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Anna Akhmátova – o nascer dos poemas

«Só o Sangue Cheira a Sangue» é uma pequena antologia dos poemas desta grande senhora que agora seria Ucraniana. Apresenta-nos os versos de Anna Andreevna Gorenko, aliás Anna Akhmátova (1889-1966). Nem o prefácio – breve e biograficamente sumário – pode dar a dimensão da vida desta mulher que atravessou as duas guerras mundiais, da relação que manteve com a arte da escrita e do que de ambas sacrificou em nome de coisas comezinhas e circunstanciais: a perseguição política, a morte de familiares e amigos, a impotência tenebrosa perante o degredo e a morte de um filho. Nasceu na Ucrânia, a 11 de Junho. Começou por estudar Direito e depois mudou-se para a literatura. Foi amiga de Modigliani (que conheceu em Paris em 1910-12), Ossip Mandelstam, Mikhail Bulgakov, Boris Pasternak – a estes são dedicados alguns dos poemas agora traduzidos – e Isaiah Berlin.

Em 1910 liga-se ao grupo «acmeísta» que, por intermédio da revista «Apollo» (1909-1917), e de par com os «Futuristas», rejeitava as afectações vagas e esotéricas da poética simbolista, defendendo o recurso à «brevidade» e perfeição formal. À cabeça estava Nikolai Gumiliov, com quem Anna casa naquela data. Dois anos depois nasce-lhes o filho, Lev, e Anna publica o seu primeiro livro, Vecher («A Tarde»), sob pseudónimo – um nome que havia roubado à bisavó tártara, para não envergonhar o pai. Dois anos mais tarde adquire alguma notoriedade com Chetki («Rosário»). Apanha uma tuberculose em 1917. Um ano depois divorcia-se de Nikolai – que será executado em 1921, acusado de participar no caso Tagantsev. E começa aqui o chamado «período de silêncio» de Akhmátova, quase trinta anos em que se inscrevem dois grandes picos de «desgraça» política e, logo, literária.

Entre 1935-1940 escreve o seu mais famoso ciclo lírico sobre as «purgas» estalinistas:
«Requiem»
Fiquei a saber como murcham os rostos,
como das pálpebras o medo assoma,
como o sofrimento escreve nas faces
rijas páginas de escrita cuneiforme,
como se tornam súbito prateadas
as madeixas ruças, madeixas pretas,
murcha o sorriso nos lábios subjugados
e no risinho seco tremem medos.
E estou a rezar não só por mim, mas
por todas que estiveram ali comigo
no calor de Julho e no frio cruel
junto ao muro vermelho e cego.

Assume-se, pois, como representante de um colectivo em sofrimento – o que confirma na epígrafe ao poema: «Estava com o meu povo, no lugar/ em que infelizmente o meu povo estava» (pág. 75). Será por ter um peso maior do que o seu corpo frágil que se torna perigosa, será porque as suas palavras dizem alto e bem o que os outros mal conseguem pensar que se torna necessário silenciá-la. Recolhem e destroem-lhe os livros que vai tentando editar. Mas Anna sabe os seus próprios versos de cor – di-los baixinho aos amigos nos cafés, aos soldados feridos nos hospitais.

É chamada em Setembro de 1941 para fazer um apelo às mulheres da Leninegrado cercada pelos alemães:
Era no tempo em que só um morto,
contente por estar em paz sorria.
Como peso morto, Leninegrado
dependurava-se das enxovias.
E quando legiões de condenados
já marchavam loucos e aflitos
e as locomotivas já soltavam
os apitos do breve canto do adeus,
sobre nós gelavam estrelas de morte
e a Rússia inocente se contorcia
sob as cardas de ensanguentadas botas,
sob as rodas negras dos carros sombrios» (pág. 83)

Em 1942 sai o poema «Coragem» na primeira página do «Pravda».
Mais odiada do que amada, recorrem a ela quando politicamente oportuno, tentam calá-la quando o «erotismo, misticismo e indiferença política» desta «meia-freira, meia-prostituta», como lhe chamaram Estaline e Andrei Jdánov, ou «burguesa aristocrata», como a apelidou o Comité Central, deixam de ser «úteis» ou convenientes.Um silenciamento que se prolonga e vai contaminar, com sinal contrário, as suas «Obras Completas» (Moscovo, 1986). Em 1937, o filho Lev Gumiliov, também escritor, havia sido preso; em 1949 é deportado para a Sibéria. Em 1950 aparecem alguns poemas de encómio a Estaline na revista «Ogoniok»: Anna tenta aplacar o ditador, a fim de conseguir que Lev seja libertado – em vão. E os poemas em glória de Estaline são omitidos das edições soviéticas da poesia de Anna, à revelia da sua poética:
Nem imaginam de que lixo, sem vergonha,
crescem os poemas, como na valeta
urtigas, badanas, peçonha de ervas… (pág. 59).

«Só o Sangue Cheira a Sangue», Assírio & Alvim, 2000, edição bilingue, trad., introd. e notas de Nina Guerra e Filipe Guerra, 112 págs, 2000.
Texto de Helena Barbas publicado no Expresso-Cartaz – 3 de Março de 2001
Retrato de Anna Akhmátova por Yuri Annenkov, pintado na Rua Kirochnaya, S. Petersburgo, em 1921

Links: https://en.wikipedia.org/wiki/Anna_Akhmatova e http://anna.ahmatova.com

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