1. Gore Vidal nasce em Nova Iorque (West Point) em 1925. Apenas com 19 anos publica um primeiro romance Williwaw onde narra as suas experiências de guerra e desenvolve o tema da masculinidade como fundamento da aspiração imperial americana. Por este motivo vê-se incluído no grupo dos herdeiros de Hemingway – como James Jones, Nelson Algren ou Norman Mailer.
As ressonâncias do mestre mantêm-se no seu estilo sucinto e directo, na frase irónica e na agressividade dos diálogos, para além da presença da nostalgia por um mundo onde o esforço individual é ainda possível. No entanto, Vidal distancia-se dos seus contemporâneos pela viragem em direcção aos mistérios da personalidade, e preocupação com as questões históricas do passado.
A sua carreira desenvolve-se com sucessivos «best-sellers» – alguns já traduzidos para português – donde se destacam Messiah (1955), Julian(1964), Washington D.C. (1967), Myra Breckinridge (1968), Burr (1973), Creation (1981), Lincoln (1984) e Empire (1987). Mas Vidal, que nos anos 50 usou igualmente o pseudónimo de Edgar Box, não se limita ao romance.
O seu percurso representa o esforço máximo de um americano para se estabelecer como «homme-de-lettres» segundo o modelo europeu, igualmente à vontade no ensaio, peças de teatro (The Best Man) e guiões televisivos – vê representado Visit to a Small Planet, e colabora com Tenesse Williams em Subitamente no Verão passado (1959). Nos textos teóricos define a sua posição face à literatura, e associa-se a Saul Bellow no exaltar de uma escrita para o público em geral. Insurge-se contra os «modernistas» – como John Barth e Donald Barthelme – pois considera que o excesso de experiências técnicas acaba por reduzir o romance a um mero exercício académico apenas entendido por elites. O papel do escritor é eminentemente social e pode mesmo proporcionar-lhe o acesso ao poder político, não alcançável por outras vias. Primeiro, através do acto de escrita, seja pelo recurso a estudos biográficos, seja pela sua horaciana capacidade de imortalização; depois, pelo uso da celebridade - a fama autoral torna o homem suficientemente importante para justificar a ambição a um cargo público: Vidal candidata-se a membro do Congresso em 1960 e ao Senado em 1982, mas tal como Mailer – que pretendia ser eleito Mayor de Nova Iorque em 1969 – não chega a obter qualquer das posições.
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Gore Vidal, visionário
À semelhança dos seus heróis solitários, procurou, sem êxito, integrar-se no sistema com o objectivo de o modificar. A preocupação com a história, o segundo grande tema patente nos seus romances, não é pois abstracta nem apenas teórica, levando a que os textos sejam também lidos como uma alternativa à intervenção política, ou um manifesto que veicula a ideologia do seu autor.
O elo de ligação que assim se estabelece entre os diversos escritos, vem a ser reforçado pelas recorrências, não apenas de ideias, mas ainda de personagens: os heróis de um romance são figurantes de outro, vislumbram-se em festas, cruzam-se nos chás, ou relacionaram-se já de modo mais evidente: em Império, Caroline é a neta de Charles Schemerhorn Schuyler, o narrador de Burr; John Hay fora secretário do presidente em Lincoln. Esta intertextualidade transforma os romances em peças de um mosaico mais vasto, que será a obra do autor, e revela a sua pretensão a transformar em epopeia a própria história americana.
2. Partilhando das opiniões de Mailer, Jones e Kerouac, Gore Vidal considera que, em função dos condicionalismos históricos desencadeados pelas formas do pensamento puritano, é no campo da sexualidade que a sociedade americana mais evidentemente exerce a sua repressão sobre o indivíduo. A sua recente abordagem em termos literários é não só um acto revolucionário, como serve de metáfora à luta pela liberdade de expressão. O tema eclode nos romances como fonte de renovação tanto psíquica como social, uma nova verdade à qual todas as personagens, qualquer que seja o seu estatuto, se encontram sujeitas. Deste modo, a ideia de masculinidade, presente nos escritores do período, revela-se como directamente ligada a questões políticas sociais.
Em Gore Vidal a masculinidade em si é entendida como o preconceito em que se baseia o espírito do imperialismo, no caso, americano. Busca então alargar o seu sentido a um questionar da sexualidade enquanto manifestação dos mistérios do humano, ligando-o ao tema da vontade e da acção do indivíduo na história.
O modelo por excelência do teste à masculinidade é a caça, a luta contra a natureza – seja vegetal, animal ou humana (que por este factor partilha do conceito de civilização). A caça é agora substituída por qualquer conflito entre duas situações ou dois adversários, independentemente da definição sexual dos protagonistas. O herói de Myra Breckinridge é bissexual, como Blair de Império. No entanto, neste último romance a masculinidade vem a ser desenvolvida de um modo mais abstracto e que ultrapassa definitivamente o seu sentido primeiro, já que a heroína, Caroline, pode ser considerada como uma das suas principais representantes enquanto manifestação do desabrochar da personalidade individual.
A masculinidade torna-se ainda paradoxal na medida em que vai ser expressa, simultaneamente, pelo construir e minar do carácter do herói, numa desmi(s)tificação que recorda as práticas do período helenístico (época em que decorrem Julian e Creation). A biografia de um homem dinâmico e atraente é contada por um narrador fraco, abúlico, um seu admirador que prova que o homem normal, o espectador da história, acaba sempre por escapar aos perigos que destroem o seu herói.
Em Império, este papel é sucessivamente desempenhado por Blair, relativamente a Hearst, Hay relativamente a Lincoln, mas concentra-se na figura do historiador (de facto) Henry Adams, aqui uma personagem mais estática que enérgica, que evita os cansaços do mundo para melhor viver através das percepções e da sensibilidade, necessárias para o acto de narração. Assim, as personagens dividem-se em dois grupos, aqueles que pretendem fazer história, e as outras, que entendem os seus meandros e a procuram explicar.
3. Impossibilitado de fazer história na arena política, Gore Vidal exercita a sua capacidade – a que o diferencia dos seus pares – de reconstrutor do passado. Fundamenta-se num moderno conceito de História, em que esta já perdeu as suas pretensões à verdade, à ciência e à imparcialidade.
A sua história – como a de Paul Veyne – é uma arte de tratar os restos, arte de memória e encenação. É nesta perspectiva que poderão ser lidos os seus textos do período auge da «non-fiction» (representado por A Sangue Frio de Truman Capote) – especialmente o secundário Two sisters: a Memoir in a form of a Novel (1970) – onde sucessivamente se cruzam as fronteiras entre ficção e memória, romance e teatro, experiência e expressão. Segue a linha da Nova História francesa, que acusa o historiador de falsidade, de construir um discurso sobre o real a partir de restos documentais.
Ao defender-se das críticas ao seu megalómano Lincoln (1984), Gore Vidal insiste que a veracidade da sua narrativa é inatacável, e denuncia explicitamente o «fabrico» da história pelos académicos: «…são contratados pela universidade para criar mitos, enquanto o romancista diz a verdade…». Já Norman Mailer considerara como função do romancista, corrigir os padrões sobredeterminados do historiador e as suas falsas desculpas para justificar a tirania.
Para Vidal, os valores e paixões verdadeiros residem nos momentos áureos da formação da América como país, e as suas melhores personagens recorrem ao passado com o objectivo de restaurar o presente e criar um padrão para o futuro. A história preenche assim uma necessidade de fundamento em relação ao real, e o recurso aos tempos antigos corresponderá a um esforço para vencer os conflitos da dualidade entre o desespero face ao futuro e a impossibilidade de regresso ao passado.
Os acontecimentos imprevisíveis transformam-se em elementos de uma estrutura lógica, são partes de um plano racionalmente dominável. Os factos históricos são metamorfoseados e promovidos a factos artísticos, e o autor substitui-se ao historiador re-escrevendo a história do que poderia, ou deveria, ter sido: o romance regressa à epopeia.
Neste tipo de romance, tanto o narrador quanto o leitor são omniscientes, já conhecem o final da (H)história, e neste sentido as possibilidades de desenvolvimento da intriga são francamente estreitas. Vidal ultrapassa o inconveniente escolhendo como protagonistas as personagens secundárias, acentuando os aspectos da personalidade individual obscurecidos pelos ritmos colectivos.
Exibidas num determinado momento de fala ou acção escamoteado pelos compêndios, os anti-heróis da história são dramatizados, adquirem «vida». As personagens são focadas nos seus ambientes familiares, em contextos de conflito particular - competição entre irmãos, entre pai e filho, marido e mulher. Procura-se recriar a sua voz individual e transmitir o esforço para se imporem contra os padrões da história.
A situação revela-se como trágica, pois o narrador joga com o conhecimento de acontecimentos posteriores ao que relata, e que os seus protagonistas ignoram. Tal como o leitor, sabe que o percurso das personagens está destinado ao insucesso: a narração centra-se no período imediatamente anterior à sua queda pública, a deixarem de ser relevantes para a história, já que esta só se ocupa dos vencedores e ignora os vencidos.
Tanto Julião o Apóstata (Julian) quanto Aaron Burr (Burr), são vítimas de conspirações urdidas pelas forças vencedoras, que tem por objectivo eliminar aquelas personagens e a sua importância. E tanto os cristãos que assassinaram o Imperador, quanto a Junta da Virgínia que pretendeu ver-se livre de Aaron Burr, ou o golpe jornalístico de Roosevelt contra Hearst (Império), representam os interesses de homens egoístas que pretendem encarnar a necessidade histórica: são os defensores de uma política totalitarista que aspira a destruir os pensadores originais.
Estes últimos são os naturalmente eleitos que, como tal, mais hipóteses teriam de se tornarem bons governantes. A queda dos heróis de Vidal é dada pela sua derrota no campo político, ou pela sua morte, e os protagonistas transformam-se em personagens secundárias, simples pormenores, notas marginais à História.
Celebra-se, assim, uma aristocracia da inteligência e da sensibilidade sucessivamente ultrapassada e vencida pelos prostitutos da fama, os políticos e homens de estado.
No entanto, não é a democracia, a miríade de insectos humanos anónimos que interessam Vidal, mas sim o «jet-set» e as modernas dinastias revelando uma preocupação com o efeito determinante do ambiente familiar, como em Washington, D.C. – que constroem e destroem impérios financeiros, e o maior de todos eles, o da comunicação social, usando todos os meios para comprar e manipular o poder político.
A história torna-se, então, o resultado do esforço imoral, de um plano conscientemente urdido por homens menores para tomar o poder, enquanto sonoramente afirmam motivos morais.
4. De um modo geral, Império não exige a leitura prévia das outras obras de Vidal, mas implica um conhecimento mínimo sobre algumas das personagens da história americana, facilmente superável pelo recurso a breves notas de rodapé. Verifica-se, no entanto, que as tradutoras se limitaram a referir o nome de canções e espaços geográficos que por vezes transformam as notas em quase anedota (p. 56, por exemplo). O desequilíbrio da tradução é marcado por excessos informativos para alguns trocadilhos, e por esporádicas faltas de cuidado que corrompem ou tornam ilegíveis frases inteiras, como: «Theodore Roosevelt, em especial, dedicara-se-lhe, e as suas mentes musculadas, na feliz expressão de Hay, levantavam idiotas juntas.» (p.113) ou «…sofro agonias. – Mas Adams não parecia nada agoniado.» (p.136).
Helena Barbas [O Independente, 29 de Outubro de 1989, III p.46 – sobre Império de Gore Vidal, trad. Paula Vitória e Manuela Madureira, Presença, Lisboa, 1989]