Em 2004 tive a oportunidade de entrevistar José Saramago a pretexto de dois livros seus – Ensaio sobre a Lucidez e, o ainda no prelo, Don Giovanni ou o Dissoluto Absolvido (2005). Transcrevo aqui a entrevista na íntegra, pela sua actualidade e para boa memória.
Depois do seu último livro, Ensaio sobre a Lucidez, que acabou de lançar em Lisboa, José Saramago vai regressar à arte de todas as aparências, a ópera. E terá pronto em Abril um libreto para um Don Giovanni – muito seu – que estreará no próximo ano no teatro A La Scala de Milão. Para esta conversa o pretexto primeiro foi o romance.
Comecemos pelo seu Ensaio sobre a Lucidez, que gira em torno do voto em branco. Recordava-lhe um facto já histórico, do tempo do PREC, quando votar em branco era votar no MFA…
Quando fui director adjunto do Diário de Notícias, lembro-me de ter escrito qualquer coisa nesse sentido, mas explicando o que queria dizer quanto ao voto em branco. A pessoa que o expressasse pretenderia dizer isto: ainda não tenho informação suficiente sobre o que me propõem, por isso ponho o voto em branco para confirmar que estive cá, e que vou pensar.
Não é dizer: não tenho confiança em nenhuma das listas?
Pode acontecer, pode acontecer.
E não poderá ser lido como um acto de desobediência civil?
É claro que sim. Mas naquela situação a que fez referência, o voto em branco podia ser entendido de diferentes maneiras. Uma era essa, o apoio ao MFA. E também aquela outra, que era a minha tese: eu voto em branco porque vivemos estes quarenta e oito anos na situação em que vivemos, e agora aparece a liberdade e, segundo dizem, aparece a democracia, e eu não sei ainda muito bem o que hei-de fazer mas, de qualquer forma, o meu voto em branco ficou aí e pode ser que nas próximas eleições já não seja em branco.
Não acha mal então que sejam contados juntos os brancos e os nulos?
Acho péssimo. Um voto em branco não é um voto nulo. Um voto nulo é um voto que eu inutilizo de variadíssimas maneiras. É nulo porque não expressa nada, porque se recusa. Se o voto não traz nenhum sinal – e agora estou a referir-me à cruzinha no quadrado do Partido – é aquilo que na lei eleitoral é muito claro: o voto branco é um voto expresso.
Este seu livro é quase profético relativamente ao que aconteceu em Espanha, na semana de 11 de Março. Sente-se incomodado? A vida ultrapassa a arte?
E a arte ultrapassa a vida – eu acho que vão de braço dado. Como acontece quando vamos dois de braço dado, há um dos dois que vai meio passinho adiante. Vida e arte, realidade e fantasia, vão todos juntos, no mesmo caminho e na mesma caminhada.
Disse numa entrevista à TSF que éramos enganados todos os dias, e que de alguma forma este livro pretendia desmontar esse engano – mas a sua desmontagem acaba mal…
Como não sou leviano, como não sou adolescente nem ingénuo, admito que possa acabar mal. No caso do livro, no caso da história que conto, o governo desse país que sabemos que nunca é mencionado — embora a certa altura haja o «portugueses e portuguesas» e o narrador se apresse a dizer que não, isto é só um exemplo, poderia ser «franceses e francesas»…
O seu romance pode ser lido como uma crítica a esta democracia que nós temos?
Não, o livro deve — não tenho que estar para aqui a dizer que o livro deve — mas posso dizê-lo de outra maneira. O livro propõe-se efectivamente dentro do sistema. Curiosamente, pode ser subversivo, mas o que acontece é perfeitamente legal: o uso do voto em branco é legal. O gracioso é que, um sistema como este que nos governa, admite que se apresentem votos em branco nas urnas, mas não se preocupa muito com a contabilidade deles, porque é sempre uma coisa simbólica, testemunhal — 1 por cento, 1,5 por cento, à volta disso —, e portanto não incomoda, não perturba o sistema, não provoca nervosismo. Agora, se esse voto em branco passasse a dez por cento — já não quero dizer como no livro, a 83% — isso era o terramoto de 1755 sem vítimas e sem estragos.
A sua história é uma crítica ao sistema…
Eu critico aquilo que está. E digo redondamente: os governos são comissários políticos do poder económico. Isto é claríssimo como água, e é preciso que seja dito. Sobretudo, é preciso que esses mesmos governos — e agora falo dos governos, ou dos políticos que estão no governo ou que estão fora do governo — façam o favor de, nem sequer com as melhores intenções, se darem ao trabalho de enganar os eleitores.
Acha que a situação é premeditada…
Vivemos agora numa situação de emprego precário, e cada vez mais. É evidente que nenhum governo, por si só, estabelece agora regras que conduzam à precariedade do emprego. A nenhum governo ocorreria isso. Mas o governo actua, prepara a legislação necessária, para que isso seja introduzido na sociedade, e a pressão vem de fora. Vem do outro poder, que diz não a isto de ter empregos permanentes, e a que as pessoas se habituem a viver assim, até ao fim dos seus dias, reformando-se e tudo isso, não, não… rotação, mobilidade. E a mobilidade é isto, é o desemprego, é o factor constante de medo, com as pessoas a chegarem ao emprego sem saber se ainda têm trabalho, com medo que lhes digam: recolha as suas coisas e vá-se embora. Ou os operários de uma fábrica que são surpreendidos — que já ninguém se surpreende, enfim… — porque a empresa decidiu instalar-se nas Filipinas, ou onde quer que seja, porque a mão-de-obra é mais barata. Nenhum governo proporia isto, mas os governos estão aí para que isto seja possível.
Há uma conspiração secreta…
Nada secreta. O poder económico, em primeiro lugar, contempla os seus próprios interesses, não está aí para construir a felicidade das pessoas. O poder económico só tem para vender, não oferece nada, mas também nunca ninguém ofereceu nada…
Mas os desempregados também não podem comprar…
Não. Mas, curiosamente, ninguém se preocupa com o facto de os desempregados não poderem comprar, porque os outros, os que ainda estão empregados, vão continuar a comprar… e sabemos o que é que significa comprar hoje: significa obedecer a uma espécie de compulsão, a que não se pode resistir, e que se compra, e que se compra…
Somos todos vítimas da sociedade de consumo?
Lembro-me de quando era menino, e a minha mãe me dizia – vai por o caixote à porta. Era uma frase doméstica, dita à noite, sempre: vai pôr o caixote à porta. O caixote do lixo, claro. E no caixote do lixo, o lixo era pouquíssimo. Era uma coisa insignificante, quando tudo se consumia, tudo era tratado de tal maneira que se consumisse. Agora não. Só em embalagens, em frascos e latas e tudo isso… Mas enfim, não estou a pedir para voltar ao tempo em que as mães diziam aos filhos vai por o caixote à porta. Não é disso que se trata.
Trata-se de uma crise na democracia como ideia? Falo das manifestações de rua: as que houve em Espanha, em dia de reflexão eleitoral, quando era proibido; as manifestações contra a guerra, convocadas à revelia do poder…
Falo primeiro sobre o dia de reflexão. Foi ilegal, porque as pessoas se manifestaram à porta das sedes dos partidos, contra instruções do Partido Popular, porque era um dia de reflexão. Mas também era dia de reflexão para o senhor Mariano Rajoy, que publicou no sábado, no jornal El Mundo, uma entrevista em que apelava à maioria absoluta. O que é condenável, é condenável para todos e acabou-se.
Estava a pensar no termo democracia — o governo pelo povo — e o povo na rua não mandar nada. Em Espanha, de algum modo, mandou alguma coisa…
É possível ver a coisa de outra maneira. Recuemos um ano. Fevereiro e Março de 2003, portanto vésperas desta guerra. Milhões de pessoas — estou a falar de Madrid e Barcelona e várias outras cidades — milhões de pessoas na rua. Segundo sondagens que nem sequer foram contestadas pelo governo, noventa por cento da população de Espanha estava contra a guerra. Foi dito e repetido, e ninguém diz que não era verdade. (Embora as sondagens sejam uma questão de fé, e a fé também possa ser uma questão de sondagens). Enfim. Houve umas eleições depois, não se notou porque o PP ganhou. E houve uma diferença óbvia entre a primeira e a segunda legislatura do PP. A primeira foi uma legislatura normal, pacífica, trabalharam bem — sem ter em conta o ponto de vista ideológico — no conjunto foi uma legislatura positiva. Na segunda, entrou-lhes a soberba, entrou-lhes a insolência do poder. E o caso do Prestige, tudo o que sucedeu…
Há um problema de falta de informação, de mentira…
De negação da verdade. Não quero dizer a mentira, porque para mentir é preciso construir algo para pôr no lugar da verdade. Mas há uma outra técnica, que é negar que aquilo que toda a gente sabe ser a verdade, ou uma verdade, ou a verdade aparente pelo menos…
A evidência?
A evidência ser sistematicamente negada. E quando o senhor Aznar, no rancho do Texas com o senhor Bush, pôs os pés em cima da mesa, julgava que se tinha posto à altura dos grandes estadistas. Como não há grandes estadistas actualmente… Ao lado do Senhor Bush, do senhor presidente dos Estados Unidos, nada mais, nada menos. Concretamente, a ideia que ele teve, de transformar a Espanha numa grande potência internacional, é admissível e até, enfim, louvável, ou plausível para um político. Mas, se ele teve essa ideia, tornou-a imediatamente numa submissão canina às ordens e às directrizes que lhe vinham lá do outro lado. As pessoas em Espanha compreenderam isso, foram compreendendo isso, e a segunda legislatura foi cheia de tensões contínuas — sociais, políticas. E havia um fermento na sociedade que estava a agitar tudo, como se as pessoas estivessem fartas. No fundo era isto. Agora, podia acontecer que o PP ganhasse, ou com a maioria absoluta ou sem ela. O Partido Socialista poderia ganhar a Sul, nas previsões mais optimistas, mas seria apenas em situação de empate técnico. Não se esperava era que a diferença, a vitória do PS fosse a que foi.
Foram as pessoas na rua que fizeram isso?
Não foram as pessoas na rua. Houve dois milhões de votos de novos eleitores, jovens que votaram pela primeira vez, e que decidiram, na sua maioria, votar no PS. As pessoas na rua podiam dar o efeito contrário. O temor das agitações que levassem as pessoas a proteger-se sob a alçada do que aparentemente lhes tinha dado segurança ao longo dos oito anos anteriores.
Tudo isso tem a ver com o seu livro — as manipulações, a falta de informação…
Efectivamente, há coincidências perturbadoras. Mas são coincidências e que resultam da própria vida. Se há um extremo, o voto em branco numa situação política determinada, com um governo que se comporta como se comportou esse, com as consequências todas até ao remate trágico que o livro tem… é natural. Isso pode não ser cópia do que aconteceu fora do livro, mas o livro alimenta-se disso…
Do que poderia ter acontecido?
Da realidade do que poderia ter acontecido. Que tivesse sido necessário encontrar uma vítima, sabemos que é assim, que o governo tenha posto uma bomba… Mas, enfim! O couraçado Maine foi afundado na Baía de Havana para justificar a guerra dos Estados Unidos contra Espanha para rapar Cuba. Lembra-se da bomba posta cá na Antena? Foi o governo, e atribuiu-se à extrema-esquerda, que nesse caso estava completamente inocente. E o incidente, chamado da Baía de Tonquim, que deu pé à intervenção Norte americana no Vietname, que simplesmente não existiu. Também há uma coisa que se chama terrorismo de estado…
Uma estratégia da aranha?
Não sei quem é a aranha, sei quem são as moscas, e as moscas somos nós.
Este seu romance — pegando no título — é uma resposta ao Ensaio sobre a Cegueira?
Não. Repare, o Ensaio sobre a Cegueira foi publicado em 1995, portanto passaram quase dez anos, e quando terminei o livro, e durante o tempo em que o escrevi, não pensei que a cegueira viesse a ter uma continuação. E o Ensaio sobre a Lucidez não é uma continuação…
Mas aparece nele uma fotografia, com as personagens todas do primeiro livro…
Uma fotografia que eu não tinha feito, ou não tinha mandado fazer a alguém no Ensaio sobre a Cegueira, mas que aqui é natural…
É natural…?
Aquele grupo de sete pessoas que estavam juntas no Ensaio sobre a Cegueira, não é natural que depois de recuperarem todos a vista tivessem feito uma fotografia? A fotografia do grupo? E não é natural que as cópias dessa fotografia estivessem em poder de todos eles?
Claro, perfeitamente, até há fotografias dos casamentos…
E nós não temos fotografias da praia e do campo e de qualquer outro sítio?
Mas «cegueira» versus «lucidez»…
O tema apresentou-se-me com uma nitidez enorme, em finais de Janeiro do ano passado. Já contei. Estava em Madrid, dormia, acordei, vi o relógio e eram três horas exactas da madrugada. Não estava a sonhar com votos, nem brancos nem pretos, nada disso. De repente tive a ideia — isto é para tratar num romance. E, como felizmente para mim acontece quase sempre — poupa-me o trabalho de andar à procura de títulos — este apresentou-se-me logo: Ensaio sobre a Lucidez. É evidente que nesse momento se estabeleceu uma espécie de díptico — Ensaio sobre a Cegueira, Ensaio sobre a Lucidez — opondo-se, claro está, a lucidez à cegueira. Quem quiser tomá-lo como uma continuação, está no seu direito. Mas na minha cabeça e na minha intenção nunca o foi…
Não será outro modo de reflectir sobre a mesma coisa?
Não, são duas coisas realmente diferentes. Embora seja certo que na última página deste livro reaparecem os cegos, que não se sabe de onde eles vêm…
De Brueghel?
Podia ser. E que dizem: detesto ouvir os cães a uivar. Como reparou, a epigrafe, é «Uivemos, disse o cão». Uivemos.
O cão para si é importante — há sempre um cão… — tem um cão?
Tenho três cães. Este cão é metafórico. Há cães que aparecem por aí. Há o «cão das lágrimas» no Ensaio sobre a Cegueira…
Em «A Caverna» também..
Na Caverna há um cão, que é o Achado, e que é o retrato de um que eu tenho que se chama Camões. Um cão abandonado que nos apareceu em casa no dia em que me anunciaram de Lisboa que eu tinha recebido o Prémio Camões. Então a minha mulher disse, olha, como foi neste dia, vamos chamar-lhe Camões. Aqui há dois cães. O «cão das lágrimas», que vem do Ensaio sobre a Cegueira, e esse cão, do Livro das Vozes, que está aqui a dizer «uivemos» porque parece que chegou o tempo de começarmos a uivar todos. Os cães somos nós. Há bocado eu dizia — sobre a estratégia da aranha — que as moscas éramos nós. Diria neste caso que os cães somos nós. E temos que começar a uivar.
Mas há outra coisa com os seus cães — os cães têm nome. A maior parte das personagens não tem, só recebe alcunhas como os «tipos» medievais…
O «cão das lágrimas» tem esse nome porque na verdade fez qualquer coisa que não é muito comum num cão — aproximou-se da «mulher-do-médico» para lhe secar as lágrimas…
Confirma o que eu disse. Nos seus livros há uma obsessão com os nomes —no Cerco há a listagem de nomes, em Todos os Nomes há aquele arquivo estranho…
Anda que só apareça um nome, que é o nome do Sr. José…
Se por um lado há o anonimato, que é a quantidade excessiva de nomes, por outro há uma ou outra personagem que aparece com um nome determinado — o José, o Raimundo.
Na História do Cerco de Lisboa toda a gente tem o seu nome.
Mas aí diz que os nomes não são importantes, que «deveria ser um homem a escolher o seu próprio nome e a mudá-lo todos os dias», que «um nome não é nada»…
Um nome não é nada. A Helena Barbas podia chamar-se Raquel – Raquel Welch…
Muito obrigada…
E eu chamo-me José Saramago, como você sabe, por uma casualidade, porque Saramago era a alcunha da família.
E as suas personagens têm todas alcunha, um nome como os dados na província, ligados à profissão…
Se uma pessoa se chama António Carpinteiro, isso significa algo. Pode significar que o nome coincide com a profissão que se tem, ou que essa profissão tenha vindo de longe. Sousa — que eu também me chamo Sousa, José de Sousa Saramago — é um tipo de pombo bravo, que nalgumas regiões se chama Sousa. Por tal, não nos preocupemos muito com a questão dos nomes, e sobretudo hoje. Você repare, no Ensaio sobre a Lucidez há um momento em que se refere Wagner, e Wagner aparece escrito com caixa baixa, parece uma falta de respeito. É que tudo se está a tornar insignificante. A única coisa que efectivamente nos identifica hoje, de uma maneira segura, é o número do cartão de crédito…
Ou o número de contribuinte?
Desculpe, mas é que o número do contribuinte só tem importância no país onde se está. O número do cartão de crédito é universal, é mundial, é um número que não se repete. Enquanto que os nossos nomes se repetem —os José da Silva são milhares, e os Josés de Sousa — se não lhe tivessem acrescentado o «Saramago» o meu nome seria repetido mil vezes. Agora o cartão de crédito não. Esse identifica, e identifica-me a mim diante de todos de uma forma absolutamente clara.
Global?
Globalmente. No mundo somos aquele número. Você aqui tem o número de contribuinte, e tem o número de eleitor, e tem o bilhete de identidade, uma quantidade de números que no fundo são complementares uns dos outros. O outro não necessita de mais nada.
Vai ser o novo cartão de identidade?
Provavelmente. Por um lado é. Enquanto não se chegar à tatuagem no braço.
Um código de barras?
É outra hipótese.
Regressemos aos seus livros. Há uma a espécie de miasma, no sentido grego, uma peste que se vai desenvolvendo e contaminando tudo de maneira mais ou menos insidiosa…
Não em todos. Há é uma outra característica que você pode encontrar em todos os meus livros: partem sempre ou, quando não partem, contêm sempre na história que contam algo impossível de acontecer. É impossível, em princípio — no outro dia saiu uma notícia no jornal que dizia que na Rússia há uma rapariguinha que vê através da pele. Não sei se é certo ou não, a Blimunda via através da pele. Depois da Blimunda o que é que temos? O Ricardo Reis, que não tem existência nenhuma, regressado do Brasil e a encontrar-se com o Fernando Pessoa que já está morto. Outra impossibilidade. A Jangada de Pedra, separar a península ibérica da Europa —outra impossibilidade. A História do Cerco de Lisboa: negar que os Cruzados ajudaram os portugueses a conquistar Lisboa, é preciso ter coragem, mas está lá. E depois o que é que vem? O Evangelho Segundo Jesus Cristo em que de facto se está a dizer coisas diferentes daquelas que são canonicamente estabelecidas e aceites. No Ensaio sobre a Cegueira, toda a gente cega, é impossível. Em Todos os Nomes, uma conservatória como aquela, não pode existir. A Caverna — a caverna de Platão debaixo de um Centro Comercial, também não pode ser. O Homem Duplicado — duas pessoas duplicadas uma da outra…
Isso agora já é possível…
Não é possível.
Não acredita na clonagem?
Não tenho que acreditar ou não. A clonagem pode produzir dois seres exactamente iguais, mas a vida pode fazer com que essa igualdade sofra, enfim, que seja afectada por um acidente, por uma cicatriz, pela queda do cabelo — que caia a um e não caia ao outro. No caso de O Homem Duplicado não. Se um deles tem uma cicatriz aqui, o outro tem uma cicatriz aqui. Se um deixou crescer o bigode, o outro deixou crescer o bigode. Se depois o tirou, o outro também o tirou, sem saberem um do outro. Portanto, é uma duplicação absoluta, em qualquer momento e em qualquer circunstância. E agora, o Ensaio sobre a Lucidez, em que eu acho que é realmente impossível que em algum lugar do mundo os cidadãos votem, até 83%, em branco.
Está a dar ideias às pessoas?
Se não há uma impossibilidade, provavelmente não há romance. Necessito desse estímulo.
Há uma outra constante, que é a preocupação com a visão, com as várias possibilidades de visão – os que vêem mais, os que vêem menos, os cegos, os que vêem através da pele…
Bom, acho que sim, vamos ver. Toda a sociedade humana está organizada em função da visão, da imagem.
Fala da visão normal, do sentido do órgão da vista. Mas o que os outros tipos de visão implicam tem a ver com a lucidez. No Ensaio sobre a Cegueira tem um cego —um zarolho — que vê mais que os outros…
No fundo, é a visão objectivamente considerada, claro está, e a visão como metáfora. Estão uma e outra, mas a visão como metáfora está presente, não direi em todos, mas pelo menos a partir do Ensaio sobre a Cegueira. Não é que se tivesse tornado um «leitmotiv», mas talvez tenha alguma influência o facto de eu ter tido que passar por duas operações à vista — cataratas, e um desprendimento da retina — e me tivesse condicionado nesse sentido. Estou mais preocupado, em primeiro lugar, com a visão tal qual, e em segundo lugar com as outras possibilidades de visão, enfim, a visão premonitória que um artista pode ter. Quando escrevi este livro, não tinha acontecido nada.
Aqui também faz uma maldade grande aos jornais — o jornalismo como forma de poder?
O jornalismo nunca foi poder. Quando há anos chamávamos aos jornais e aos media o «quarto poder», no fundo éramos uns ingénuos. Os «media» — os chamados média — são um mero instrumento. Não é verdade que se diz que os jornais vendem leitores aos anunciantes? Não é uma invenção minha, juro-lhe que não é. Eu percebo, têm que ganhar a vida. Já não é pouco correr o risco permanente de se perder o emprego. Mas aquilo que não posso perdoar é o instinto camaleónico. Muitos profissionais da comunicação como que se adaptam ao meio ambiente, passam de um jornal a outro, e pensavam antes assim, e depois passam a pensar o contrário. Enfim, a realidade é essa, agora, claro esse país do livro não existe, esse país…
É utópico?
E há-de concordar também que se é certo que há uma crítica, uma crítica realmente acerada aos meios de comunicação — sobretudo a televisão e os jornais — também aí se diz que há um jornal que decide enfrentar os riscos e enfrenta-os, e sofre as consequências…
E acaba cheio de processos?
Não está aí para equilibrar, de maneira nenhuma. Está aí porque acontece. Também acontece. Mas se olharmos a paisagem, essas são as excepções. A regra não é essa.
Falemos da sua escrita — sente-se que a escrita deste livro lhe deu muito gozo…
Deu, deu. O romance é um romance, é uma fábula, uma sátira e uma tragédia. E digamos que no que tem que ver com a sátira deu-me realmente muito gozo. Gozo. E também, digamos, na ligeireza da construção, nas acelerações e nos retardamentos — há momentos em que me entrego a uma certa lentidão, que é propositada, depois a uma súbita aceleração, tudo isso me deu muito gozo.
Mudanças de respiração?
Sim, e essa coisa de conduzir o leitor…
É uma manipulação, também.
Pois é, mas enfim, manipular também é trabalhar com as mãos, etimologicamente é esse o sentido da palavra. Depois tem os sentidos segundos, e terceiros e quartos e quintos, e acontece que esses acabam por ganhar mais força que o sentido primordial. Mas sabemos que essa outra manipulação é puro engano, é mentira, é falsidade. Chama-se manipulação porque no fundo a palavra tem uma dose de eufemismo, que faz com que ninguém diga, em lugar de manipulação: engano, mentira. E a palavra que lá devia estar era essa. Engano, mentira, ou falsidade.
A palavra ilusão não dava?
Não, ilusão não. É melhor não a confundirmos mais do que já está.
Quanto a estes seus narradores, esta sua estratégia de escrita — a ausência de pontuação e maiúsculas, embora apareça mais nuns textos que outros — é uma provocação? Como é que chegou a ela?
Cheguei a essa escrita de uma maneira perfeitamente natural, e espontânea. Não é o resultado de me por eu a pensar o que é que hei-de dizer, como é que hei-de dizer alguma coisa que não seja comum.O Levantado do Chão foi publicado em 1980, e foi vivido, de uma certa maneira, em 1976, durante um certo tempo numa região do Alentejo, em Montemor-o-Novo, numa aldeia chamada Lavre, onde estive semanas e semanas. Aí recolhi tudo o que tinha que recolher, a informação — enfim, o que se conta no livro — além do que não é resultado de escolha e, digamos, que é o resultado da operação ficcional que monta factos e os organiza. O livro foi escrito em 1979 — 3 anos depois. Eu tinha o assunto, tinha gravações de pessoas idosas que me haviam contado coisas há uma grande quantidade de anos, que aparecem depois no livro, e o meu problema era este: não saber como havia de contar esta história. E durante 3 anos — é certo, publiquei em 1977 o Manual de Pintura e Caligrafia, e depois o Objecto Quase — mas esse malvado Levantado do Chão andava a moer-me o fígado porque eu não encontrava a forma. E de vez em quando ia ao Lavre e as pessoas perguntavam-me, mas então o livro, quando é que o livro sai? E eu dizia, bem, estou a pensar, estou a preparar. E um dia sento-me a trabalhar, e começo a escrever como qualquer outro livro escrito, com todas as coisas nos seus lugares — a pontuação, diálogos, sinais de pontuação, interrogação, exclamação, reticências, tudo no seu lugar. Durante vinte e três ou vinte e quatro páginas, as coisas correram assim. Agora peço-lhe, como um favor pessoal, que acredite no que lhe vou dizer, e que não pense que isto é a outra invenção minha. Porque não é. Foi assim que as coisas aconteceram. De repente, sem pensar, começo a escrever como a partir daí se tornou o meu processo de narrar. De tal maneira que, quando cheguei ao fim do livro, tive que voltar ao princípio para pôr as primeiras vinte e três ou vinte e quatro páginas de acordo com o que vinha depois. Se me perguntarem como é que isso aconteceu, porque é que isso aconteceu, não tenho uma resposta que possa dizer é esta, eis a resposta. Mas posso talvez pensar que a razão podia ser esta — o que eu estava a escrever foi-me contado por aquelas pessoas, e no fundo, o livro pretendia ser isso. Nada disto era consciente, não há nisso nada da minha cabeça, nem sequer foi mera intuição…
Uma inspiração?
Nada disso. Era como se eu lhes estivesse a contar a eles a história que eles me tinham contado. E como você sabe, quando falamos não usamos sinais de pontuação…
Temos as pausas da respiração…
Temos as pausas, e até, como eu digo nos meus livros, os dois únicos sinais de pontuação, o ponto e a virgula, não são sinais de pontuação, são uma pausa, uma pausa breve e uma pausa longa. No fundo, como também digo muitas vezes, falar é fazer música. Quer dizer, nós entendemo-nos com os sentidos que as palavras têm, e também com a expressão que somos capazes de lhes dar, e que até muitas vezes vai mais além do que a música porque passa pelo gesto, passa pelo olhar, passa por sinais… Então eu creio que se estivesse a escrever um livro passado em Lisboa, provavelmente isso não teria acontecido.
E, neste contexto, entre James Joyce e Marcel Proust — nenhum teve qualquer peso nesta sua estratégia?
Não creio. Não. Fui sempre um mau leitor de Joyce, humildemente o confesso. Fui um bom leitor, e continuo a ser um bom leitor de Proust. Mas acima do Joyce, e acima do Proust, ponho um senhor chamado Franz Kafka, que para mim é o grande escritor do século vinte. Pelo menos é aquele que a mim me convém, e a mim me interessa. Aquele cuja obra — e não estou só a falar dos romances, enfim falo dos diários, falo de correspondência, falo da quantidade enorme de textos que ele deixou inacabados e incompletos e que realmente são uma fonte inesgotável, não direi de inspiração, porque não vou lá buscar temas — mas é inesgotável como leitura. Sinto-me bem com aquele senhor.
Quanto ao seu olhar, subscreveria o verso de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos — «Merda, sou lúcido»?
Acho que sim. Já agora, inverteria a ordem… Não posso. «Sou lúcido, merda» tem um risco — se lhe tiram a virgula, aparece um outro tema. Fiquemos com o verso do Pessoa. «Merda, sou lúcido», porque efectivamente isto está uma merda, e a única coisa que podemos opor a esta merda é a nossa lucidez. Uma lucidez que não resulta de sermos privilegiados, ou umas pessoas extraordinárias, não é isso. É simplesmente vermos um pouco mais além das aparências. Já tenho contado isto várias vezes, quando tinha dezoito ou dezanove anos, e ia à ópera ao São Carlos, sem pagar bilhete, porque um dos porteiros, me deixava ir para as torrinhas…
Para o galinheiro?
E para o galinheiro. Quando a ópera ia começar mesmo, eu entrava e sentava-me lá em cima. E se você esteve no galinheiro, recorda-se da coroa, lá em cima. Vista de cá de baixo, da plateia e dos camarotes, é um esplendor. Mas sabe, porque esteve lá, que a coroa não está acabada, não está terminada, e é oca, e tem teias de aranha, e tinha pó. Eu acho que recebi aí, sem ter muita consciência disso, uma grande lição: que é preciso dar a volta às coisas para ver o que as coisas são. Talvez o meu esforço de lucidez consista simplesmente em tentar dar a volta às coisas. Que o consiga, provavelmente não, não sei. Pelo menos tento. E este livro, o Ensaio sobre a lucidez, é um esforço para dar a volta completa às coisas. Para ver além da aparência das coisas.»
Entrevista de Helena Barbas – Expresso nº. 1640, 2004