madalena em ver queixoso
o rei das negras trevas, cujo intento
era tirar-lhe da alma o seu esposo:
Mas como seu perverso pensamento,
não pode sossegar, nem ter repouso,
determina movê-la com brandura,
mostrando-se queixoso de ventura.
Diabo
(192)
Até quando, Madalena, até quando
hás-de ser pera mi tão fera e dura?
Mostra-me já, cruel, teu peito brando
pois nele nunca mais faltou brandura:
Madalena cruel, não vês qual ando
não vês minha grave dor, desventura?
Qu’é da tua brandura e piedade?
Toda te converteste em crueldade?
(193)
Até quando, hás-de usar de desfavores
com quem te serviu sempre sem teu dano?
Não deixes, Madalena, meus amores
pois sabes que te amo sem engano:
Lembra-te que te fiz com mil favores
cuidando ser teu peito mais humano;
Olha que é ânimo vil e acanhado
do bem que recebe não ser lembrado
(194)
Quem se esquece do bem já recebido,
dá mostras manifestas de baixeza;
Mas quem por bem, dá mal não merecido
além de ser ingrato, é grã crueza:
Põe nisto, Madalena, teu sentido,
que muito choravas, se não te pesa
da paga que me dás, pois não se paga
amor com desamor, que é dura paga
(195)
Volve-me esses teus olhos, desumana
acaba de abrandar teu peito duro;
Olha que não diz bem ser tão tirana
com quem tem amor tão firme e puro;
Ah! Madalena minha, quem te engana?
Quem te aparta de mi? Pois eu te juro
que um amor tão firme e tão constante,
já pudera abrandar um diamante.
(196)
Ah cruel, porque vais de mi fugindo?
Foges a quem te segue de contino,
não vês como me vou já consumindo?
Ah, não vês que por teu amor me fino:
Acaba de estar sempre resistindo
a quem tanto te quer, que é desatino;
Olha que não é justo, nem se espera,
mostrar condição dura e fera.
(197)
Bons males, se me deixas, vais fazendo,
deixas a quem se perde e por ti tanto
que mais não pode ser, nem eu entendo
quem mais te possa amar, disto m’encanto:
E dar ocasião a que vá perdendo,
com grande afronta minha, tudo quanto,
com tanto suor meu, tenho ganhado
ficando de todo já desbaratado.
(198)
Vê, cruel, que me dás mau tratamento
havendo-te comigo cruelmente;
Olha bem de que fazes fundamento,
não deixes meu amor tão facilmente:
Mas o que me dá pena, e grã tormento,
é ver que o mundo todo, comummente
os erros por virtudes vai julgando,
e as virtudes por vícios condenando.
(199)
Os erros, como cegos vão seguindo,
não faltam pera mal mil defensores;
(Ai dor) e de uns em outros vão caindo
de muito pequeninos ou maiores:
Isto só de contino estou sentindo,
recebendo mil penas, e mil dores
o que lamentarei eternamente
pois que o mal se segue comummente.
(200)
Mas, inda que me dás mau tratamento,
o muito que te quero não consente
ver-te posta em tal pena, e tal tormento,
e crê-me que estou triste e descontente:
Não posso encobrir mais o sentimento
de te ver andar tal, que escassamente
te posso conhecer, que grande engano
é seguir tantos extremos com tal dano.
(201)
Mas já que amor não vale nada contigo,
nem mágoas, nem rezão pode abrandar,
nem queres fazer caso do que digo,
sequer tem dó de ti, que maltrataste:
Bem sabes que é desatino, e grã perigo
usar contigo mesma de tal arte;
Olha que Deus não quer que nos matemos,
mas quer que por rezão nos governemos.
(202)
Alimpa desses olhos tantas águas
que posta estás no fim com tanto pranto;
Tuas penas e mágoas me dão mágoas,
acaba de chorar, não chores tanto:
De te ver tão triste, as duras fráguas
se abrandam e se esquecem de seu canto
as aves, dando mostras de tristeza;
Mas teu peito não, que tem mais dureza.
(203)
Não vês que todo estremo é mui danoso,
e que não pode durar a violência?
O rigor, sem justiça, é perigoso
perigosa a justiça sem prudência:
O jejum moderado, é proveitoso
proveitosa a prudente penitência,
mas extremos sem prudência ordenados
são de Deus e dos homens condenados.
(204)
O meio comummente é mui louvado,
nem tema quem o tem algum perigo;
Mas viva com sossego, e descansado,
que a natureza guarda isto consigo:
Pelo contrário, está violentado
quem busca nos extremos seu perigo
que muitas vezes cai o mais sabido
e é alevantado o abatido.
(205)
De que te serve logo chorar tanto,
de que te serve tão contina abstinência,
de que serve pôr no mundo tal espanto
senão seguir conselho, nem prudência?
Ah deixa, Madalena, já teu pranto,
ah deixa tão comprida penitência!
Não cuides que a grandes penitentes
se dará o céu só, mas a prudentes.
(206)
Abranda, abranda já, não sejas dura
que serve para humanos tal dureza;
Usa de mansidão, e de brandura
deixa teu rigor, tua aspereza:
Não queiras acanhar a fermosura
de que te quis dotar a natureza;
Não queiras ser de ti mesma homicida,
mas goza enquanto a tens, de tua vida.
(207)
Torna-te Madalena a teu estado
que Deus também se serve de riquezas,
com elas também pode ser louvado,
pois elas remedeiam mil pobrezas:
Não cuides que deixá-las é forçoso
se quer cometer grandes emprezas,
que riquezas não são impedimento
às almas que desejam salvamento.
(208)
Nenhuma cousa é má naturalmente
mas todas tem um bem certo consigo,
que Deus, todas criou mui sabiamente
e deu a cada cousa seu abrigo:
Ser verdade tudo isto, bem o sente
quem sabe usar das cousas sem perigo;
O mar visto de longe é deleitoso
mas a quem nele se mete, é perigoso.
(209)
Jamais fez nojo o claro imigo
a quem se guarda dele, e se desvia,
nem deixou de ser bom, o bom amigo;
Ditoso de quem achou de quem se fia:
Bom é tomar conselho do antigo,
bom é o caminhante, a boa guia,
ser constante no bem é fortaleza
mas cansar logo é grã baixeza.
(210)
Não queiras resistir à natureza
que quem resistir quer não permanece;
O tronco que resiste com firmeza
está sempre quebrando e não floresce;
A pedra que resiste com dureza,
às brandas gotas d’água desfalece;
A cana dá lugar ao rijo vento
por isso permanece em seu assento.
(211)
O ouro, não faz mal, nem embaraça
a quem dele não é mui cobiçoso;
O vinho que se dá por mão escassa
a todos comummente é proveitoso;
O regrado comer tem muita graça
mas o demasiado é mui danoso;
O fogo dá luz clara e mais aquenta,
lástima a quem o palpa e atormenta.
(212)
Bem vês do que te digo, claramente,
quão cega vais seguindo o teu intento;
Entende que te falo fielmente,
sem engano, sem mal, sem fingimento:
Conserva, Madalena, o bem presente
não chores tua perda com tormento:
Acaba de tomar meu bom conselho
porque é de amor, e de amigo velho.
(213)
Não queiras encurtar teus breves dias
com ásperos jejuns e penitências,
que todos julgam ser hipocrisias
e não se enganam nas aparências;
Ah deixa, acaba já, deixa porfias,
não uses tão duras abstinências
que basta pera Deus dizer pequei
perdoai-me Senhor que vos errei?
Autor
(214)
Com grande e importuna tentação
tentou a Madalena o fero imigo,
mas ela, que em Deus pôs seu coração,
sem falar-lhe dizia só consigo
Madalena
Meu Senhor, pois me dais ocasião
de ganhar-me ou perder-me em tal perigo,
ajudai-me com fé e fortaleza
pera que em vosso amor tenha firmeza.
(215)
Não permitais, Senhor, que desfaleça
esta alma vossa já com tal combate,
mas dai-me vossa ajuda, não pereça,
nem este cruel imigo mal me trate:
Socorrei-me, Senhor, que não me impeça
este fero Satanás, ou desbarate,
socorrei-me, Senhor, com vossa ajuda
e respondei por mi, que já sou muda.
[Autor]
(216)
Oh exemplo de virtudes admirável
não de fraca mulher, mas do céu dado
saber calar é cousa mui louvável
tudo vence o prudente bem calado:
Quem quiser ter o céu mui favorável
imite a Madalena com cuidado
em bem saber calar, pois comummente
quem sabe bem calar é mui prudente.
(217)
A língua vai mil faltas descobrindo
daquele que sem tento vai falando,
é espada mui cruel que vai ferindo
com golpes incuráveis magoando:
É fogo que vai tudo consumindo,
é morte que vai vivos sepultando
o néscio se se cala vence tudo
e de todos é julgado por sisudo.
(218)
Ficou a Madalena triunfando
daquele que vencê-la pretendia,
porque nas mãos de Deus foi deixando
a quem favor com lágrimas pedia:
Venceu o fero imigo bem calando
e bem vence quem cala em tal porfia,
e se lhe respondera, porventura
perdera seu sossego e paz segura.
(219)
Se queres acertar, não dês ouvidos
a certos mofadores lisonjeiros,
não fies de perversos e perdidos,
foge de suspeitosos companheiros:
Aqueles que por bons são conhecidos
são sempre proveitosos companheiros:
Chega-te pera o secreto e calado,
viverás sem trabalho e descansado.
(220)
Se te o perverso fala com brandura,
com ela vai dourando seu engano,
não te fies dele, que procura
com brando fingimento, o teu dano:
Se queres viver quieta e segura
põe teu cuidado só no soberano,
se fores perseguido e maltratado
tem sempre sofrimentos sê calado.
(221)
Mui grande dor sentiu o fero imigo
vendo-se tão vencido e maltratado,
cuidando em seu desprezo, diz consigo:
Diabo
Sofrerei ser assim tão desprezado?
Não faz caso de mi, nem do que digo,
que farei? Se me vou afrontado,
se fico temo ser mais abatido,
pois onde me irei assim corrido?
(222)
Ora, porque não fique assim zombando
uma tão mala mulher com tal vanglória,
com todo o inferno junto virei dando
vingança a todo o mundo mui notória:
O céu farei que esteja fuzilando
mil raios que me dêem dela vitória,
moverei todo inferno e toda a terra
por levar a vitória desta guerra.
(223)
Armas, armas, socorro companheiros!
Oh fúrias infernais do negro Averno,
acudi com trovões, e com chuveiros,
apareçam os abismos desse inferno:
Cubra-se todo o céu de nevoeiros,
arrebente na terra o fogo eterno!
Mostrai tais estrondos e bramidos
que ponham grande espanto nos nascidos.
Autor
(224)
Não tinha inda bem dado este bramido
o fero Satanás, já junto estava
aquele esquadrão fero escurecido
e o ar de negras nuvens se toldava:
Um negro manto foi logo estendido
de névoa tão espessa, que tirava
a luz do sol e tudo escurecia,
ficando em noite escura o claro dia.
(225)
Logo trovões medonhos atroaram
com grande estrondo e vozes toda a terra,
mil raios e coriscos se quebravam
nos montes, nos outeiros e na serra:
Vozes infernais então soaram
dizendo todas juntas, guerra, guerra
padeça a Madalena cruel morte
entenda quanto pode um braço forte!
(226)
Um estrondo se ouviu logo, espantoso,
com grande motinada num momento
daquele esquadrão fero, furioso,
que a terra se abalava desd’o centro:
Mil figuras de aspeito temeroso
aparecem, com cujo movimento
os ares se vão todos corrompendo,
e a terra que tal sente está tremendo.
(227)
Megera com Alecto governava
a parte principal desta manada
Tisífone o restante encaminhava
e indo com esquadrão bem ordenado;
logo que chegaram onde estava
a Satanás, diz Maguera ousada
Mestre Capitão aqui te trago
soldados com que faças grande estrago.
(228)
Com vê-los, Satanás ficou contente
sentindo menos dor do que sentia,
porque com seu favor ousadamente
determina de vingar-se de Maria;
E como mui manhoso e diligente,
a todos quantos juntos ali via
refaz um sermão, grande e avisado,
dizendo com aspecto confiado:
Diabo
(229)
Chamei-vos, homens fortes, companheiros,
porque tenho vosso valor conhecido,
pois nos meus perigos sois primeiros
e convosco tudo já tenho vencido:
Tendo comigo tão fiéis guerreiros,
não tenho que temer, antes temido
serei do mundo todo e elementos
porqu’os revolverei de seus assentos
(230)
Bem sabeis que depois que fui lançado
daquele glorioso firmamento,
em que com tantas graças fui criado,
por braço poderoso e violento:
Com quanto valor meu, com que cuidado
a terra sujeitei, o mar, o vento,
as plantas, os animais, os elementos
da minha sujeição não são isentos.
(231)
Bem sabeis o triunfo glorioso
que levei do primeiro pai da gente,
quando no Paraíso deleitoso
com ele combati numa serpente:
Bem vistes como fui vitorioso,
pois nele cativei eternamente
a todos filhos seus e descendentes,
e logo fiquei sendo rei das gentes.
(232)
Bem vedes como tenho enriquecido
meus reinos com triunfos gloriosos,
sempre fui vencedor, nunca vencido,
em guerras e combates espantosos:
Olhai quantos mil homens tenho trazido
a meu poder; olhai quão animosos
varões tirei da mão dos soberanos
com guerra que lhes fiz com grande dano.
(233)
Bem vedes que de todos sou prezado,
de todos comummente mui temido,
em templos sumptuosos adorado
de reis e sacerdotes mui servido:
No mundo sou querido, e acatado
no templo como Deus, por Deus havido;
Já fui por muito tempo desservindo
sua lei, e repouso consumindo.
(234)
Que faço tempestades perigosas,
revolvo todo o mar desd’o seu centro,
alevanto mil ondas furiosas
eu faço embravecer o leve vento:
Eu faço mil batalhas sanguinosas,
destruo mil cidades num momento,
invento mil enganos, mil discórdias,
engrandeço meus reinos por vitórias.
(235)
Porém, não me dão contentamento
as cousas que vos digo brevemente,
nem posso ter sossego, em sofrimento
na dor que me lastima gravemente:
A Madalena me dá graves tormentos,
nossa amiga fiel antigamente,
a qual se revelou ter-me vencido:
Se dela me não vingo sou perdido.
(236)
Que determino dar-lhe tal castigo
que seja pera todos grande emenda,
porque vendo a vingança que prossigo
não haja depois dela quem me ofenda:
A empreza assaz grande é, e de perigo
mas de honra e de proveito é contenda,
quem quer que cometer tão grande empreza
que comete uma rocha em fortaleza.
(237)
Não cuide que é mulher fraca e mudável
que se muda a qualquer bafo de vento,
é mais forte que torre inexpugnável,
mais firme que o firme firmamento:
É forte nos combates, incansável
em braço por qualquer cometimento,
aqui convém mostrar um braço forte
e bem pago será quem lhe der morte.
(238)
Cuide quem vencer, que tem vencido
o mundo todo junto; e por tal feito
será com grã louvor enobrecido,
e com prémios mui grandes satisfeito:
E por isso cada um siga o partido
com todas suas forças, pois proveito,
honra, fama, louvor e grande glória
alcança pera si desta vitória.
Autor
(239)
Acabada a oração lhe responderam
com vozes as fúrias temerosas:
Fúrias
Bem sabes, rei das trevas, que temeram
de nosso poder serras mui fragosas;
Bem sabes quão bem sempre sucedemos
nossas batalhas, sendo mais famosas;
Pois que nossa fama é tão notória,
não tens que arrecear desta vitória.
Autor
(240)
Eis logo pelo ar fogo se acende,
a terra por mil partes parecia
querela só verter: aqui se fende
ali se abre com tremores que fazia:
Em grande aperto, esta bem se defende
dizendo ao bom Jesus em que confia:
Madalena
Valei-me, meu Senhor, neste perigo
que contra mi intenta o fero imigo.
Fúrias
(241)
Não te há-de valer não, falsa traidora,
pois vês que contra ti vimos raivosos;
Agora, mal aventurada, agora
pagarás com castigos rigorosos:
Aqui pagarás logo, na mesma hora
teus feitos mui infames e danosos,
já és nossa por direito em toda a parte
ninguém de nossas mãos pode livrar-te.
(242)
Nela, nela, soldados animosos
demos com grã furor e crueldade!
Feri, feri com golpes furiosos
este corpo tão cheio de maldade:
Aqui, aqui, vos mostrai mui rigorosos
aqui executai com grã vontade
os golpes valorosos e revezes
com que vencestes fortes tantas vezes.
(243)
Feri tudo, feri, nesta malvada,
Não haja membro nela sem castigo!
Será toda ferida e retalhada,
veremos quem lhe vale em tal perigo:
Autor
Remete com furor, mui indignada,
a canalha infernal com seu antigo
estrondo, por tomar nela vingança,
mas logo vira as costas sem tardança.
(244)
Logo dali fugiram espantados,
não podendo sofrer a fortaleza
do nome com que foram já lançados
dos alvos céus na baixa profundeza:
Do nome de Jesus amedrontados
que a Madalena chama com firmeza;
Se afastam dali logo, mui raivosos,
e de vingar-se dela desejosos.
(245)
Mas Satanás, que viu tal cobardia
tal afronta e grande abatimento,
com ira e grande raiva os repreendia
dizendo-lhes com grande agastamento:
Satanás
Qu’é da vossa valentia
qu’é do vosso valor e atrevimento?
Qu’é do vosso esforço? Com tal fraqueza
acabais vossa antiga fortaleza.
(246)
Sus, tornemos, tornemos com fervor
não soframos tal abatimento!
Lembrai-vos, companheiros, do valor
por vós tem o mundo acatamento,
isto se há-de sofrer que tal tremor
acanhe tão ousado ajuntamento?
Que soframos que a fraqueza é feminil
afugente e desbarate tantos mil?
(247)
Olhai, que ficais aqui vencidos
por vossa cobardia nesta guerra
perdeis vosso valor, e sereis tido
em desprezo mui grande pela terra:
Cobrai forças, soldados abatidos,
mostrai que nesses peitos se encerra
ânimo grande, forças, ousadia
e que tudo vence, pode o que porfia.
Autor
(248)
Acometem-na logo os furiosos
com tanto estrondo, grita e alaridos,
que nos rochedos altos cavernosos,
e remotos vales foram ouvidos:
Chamas de fogo lançam, mui raivosos
de afronta recebida, mui servidos
estavam em tomar dela vingança
mas atrás logo se tornam sem tardança.
(249)
Os olhos põe no céu, lágrimas lança
a Madalena, guerreira valerosa,
sem mostrar cobardia, nem mudança
diz perant’aquela turba furiosa:
Madalena
Cansai, peço Senhor, a quem me cansa,
defendei-me com mão mui poderosa
que convosco não temo mil armados,
nem fortes esquadrões bem concertados.
(250)
Em vós pus, meu Senhor, minha esperança
não seja confundida eternamente
peço-vos, bom Jesus, com confiança,
que me queirais livrar desta serpente:
Bem vedes, meu Deus, que não descansa
tentando-me cruel e fortemente,
defendei-me Senhor, com braço forte
porque não temerei a mesma morte.
(251)
Inclinai vosso peito com brandura
pois nele nunca falta piedade,
nos brados desta vossa criatura
socorrei, meu Senhor, com brevidade:
Olhai minha aflição, tão fera e dura
no meio de tão grande tempestade
livrai-me, não desmaie com fraqueza
em tão vigorosa e áspera empreza.
(252)
Peço-vos, doce Jesus, doce cuidado
refúgio de minha alma, e meu abrigo,
pois já meu coração vos tenho dado,
me livreis Senhor meu deste perigo:
Bem vedes, bom Jesus, quão forte e ousado
se mostra contra mim o fero imigo;
Quebrai-lhe suas forças, que não possa
prevalecer contra mim, serva vossa.
(253)
Mostrai-lhe que só vós sois poderoso,
E que só vós deveis de ser temido;
Lançai no lago triste tenebroso
este inimigo que nada já perdido:
Permiti-me Senhor, que com repouso
vos dê sempre minha alma e meu sentido;
Veja o autor do mal e da discórdia
que vós sói só pai de misericórdia.
Autor
(254)
Teve tão grande força esta oração
e pôs tanto pavor no seu imigo,
que com vergonha sua, confusão
teve, experimentou mais seu perigo:
Desapareceu logo a multidão
que veio de Aqueronte, seu abrigo,
tornando-se a meter no negro Averno
com temor do poder do sempiterno.
(255)
Acha-se a Madalena consolada,
sentindo dentro de si nova alegria
por ver-se socorrida e ajudada
do céu, a quem favor sempre pedia:
Já livre se vê, já desabafada
daquela multidão que, com porfia,
tão grande perdição lhe procurava
e sem lhe dar descanso a molestava.
(256)
Está louvores mil e graças dando
ao bom Jesus, seu mestre e seu Senhor;
Lágrimas de prazer está lançando
dizendo por ver Deus em seu favor:
Madalena
Meu Senhor, por quem sempre suspirando
esta alma está, meu abrigo e defensor,
que graças vos darei, amor divino,
pelos bens que recebo de contino?
(257)
Em lágrimas meus olhos desfarei
com lembrança de vossa saudade
com que a dura terra humedecerei
ficando com ver-me o sol sem claridade:
O ar, com tais suspiros encherei
que os pássaros mova à piedade,
e quanto mais chorar, mais crescerá
a fonte que de meus olhos manará.
(258)
E pois por amor choro, amor me ajuda,
amor que me tem toda em si mudada
o qual me faz falar, me faz ser muda
e a tanta alteza me subiu do nada:
Amor, minha esperança, minha ajuda,
amor, repouso meu, minha morada,
mostrai-me, claro amor, a bela face
da qual todo meu bem e amor nasce.
(259)
Quem como vós amou no céu e terra?
Quem como vós, meu Deus tão glorioso?
Quem como vós Senhor, em quem se encerra
todo saber? E quem tão poderoso?
vós venceste só a dura guerra
com que me perseguia sem repouso,
com todo o seu poder, o fero imigo
que tanto desejo tem de meu perigo.
(260)
Convosco recebi grande alegria
meu fraco coração ficou mui forte,
minha alma, que temores padecia,
já’gora não teme a mesma morte:
Temia, meu Senhor, por que não via,
na grande tempestade, o claro norte,
por quem seguisse sempre sem mudança
pondo só em vós minha esperança.
(261)
Cantarei, meu Senhor, vossa vitórias
pois, por vossa mão foram vencidos
os feros inimigos; darão glórias
ao vosso santo nome meus sentidos:
Serão por todo o mundo mui notórias
vossas obras, pois que vejo destruídos
com grande prazer meu, por braço forte
aqueles que buscavam minha morte.
(262)
Quem santo, como vós, meu doce amor?
Quem como vós, meu Deus, tão amoroso?
Quem, forte como vós, meu redentor?
Quem como vós, Senhor, tão poderoso?
Não há Deus senão vós, meu defensor
de quem treme o abismo tenebroso:
Vós defendeis os vossos de perigos,
de vós têm grã temor os inimigos.
(263)
As armas dos mais fortes são vencidas,
os fracos por vós cobram fortaleza,
as forças dos soberbos destruídas,
são dadas novas forças à fraqueza:
Vós só, Senhor, tendes e dais vidas
vós pobres fazeis, vós dais riqueza
soberbos nos infernos alançais
humildes lá no céu alevantais.
(264)
Vencestes o cavalo e cavaleiro,
esquadrões bem armados destruístes
vencestes mui fero aventureiro
livraste com mão forte e redimistes:
Quem, como vós, amor forte e guerreiro
que choros e gemidos não ouvistes?
Os fracos são por vós favorecidos
e os fortes e soberbos abatidos.
(265)
Quem vos pediu favor que não no visse?
Qual dos vossos se viu tão perseguido
que logo vossa ajuda não sentisse,
sendo de vossa mão favorecido?
Ou quem bradou por vós, que não ouvisse
resposta mui suave a seu gemido?
Que natureza, há tão fera e dura,
que não sinta em si vossa brandura.
(266)
Não mostreis, alma minha, ter receio
dos medos do demónio e seu bramidos,
mostra um forte coração, um peito cheio
de amor, e nele emprega teus sentidos:
Todo temor já’gora seja alheio
de corações doces favorecidos,
nem temas, pois fugiram teus imigos
e tu ficaste livre de perigos.
(267)
Alegra-te no Senhor, ó alma minha,
canta-lhe mil louvores de contino,
pois ele é teu favor, tua mézinha
teu amor mui suave, e mui benigno:
Alegra-te, pois deixas quem te tinha,
e tens por defensor contra o maligno
aquele que governa céus e terra,
e o imigo mau de ti se desterra.
(268)
Louvai céus, o Senhor, lá nas alturas
e vós com doce voz cantai louvores,
anjos, arcanjos e virtudes puras
em cujo peito nunca há temores:
E vós também, humanas criaturas
o louvai, por mi, por tais favores,
cantando seu louvor eternamente,
pois pera mulher má foi tão clemente.
(269)
E tu, sol, cuja luz tão clara e pura
e às baixas terras mostras o claro dia,
de quem se esconde sempre a noite escura,
e os campos se revestem de alegria:
Pois és obra de Deus, e criatura,
louva teu criador a grã porfia,
pois te deu tais virtudes e belezas
que o mundo enches de luz e de riquezas.
(270)
Ah deixa, Délio, deixa o arco duro
com que já deste a Piton morte dura,
de Dafne não te lembres, pois em ouro
tem já mudada a sua fermosura:
A tua doce lira, grão tesouro
das brandas musas, canta com brandura
louvores do Senhor, pois é mui digno
que a teu criador louves de contino.
(271)
E tu, Diana bela, que as montanhas
seguindo vais, por gosto, com donzelas
em bela fermosura mui estranhas,
parecendo sol claro, e elas estrelas:
Deixa de louvar tuas façanhas
e louva teu Senhor com todas elas,
que eu nele me vou toda transformando
e vós, olhos, qual de lince o ide buscando.
(272)
E vós, ninfas do cristal do firmamento,
livres de corrupção, mansas, benignas,
louvai também a Deus cada momento
por suas maravilhas tão divinas:
Louve também a Deus todo o elemento,
montes, serras, vales e campinas,
pois Ele disse, e tudo foi criado,
e logo obedeceu a seu mandado.
(273)
Tudo que criou, tão sabiamente
ordenou, com tal sorte e com tal arte,
que permanece assim eternamente,
sem falta se enxergar n’alguma parte:
A uns tempos noutros, sucessivamente.
a geração das cousas se reparte,
conservando-se todas com cuidado
sem passar do que Deus lhe tem mandado.
(274)
Louvai dragões, e abismos cavernosos,
o Senhor que governa céus e terra!
Vós fogo, raios, ventos espantosos,
pois ele por mi venceu a guerra:
Outeiros, montes, plantas e cheirosos
cedros; fontes, rios e alta serra,
rebanhos, feras, aves e serpentes
cantai de seus louvores entre as gentes.
(275)
Vós príncipes da terra, imperadores,
que por mercê de Deus sois mais subidos,
dai-lhe mil graças sempre, dai louvores
por mostrar-vos nisso agradecidos:
E isto tanto mais deveis, quanto maiores
sois na terra, de todos tão servidos;
Mancebos, moços, velhos e meninos,
cantai a Deus louvores mui continos.
Autor
(276)
Fez pausa a Madalena, e deu remate,
influída no amor que n’alma tinha,
por que viu que ligeiro as asas bate
um anjo que do céu por ela vinha:
Anjo
Alegra-te mulher que tu és mate
de grandes corações, e bem convinha
padeceres: que em casos perigosos
se mostram os fortes e animosos.
(277)
Qual no fogo o ouro que mais se apura,
nos trabalhos se apura a fortaleza,
nos casos mais adversos da ventura
a constância do forte é grã riqueza:
Nas cousas a que néscios não dão cura
resplandece a prudência com viveza,
sem guerra não se alcança bem vitória
com que se goza paz com grande glória.
(278)
Na terra oprimis o fraco, mas o forte
que fica em campo sendo vencedor,
sai vitorioso sempre, em toda a sorte,
o coração ousado e sem temor:
Quem segue e tem a Deus sempre por norte,
não poderá sentir nunca desfavor,
sem guerra não se alcança a fama
que pelo mundo corre e se derrama.
(279)
Não pode contra estar a parca dura
a fortes corações que em Deus confiam,
aqueles que esperam na ventura
da suma omnipotência não se fiam:
aqueles andavam sempre em noite escura
que da luz do sol divino se desviam,
aquele é vencedor da morte fera
que no Senhor confia e nele espera.
(280)
Venceste Madalena a fera morte
vencendo-te a ti mesma nesta guerra,
mostraste coração ousado e forte,
ao céu deste prazer, espanto à terra,
em prémio desta tua boa sorte
aquele em cuja mão tudo se encerra
te dá por companheira a fortaleza
que te defenda sempre de fraqueza.
(281)
A fé, e caridade, e esperança
em teu peito farão sua morada;
De ti nunca farão já mais mudança
a prudência e modéstia tão gabada:
Terás sempre contigo a confiança
em Deus, de quem serás aconselhada;
Terás sempre por escudo a paciência
por armas, mansidão e mais clemência.
(282)
As lágrimas te dá por doce fruto
em amor e temperança temperadas,
e delas não será teu rosto enxuto
que se elas de amor são, são estimadas:
Com elas pagarás a Deus tributo
e serão tuas mágoas bem lavadas;
Será teu manto a pura honestidade
e teu manjar amor, e sã vontade.
(283)
Terás mais por brasão de tua fama,
humilde coração, manso e benigno;
Com eles vencerás a viva chama
em que soberbos ardem de contino;
Não te porá temor a mão que brama
de inveja contra bons: mas teu destino
será servir a Deus com fé mui pura
com sossego, descanso e paz segura.
(284)
Esta coroa rica, e bem lavrada
por mãos dos mesmos anjos, nessa glória
de virtudes cem mil, mui esmaltada,
tens sempre em sinal desta vitória;
Depois de morta, vida descansada
no céu: e na terra, honras por memória,
que bem merece uma alma vencedora
mais honra que esta; fica-te embora.
Madalena
(285)
Se minha alma, meu Deus e meu Senhor,
muito tempo há rendida não tivera,
tem tal força, tal poder este favor
que, no mesmo instante, logo a rendera:
Que quem já se transformou em vós, Senhor
cousa não pode ter, que vos não dera;
E pois, não tendo já de meu que vos dar possa
deixarei de ser minha, por ser vossa.
(286)
Bem vejo que não é de muito preço
cousa tão suja, e cheia de maldade,
mas o que por ser esta desmereço
mereço na pureza da vontade:
É verdade Senhor, que me ofereço
gastada em torpezas já a flor da idade,
mas não me desprezeis em tal estado
pois tenho meu amor em vós mudado.
(287)
Tão firme serei, e tão constante
na troca do amor que tenho feito
que cousa algu’a não será bastante
pera tirar vosso amor já de meu peito:
E pois esta há-de ser d’hoje em diante
o coração, a fé, e amor perfeito
daqui vos dou, e muito mais dera
se outra cousa melhor de meu tivera.
(288)
Por que tão outra sou do que soía
que própria a mi mesma desconheço,
por que se a mi o mundo me seguia
já agora por vosso amor o aborreço:
Pois de todo então não conhecia
o engano que já claro conheço,
pera satisfazer tal malefício
a vós me ofereço com sacrifício.
Soneto à mesma Santa
Ditosa penitente, amor ditoso
lágrimas amorosas bem choradas
com dor e grave pena derramadas
aos pés do soberano e doce esposo:
Ó pranto só, felice e venturoso
ó lágrimas no céu mui estimadas,
ó lágrimas cristalinas só geradas
no peito donde o amor tem seu repouso.
Aqui mudaste vossa natureza
tornando-vos de tristes deleitosas
todas vos converteste em doçura.
Esforço estais mostrando e não fraqueza,
nem sois amargas já, mas deleitosas
porque vos ides banhar em fonte pura.
Outro
De teus fermosos olhos vão correndo
pérolas de cristal em tal brandura
que nelas não haja se não brandura
em que todas se vão já convertendo;
Todo seu amargor estão perdendo,
Madalena, naquela fonte pura,
na qual tua alma tanto mais se apura
quanto mais largo pranto vais fazendo;
Andavas feia, e cega, e mui perdida,
agora que em tal banho estás banhada,
de sua luz te vejo revestida;
A vista de teus olhos tens ganhada
depois que te chegaste à mesma vida
com vida, e fermosura melhorada.
Outro
Com rezão Madalena te é dado
o bem que com descanso tens presente
e dele gozavas eternamente
pois por fogo e água tens passado;
As águas que tens, os olhos tem chorado,
mostraste estar de ti mui descontente
o fogo foi amor em Deus ardente
em quem teu coração foi apurado:
Daqui saiu tua alma renovada
vencido mesmo o sol em fermosura
de vestidos divinos esmaltada;
Daqui ficou tão limpa, bela e pura
que dos coros celestiais foi levada
pera gozar de Deus lá nessa altura.
Outro
A escada de Jacob da terra via
por arte singular tocar no céu
de anjos resplandecentes pareceu
mas nem um sem descer ao céu subia.
Assi pera subir, desce Maria
das torres ao estado em que nasceu
E no degrau primeiro que escolheu
em lágrimas de amor se desfazia.
Desta arte pôs amor a Madalena
no mais baixo lugar da humilde terra
por que subindo mais, fosse mais bela.
E sobe a santa tanto que aferra
nos pés do eterno Deus, exemplo nela
que do mais baixo vale faz mor serra.
O Tratado da Maravilhosa Conversão é um documento manuscrito, anónimo, sem indicação de fólio, que apresenta as primeiras páginas muito estragadas nos cantos. Não oferece, portanto, quaisquer indicações quanto aos aspectos da escrita.
Relativamente à sintaxe, encontram-se algumas faltas de concordância entre sujeito e verbo, entre substantivo e adjectivo. A pontuação é rara. Quanto à ortografia, mostra opções não uniformes (imigo/inimigo, p.ex.), além de troca de letras, esquecimento de marcas de nasalação, etc.
Adoptou-se o critério da modernização, mas com o cuidado de não afectar a realidade fonológica e fonética do estado da língua tal como se apresenta, o que levou ao manter de alguns arcaísmos. No caso de dúvida, a reconstituição foi orientada pelo respeito entre sentido e prosódia, que também conduziram ao aceitar da segunda proposta quando perante uma rasura do copista.
As unidades estróficas e o destaque de indicações de fala nos diálogos são originais, assim como a numeração das estrofes.
Relativamente à ortografia, normalizou-se a acentuação, desenvolveram-se as abreviaturas, separaram-se (ou uniram-se) as palavras, bem como os pronomes enclíticos e mesoclíticos do verbo, de acordo com o uso actual. Substituiram-se os raros grafemas <y> por <i>, e os grupos vocálicos orais <eo>, por <éu> ou <eio>; <ea> por <eia>. As vogais nasais, quando em sílaba interior e em posição pré consonântica, foram transcritas seguidas de <m> ou <n>; quando em sílaba final, ficaram com til (vam - vã). Foram desdobradas as vogais que aparecem em contracção, e contraídas as que exigiam acentuação (fee-fé). Porque aleatória, regularizou-se a ortografia das terminações nasais correspondentes a ditongos: (dizião-diziam); aos grafemas <ç> e <s>, <-s-> e <-ss->, <s> e <z>, <j> e <g>; o uso de <h> foi restituído quando ausente, ou eliminado quando associado a consoante (excepto nos casos <nh> e <lh>); o <u> nasalado, passou a um. Normalizou-se o uso dos dígrafos <gu> (digua/diga), e <qu> antes de vogal com valor de <k> (nunqua/nunca); <-ff->, <-ll->, <-mm-> e <-cc-> são reduzidas a consoante simples.
Por exigências prosódicas, ou por respeito ao sentido do termo na época, manteve-se a grafia de: antre; contino; cousa; empreza; estremo; fermoso; imigo; mui; mor; pera; rezão; por norma, quando aparece mais do que uma versão das outras palavras, optou-se pela mais recente.
[2] Aparece sempre com o sentido de causar dano-lástima;