imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Nuno Júdice, 1999

 

Cristo e Madalena [1]

 

No museu de Helsínquia, uma arrependida Madalena

atira-se aos pés de um cristo mais humano do que

é habitual. Talvez por isso os olhos de madalena

procuram os olhos de cristo, e uma hipótese de

5       sorriso (ou será ironia?) abre-se nos lábios dele

mais húmidos que o habitual. Ao contrário de

quadros antigos, com a mesma madalena e o mesmo

cristo, esta tem uma fita a prender os louros

cabelos, veste um casaco de veludo, e o peito

10     apenas se deixa adivinhar sob uma camisa branca e

         jóias de boa qualidade. Ali, no museu de Helsínquia, é

normal que esta situação não siga os modelos

canónicos: o norte não é um lugar para excessos, para

tragédias, e tanto a madalena como cristo fazem bem

15     em corportarem-se como burgueses. De facto, o cristo de

         sandálias que estende a mão à madalena de edelfeldt,

até lhe fala com ar desprendido, como se comentasse

o tempo. Por outro lado, tudo se passa à beira de um

lago, a náo ser que o que se vè seja um braço

20     do mar báltico, como é frequente nesta região: e

para que haveria o pintor de imaginar cenários

exóticos, quando o que interessa é dar um

fundo compreensível (perceptível) ao mistério que

envolve esta cena. De facto, por que haveria cristo

25     de perder tempo com uma pecadora? A não ser que ela

usasse argumentos fortes na sua discussão, mais fortes

do que o banal arrependimento que, nestas situações

não parece das coisas mais consistentes. Sim: que

desgosto de amor o terá provocado?, que conflito de

30     cama, que suspeita de doença, que súbito cansaço

na vida de bordel? Nada que o tempo não possa curar...

a náo ser que esta troca de olhares, à luz do sol,

se prolongue para lá das árvores, do céu que se

reflecte na água da dureza das pedras em que

35     os seus joelhos se magoam, mesmo que o chão esteja

coberto das folhas mortas do outono. Então,

deixo-os sozinhos. Há conversas que não se podem

interromper, segredos que não se devem desvendar.

 

[]

 


[1] In Teoria Geral do Sentimento, apud. Nuno Júdice - Poesia Reunida 1967-2000, Assírio & Alvim, Lisboa: 2000, pp.925-26;