“Gazeta do Outro Mundo, escrita em verso e em prosa com as penas do Purgatório pela alma de um marido defunto, aparecendo na encruzilhada de um romance jocozo como coriza má de Apolo à sua viúva esposa tortolilhada*…” – inédito, 1641?
Romance:
Minha mulher lá do mundo
ouvi os loucos lamentos
de uma alma que o Purgatório
deve a seu mesmo desejo
Ouvi-me e acompanhai-me
e já que fostes um tempo
a mulher de meus pecados
entrai a herdar meus tormentos
Ouvi-me que tanto choro
que tem para si o Demo
que morreu o choramingas
e que por sua alma venho
Aqui estou no Purgatório
esperando Bom Sucesso
porque depois de purgado
fica homem como um pêro
Aqui vivo no borralho
como bolo de fermento
e crede que é um regalo
o Purgatório no Inverno
Os Ministros destas penas
tanto que cheguei quiseram
por estar o carvão caro
sentenciar-me ao degelo
Porém já graças a Deus
inteiramente me vejo
até por fora queimado,
com privilégios de Dedo
Aqui entre labaredas
nesta masmorra me estreito
e é muito ter tantos fogos
um lugar que é tão pequeno
Vede lá como estarei
rodeado destes incêndios
se só com fogo no rabo
não há quem esteja quedo
Sabeis vós que coisa é
salamandra, um bicho feio
pois heis-me aqui salamandra
Isabel, sem mais nem menos
Tive votos para Fénix
mas nesta ausência em que peno
me fiquei por solitário
porque fénix era o mesmo
Num mongibelo me abrazo
mas tão cruel, tão horrendo
que eu lhe chamo mongimonstro
chamai-lhe vós mongibelo
Brazas como, cinza engulo
Chamas sorvo, tições bebo,
e somente do que cuspo
Se fazem mecha cá dentro
Pórcia a que comia braza
tinha lindo entendimento
deu em não querer guizado
senão do seu fogareiro
Não sei quem gosta de fogo
mariposas que o quiseram
são pássaros de bom gosto
que andam de noite ao candeio
No tempo em que eu era vivo
uma vez fogo me deram
e o fez por força cupido
chegando-mo a pôr nos peitos
Dele estou hoje até aos olhos
e em tais alturas me vejo
que o lume dos olhos cuido
que me quer fugir de medo
Tanto conservo a quentura
que para este entrudo temo
que me empreste algum demónio
por forno, a algum pasteleiro
Dizei vós lá à Abadessa
se me quer para o Mosteiro
por lampião de dormitório
que eu sempre estarei aceso.
Novas deste purgatório
são, mulher, ficar ardendo
crede-me que para assado
não me falta mais que o espeto
Sabei que neste lugar
Demónios os pensamentos
quanto a desejos tentaram
a memórias atormento
Aqui sou alma, sou chama
porque neste meu incêndio
chego a braza de mim próprio
à sardinha de mim mesmo
Aqui me têm por danado
porque como a vós vos deixo
suspeito que ao Purgatório
pode vir gente do Inferno
Dizeis-me que por viúva
queireis casar, tem seu geito
que hoje qualquer viúva leva
o seu marido em capelo
Vós o lançareis na cova
como a mim e eu lhe prometo
que antes de estar no jazigo
o ponhais vós de carneiro
Lá vos casais, que vos preste
faça-vos mui bom proveito
que eu por fugir-vos co’o corpo
folgo de ser alma há tempos
Agora somente o que,
como sufrágio, vos peço
é um leque para a calma
e para o suor, um lenço.
Vós viveis junto de um rio
que me remedieis, espero
de um sentimento galhardo
com um carinho aguadeiro
Depois de purgado como
sou um espírito esqueleto
pois tendes o céu nos olhos
virei a ser novo argueiro
Isto digo e como uma alma
num instante desapareço
e para o pé de uma cruz
vou penar num azulejo.
Romance Jocoso inédito – Epístola em redondilha maior e rima branca, manuscrito de meados do século XVII (1641?), assinado/atribuído a um Frei Lucas? – COD. 9241 da Biblioteca Nacional de Lisboa.
*tortolilhada – pode ser “zarolha” ou “bêbeda”
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