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António Manuel Venda – assombramentos abençoados

António Manuel Venda nasceu em Monchique, no Sul de Portugal, em 1968. Publicou vários livros de ficção, alguns deles premiados. Já houve quem assinalasse que «nos habituámos a descobrir o seu mundo como se fôssemos exploradores em busca da última mina perdida da escrita». Daqui concordamos.

Na circunstância do re-lançamento de «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» (1997, 2019), tive oportunidade de revisitar algumas críticas que havia feito a livros deste autor, e recordar os outros – tenho sido uma leitora fiel. Lembro-me que me zanguei com «O Velho que esperava por D. Sebastião» e vejo agora que o motivo – sem justeza – era que tivesse abandonado o seu estilo e registo tão próprios. A escrita de A. M. V. continuou a caracterizar-se por um sistemático delírio narrativo. Histórias absurdas sucedem-se a um ritmo alucinante, cheias de humor e ironia, contadas numa linguagem rigorosa, que enfeitiçam o leitor.

Mantém-se o jogo com os géneros literários – sabotando as várias determinações do “pacto narrativo” : oferece romance e são contos, capítulos e secções, vários episódios. Fragmentos, de onde o narrador nos fala das aventuras e desventuras vividas pelas várias personagens. Uma potencialidade do insólito só oferecida pela escrita. Este jogo com as expectativas, e a sua frustração a suscitar um sorriso, é a grande arma que encontramos nos primórdios do romance: recordo agora « The Life and Opinions of Tristram Shandy, Gentleman» (1759) de Laurence Sterne, «Jacques Le Fataliste et son maître» (1765-80) de Denis Diderot.

Estreou-se, e assombrou-nos, com o premiado «Quando o Presidente da República Visitou Monchique por Mera Curiosidade» (1996, 1997, 2016), uma colectânea de contos insólitos, onde mistura regionalismo com surrealismo, o realismo com o fantástico, a uma cadência vertiginosa e numa linguagem primorosamente trabalhada. Em 1997, sobre «Os Abençoados Fiéis do Senhor S. Romão» disse: «já é possível falar de um universo ficcional particular com características próprias, de um tipo de escrita pessoal, de um «estilo» (pese embora a palavra estar teoricamente fora de moda), regidos por uma invulgar maturidade, um profundo conhecimento e uma brilhante exploração da língua portuguesa».

A.M.V. joga com a grande necessidade humana – do leitor – de que as “coisas” façam sentido. O acto de leitura cria uma união lógica entre os fragmentos – que é proporcionada pela linguagem em si. Evoca uma «never ending story». Também a estratégia próxima dos contos, de «Short Cuts», ou «The Cathedral», de Raymond Carver, que aspiram à encenação, em filme (dir. Robert Altman, 1993) ou teatro. Ali, os episódios desgarrados unificam-se no cenário, no palco. Em «Os Abençoados Fiéis» também se unem pelo espaço – mas as cenas passam-se numa mesma aldeia no início do século. É também por intermédio da vizinhança, e dos encontros por ela suscitados, que são criadas as ligações das histórias entre si. Não se descobre, pois, uma intriga unificadora – nem mesmo através da suposta devoção ao Santo da terra que, neste caso, dá o título ao livro.

A partir daqui evoluem os encadeamentos – entrelaçam-se momentos e episódios, e depois dos vários livros entre si, reescrevendo-os e reinscrevendo-os num novo contexto. Atribuindo velhos sonhos a novos sonhadores, instituiem-se como auto-citação. A união entre os diversos elementos parcelares alicerça-se também pelos tempos, e mais que tudo ainda pelo espaço – Monchique: um Algarve que se esquece que ainda pode existir no meio da invasão de estrangeiros que o vem ocupando. O autor convencionou pois interligá-los com um nome, Monchique –  lugar da sua infância. Mas a recorrência dos mesmos lugares, dos mesmos sítios, exibe-se como uma mesma geografia muito imaginária. Nunca nos é oferecida uma descrição específica que permita restringir, exclusivamente, qualquer das suas narrativas a coordenadas geográficas – nem mesmo quando das «experiências» de ficção científica. A.M.V. não faz descrições: os cenários são referidos pelas personagens, uma casa, uma árvore, um rio.

Neste universo pseudo-cosmopolita, em Monchique, há poucas distracções: «entre o bordel e rádio – às vezes até com apoio da televisão cujas reportagens transformam em principais os conflitos secundários – aqui a embrenharem-se e interferirem com a história primeira, dá-se outra atenção aos pormenores da vida. Espia-se, coscuvilha-se, provoca-se, deduzem-se umas coisas e inventam-se outras» («Até acabar com o diabo Diabo» p.25). A linguagem continua dominada com a mesma maestria, a mesma oportunidade, a mistura de matizes e intenções: «Em meia hora se está na praça, isto no burro de Libório Arlindo, porque através da escrita é apenas uma questão de linhas. Aqui está o sapateiro a apregoar os seus artigos bem fresquinhos, ele chegou agora mesmo.» («Os Abençoados Fiéis» p.83).

Os regionalismos das figuras e temas – que associei a Júlio Dinis, José do Riço Direitinho, João Aguiar – sabotam as comparações pelos seus anseios peculiares: as personagens humanas aspiram (algumas conseguem) ter as faculdades dos animais – voar, por exemplo; e as do reino animal exibem características humanóides – sabem falar, assobiar. Semelhantes entre si nos comportamentos e imaginário, desviam-se em direcção a um real mais supersticioso do que fantástico. Também mais verosímil,  o insólito é suscitado pela crueldade nascida da ignorância – chegando a um trágico muito próprio. Assim, as personagens – caracterizadas pelo nome-alcunha, pela profissão, pela linguagem, aqui e à distância ficam tão mais próximas de Gil Vicente. Usam de uma linguagem e de um mundo atávicos, essencialmente portugueses (o que quer que isso ainda hoje queira dizer neste agora).

Helena Barbas, 4 de Julho de 2019

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