Julian Barnes nasceu em Leicester em 1946, e estudou em Londres e Oxford. Desempenhou as funções de lexicografo no O.E.D., e depois veio a trabalhar como jornalista para o New Statesman e o Sunday Times. Entre 1982 e 1986 fez critica de televisão para o Observer – mais sobre a biografia. É também o autor de quatro romances policiais, que assina com o pseudónimo de Dan Kavanagh, no fim de cuja página consta: “If you like Dan Kavanagh, try Julian Barnes.” Em ambas estão acessíveis dados biográficos, críticas, entrevistas, bibliografia, prémios.
Como temáticas típicas de Julian Barnes – entre as muitas tratadas no seu registo irónico – salientam-se os dramas sub-liminares à investigação científica, a relação entre a arte e a vida; e a oposição cultural entre franceses e ingleses, tornadas proféticas em tempos de Brexit.
Before She Met Me, 1982 (livro do ano para Philip Larkin) tem por tema principal as manifestações do ciúme. O historiador Graham Hendrick, divorciado de Barbara, casa segunda vez com Ann, sentindo-se perfeitamente realizado nas suas segundas núpcias. A paixão por Ann leva-o a tirar notas sobre tudo o que lhe diz respeito, chegando ao pormenor de registar, inclusive, as suas mudanças de roupa. Esta preocupação torna-se rapidamente obsessiva quando descobre que a mulher tem um ”passado”: foi actriz em filmes de segunda classe. Como bom historiador, Hendrick alarga o âmbito das suas investigações aos objectos particulares de Ann, em busca de indícios de hipotéticos adultérios. O interesse pelas coisas antigas revela aqui a sua faceta comezinha, acabando por confundir as estratégias da perseguição ciumenta com as práticas da pesquisa científica.
O interesse pela história aparece de novo em Flaubert’s Parrot, 1984 [O Papagaio de Flaubert, 1988], mas agora nas perspectivas literária e biográfica. O protagonista, Geoffrey Braithwaite, é um médico apaixonado por literatura que percorre os espaços habitados pelo seu herói, Flaubert. Na sua deambulação é surpreendido pela irónica existência de duas versões empalhadas do mesmo papagaio, que terá servido de modelo ao autor francês para o conto “Un Coeur Simple”. Este multiplicar do modelo serve de pretexto à reflexão sobre alguns dos problemas que se colocam à investigação literária, abordados como sempre de um modo bem divertido. É por este motivo que alguns críticos consideram este texto como um ensaio, enquanto outros lhe chamam romance, e mesmo romance de viagens, ou uma biografia cubista.
Em 1986, Barnes reincide no romance com Staring at the Sun. [De frente para o sol. 1990]. O livro começa com a estranha experiência de um jovem piloto da II Grande Guerra, Thomas Prosser, que, durante uma das suas surtidas à caça de aviões inimigos, vê o sol nascer duas vezes no mesmo dia. Devido a problemas de carácter psíquico, desencadeados pela sua actividade, Prosser é colocado em terra para descansar, em casa dos pais de Jean Sergent. A narrativa desenvolve-se pelo acompanhar da evolução de Jean, desde 1941 até ao ano 2020, focando os momentos chave de uma vida sem história, a adolescência, o casamento, o nascer de seu filho Gregory que a leva a abandonar o marido, e os anos que passam juntos. O romance, que não possui a dimensão humorística dos anteriores, procura estabelecer um paralelo entre o voar e a vida, acabando com Jean, nonagenária, a olhar um pôr-do-sol da janela de um avião.
A History of the World In 10 1/2 Chapters, 1989 [A História do Mundo em 10 Capítulos e 1/2, 1990] é um acumular de pequenas narrativas centradas em temas já caros ao autor: a História e a sua sabotagem, as viagens e seus acidentes. O texto começa com a Arca-de-Noé e os problemas práticos decorrentes da escolha e embarque dos animais. Continua por outras formas de viagem: marítima, do cruzeiro recreativo aos naufrágios – exemplificados nos casos do “Medusa” e do “Titanic”; por terra, nas expedições – pela selva, ou subida à montanha (Ararat, claro); pelo ar, na faceta mais moderna do espacial – a viagem à lua, em 1974 do astronauta Spike Tiggler, a quem uma voz ordena que parta em busca da Arca (de Noé, pois). Para terminar no sonho, ainda uma outra forma de viagem, agora uma excursão, com estadia em hotel de luxo, e visitas guiadas ao Paraíso.
A relação entre a arte e a vida é modernizada, no capítulo 5.II. À pergunta “como se pode transformar a catástrofe em arte?” responde-se: “Hoje em dia o processo é automático. Uma central nuclear explode? Teremos uma peça num palco inglês dentro de um ano.”
Como sempre Barnes joga na indeterminação dos Géneros: mistura documentos ‘verdadeiros’ com informações fictícias; pelo recorrer às mais diversas estratégias de construção narrativa – uso de cartas e telegramas, ensaios, processos judiciais, etc. Muitos são os desafios ao leitor e ao crítico: não se preocupa em identificar o texto, prefere chamar-lhe apenas livro; caricatura a história, a religião e a estética; exibe a descontinuidade entre os diversos momentos, que no entanto aparecem unidos entre si por pequenas pistas deixadas sub-repticiamente – como no romance policial. Aspira a algo de sério, mas aposta descaradamente, e sem preconceitos, no ”best-seller“, não podendo sequer ser acusado de falta de qualidade.
Outra das suas temáticas – a ficar profética – tratada no seu registo meio satírico, é as relações entre franceses e ingleses, tidos por inimigos culturais há séculos. Os franceses respeitam o espírito prático e o génio inglês; os ingleses os requintes culturais e as subtilezas da França. Mas há diferenças que se materializam em várias oposições:
– os mini-morris e os dois-cavalos;
– o hobby da jardinagem contra o bricolage;
– as sanduiches de pepino, contra as de patê;
– o Crazy Horse contra o Moulin Rouge;
– os ovos mexidos com bacon contra a omeleta aux-fines-herbes;
– o whisky contra o champagne, etc.
Uma série de contrastes que acabam como clichés de uma cultura.
São estas diferenças de pormenor que levam a que se criem situações insólitas, às vezes hilariantes, quando se pega em exemplos concretos e casos do quotidiano onde se cruzem indivíduos, franceses e ingleses. Já as encontràmos em O Papagaio de Flaubert, reaparecem explicitamente no volume de contos Cross Channel 1996 [Do Outro Lado do Canal, 1999]. De Inglaterra, ou da França os outros estão sempre do Outro Lado. Há um traço de união (recente ao tempo) que ultrapassa o abismo do mar da Mancha, o “Túnel”, que curiosamente é o título da última das dez histórias desta colectânea. Nela, um escritor já velhote vai observando os seus companheiros de viagem, recordando histórias suas, indirectamente revelando-nos que cada uma desses acompanhantes é uma das personagens dos contos anteriores.
Como sempre, por aqui se tem o toque da paródia às teorias sobre como se devem escrever histórias – a visada mais evidente é Virgínia Wolf que, num dos seus ensaios – “Mrs. Brown” -, oferecia este exercício de observação como estratégia para chamar as Musas. Um aspecto que mostra que Barnes nem pode ser levado à letra, nem lido apenas na superficialidade.
England England, 1996 [Inglaterra, Inglaterra. 2000] tem por herói um milionário inspirado, Sir Jack Pitman. Pegando na definição escolar de que a Inglaterra inteira cabe na Ilha de Wight, resolve transformar a metáfora em realidade. Procura satisfazer o desejo dos turistas de visitar rápida e confortavelmente as principais atracções britânicas, e propõe-se desenvolver O Projecto. Este é enfiar toda a herança arquitectónica britânica – da torre de Londres a Stonehenge – em réplicas, na Ilha de Wight. Uma forma de discutir o que é de facto a nacionalidade num momento em que se debate a (des-)União Europeia.
Julian Barnes, com 14 traduções para português, tem os romances em e-book (nos lugares do costume – alguns em áudio são grátis).
Foto adaptada
Helena Barbas