Enis Batur é hoje considerado o maior poeta turco vivo. Nascido em Eskisehir, na Anatólia a 28 de Junho de 1952, estudou em Istambul e Ancara, licenciando-se em 1974 em Paris, onde fez longas estadias na Sorbonne. Os seus primeiros escritos datam de 1970, publicados em revistas de cinema e música. A partir de 1978 funda numerosas revistas de arte e literatura, e torna-se director editorial de empresas de monta. Mais por aqui. [Traduções de Helena Barbas]
…
…
«Phtonos (O Divã cinzento)» *
«Diz-se que na Grécia antiga alguns deuses não tinham corpo.
O que os mantinha não era uma figura, mas um som, um sinal.»
Puxou o seu cabelo de prata para trás das orelhas,
fazendo uma pausa entre as frases:
«o que sempre me faz recordar o Requiem de Mozart:
se uma mão ajudar, a morte e a vida podem sobreviver
no mesmo vaso de plantas. Se uma alimentar a outra,
qual é esta, pergunto-me? Algumas perguntas a que não podemos responder
infiltram-se pelos anos, fazem poça na nossa vida.»
Distracção. Invocando uma manhã chuvosa de Salzburgo, talvez
a memória lhe esteja sobrecarregada por imagens do hospital
para onde fora levado, a seguir à noite em que começou
o último andamento do seu concerto para violino.
«Por detrás do coro esconde-se o próprio medo, solitário,
inultrapassável: escolher para que lado se virar num cruzamento
parece-me ser a mais glacial das decisões
– sorri com pesar por um momento – talvez seja por isso
que nunca consegui passar o portal que alcancei».
Semente dura, solo fértil – se regados separadamente,
também se alimentariam um ao outro: raízes misturam-se, num enredamento impossível,
tece-se um emaranhado pela sobrevivência lentamente partilhada.
Mas se é mesmo verdade que alguns deuses vivem sem corpo,
Então o som phi faz assentar uma mancha escura na sala:
O vaso racha-se, o solo seca, tantas mortes
podem elevar o seu pendão na nossa vida enquanto vivemos.
«Quem exactamente» **
Binóculos
Levaram-me perto
Da fonte
e do bando de raparigas.
Cada manhã, frescas, lustrosas de negras, a rir loucamente
Peitos, malares, gargantas, regos dos seios.
Tempo de sachar; põem brilhantes novos
Brincos. Púrpura, o habituado manjericão doce trepa
Às varandas. «Quem exactamente,
A esconder-se da luz, é este peito-vermelho?»
Resmungou o tareco
rabugento dos vizinhos.
O problema? Ainda não sabemos ou
Sequer reconhecemos aqueles
Olhos que
Passam e
Passam e
Passam através
Do espelho fundo dentro de nós.
«Rito de Outono» **
Um mar de pistachio. Um vento a passo.
A manhã a pisar o seu caminho pela luz.
Destilando, a voz de Teresa Berganza
Envia um agudo definido, incomodado
Pássaro num longo voo. Céu, nuvem;
Nuvem, forma; forma com um segredo
(pressa); e uma coisa para alimentar a pressa,
TEMPO, a manta, o raio.
Tempo; a água encontrando a folha,
o sangue encontrando a veia
e – todos em pausa, esperando – mar de pistachio.
Retardatários, vagabundos,
Pisando de leve o seu caminho pelas minhas galerias íntimas
Escuro; e as curvas (a matança de um milhão de dólares)
Fazendo o seu caminho através de mim.
Uma noite. Só mais uma noite.
Há um comboio negro procurando o seu caminho por mim.
Era melhor que viesse depressa.
«Cerco» **
Quando disse abandonei a minha caneta e peguei na arma
René Char estava certo; tem que se abandonar a caneta
antes de se pegar numa arma, acho:
escrever com uma mão e com a outra vomitar,
esta cisão é insuportável ao nosso ser
eu que andava sempre dividido dizia,
escrever com uma mão e apagar com a outra,
escrever com uma mão e escrever com a outra,
a partir de qualquer ângulo continuava ainda inteiro –
mas estes, é evidente, são tempos dos mais difíceis:
entre tomar uma e deixar a outra
a minha mão hesita: diante de mim uma ponte
que não quero atravessar, dentro de mim
um fogo que não quero manter a arder,
lá fora os chacais, em silêncio, alerta.
«Passaporte» *
A tia Aagoni morreu em 1978, depois disso a vida tornou-se difícil
para o meu tio-avô, ficar só é duro para um velho,
visitá-lo foi a primeira coisa que fiz quando comecei o curso de Direito,
a minha mãe mandou tâmaras e uma camisola – ele vivia num quarto,
está-me sempre na ideia aquela casa na rua Tantã, não exactamente
desarrumada, e no entanto parecendo pertencer à promessa ilimitada
da vida de quem vai à deriva, como se estivesse para sempre pronto a largar
para um lugar distante e há muito atrasado para partir.
Passaporte
162938
REINO DO EGIPTO
Número de Passaporte …………. 36424
Nome do portador ………………… Armenag Shaheniantz
Nacionalidade ………………………. egípcia
Profissão ……………………………….. Chefe de Vendas
Local e data de nascimento …. Bagdade, 1904
Local de residência ………………. Cairo
Altura …………………………………….. 1,71 m.
Cor dos olhos ………………………… castanhos
Cor do cabelo ………………………… preto
Países para os quais este
Passaporte é válido: ……………… Palestina
A validade deste Passaporte
expira em: …………. 4 de Janeiro de 1934
a não ser que seja renovado
Emitido no Cairo
Data: 1.5.1933
Tentei falar com ele, é claro, mas sabem como depois de uma certa idade
as ideias das pessoas ficam todas emaranhadas: o que pensam numa dada altura
enreda-se com um cepo do passado, e numa ordem cuja lógica
só elas entendem, palavras, imagens e um símbolo ou dois saem a cambalear
uns atrás dos outros. Na cabeça dele preocupava-se de alguma maneira com Eastman
e o seu suicídio – tinha mesmo começado a trabalhar para a Kodak em Beirute em 32
quando receberam a notícia, e ele ainda não conseguia entender porque
iria um velho abandonar a vida assim. Depois voltava a repisar
a sua chegada a Istambul em 9 de Dezembro de 1936, era como
um talismã, aquela data, na sua longa migração – não viera para aqui
para se instalar de vez e tal, de facto: a sucessão ao trono de Farouk,
tudo no Médio Oriente estava misturado nesses anos:
o Relatório Peel, execuções, judeus e árabes a rebelarem-se e morrerem
às centenas, mais, segundo parece, alguns britânicos, o presente de Hitler
um mercedes, os gestores da Kodak cheios de indecisões:
ele não pertencia aqui, o meu tio-avô: o passaporte na vossa mão
mostra-o: não era capaz de fazer assentar o seu corpo emigrante:
não em Bagdade onde nascera, nem no Cairo onde tinha aterrado,
nem em Beirute, nem sequer em Istambul onde se congelou até à quietude:
tinha caído na terra como um extraterrestre, e como um extraterrestre juntava as coisas e partia.
Em 1908, Freud publicou um pequeno ensaio, à superfície tão linear como uma torrada sem manteiga, chamado «Criatividade Poética e Sonhar Acordado» no qual, pela primeira vez justapõe de alguma maneira a criança e o poeta na expressão da fantasia: um certo potencial de energia, que o homem comum arruma num canto ou suprime, vem à luz e revela-se quando as crianças brincam, ou um poeta escreve, ou um neurótico fala: quanto às outras pessoas, fica-lhes soterrada em mentiras e bem aferrolhada.
«Como é que acontece», diz Freud, «que o poeta possa alcançar o significado e pôr em palavras aquelas sensações e emoções que o resto de nós, se as encontrássemos, nem sequer poderíamos ter a esperança de as reconhecer, e menos ainda exprimir?» Lá para o fim do ensaio chega perto do alvo: «A técnica que essencialmente incorpora a ars poetica reside em ultrapassar aquela sensação de repulsa em nós a qual, sem dúvida, está relacionada com as barreiras que se levantam entre cada Eu e todos os outros Eus, aqui reside o aspecto essencial do problema.».
Com as primeiras peças, a maior ansiedade que apareceu desenvolveu-se paradoxalmente no maior ímpeto à medida que avançava: de facto não possuía um armazenamento de experiências em que pudesse confiar ao ponto de me ajudar a passar de uma poética com um alto grau de abstracção para uma poética com um alto grau de narração: numa linha que corre de «O Trópico de Escorpião» através de «Fuga» tinha usado tanto técnicas narrativas como estratégias dramáticas. Porém, aqui e ali, os poemas de «O Divã Cinzento» continuavam a levantar alguns problemas de equilíbrio entre os elementos narrativos e dramáticos que me faziam contorcer-me – enquanto o período de fantasia flutuante descrito por Freud naquele ensaio (perfeitamente correcto, na minha opinião) estivesse a ser enriquecido por relacionamentos de revelação (mencionados no dito texto) entre o Eu e o resto dos outros Eus, o processo, por um lado, tornava-se mais e mais complicado; por outro, era exactamente esse mesmo processo que fazia sair o poema.
Se ao menos essa flutuante curva do tempo que rompe com o seu foco no aqui e agora para oscilar para trás e para diante entre um ponto no passado (infância) e um indeterminado mas desejado ponto no futuro, poderia ter sido limitado ao Eu a escrever o poema! Mas a(s) pessoa(s) a inventar os temas ou os poemas exibia(m) uma diferente curva de possibilidades com os seus próprios Eus; e, mais ainda, Eu-Eu nem sempre era o assunto do poema. Porém, qualquer que fosse o ponto em que me colocasse – e numa ou duas circunstâncias além disso – era ainda Eu quem estava a escrever o poema: as minhas fantasias e aquelas com que eu carregava os outros Eus, ou às vezes lhes extraía, tornavam-se passagens do mesmo labirinto no que dizia respeito ao livro como um todo.
Poder-se-ia dizer que «O Divã Cinzento», de uma ponta a outra, em todas as suas variadas sequências, encena uma estrutura romanesca?
Esvaziaram a gaveta de baixo da escrivaninha do quarto e deram
o conteúdo a Vahan Bey: um pacote de cartas embrulhadas em plástico
e presas com um elástico, um livro de contabilidade cheio de – agora –
contas sem sentido, um passaporte, e um ficheiro da Câmara de Comércio.
Eu conheço-a, àquela casa na rua Tantã: mesmo abaixo dos Espanhóis,
mesmo junto ao jardim, uma ruína de dois andares: a fachada confronta
o velho Palácio da Justiça, de um lado o Consulado Italiano –
há profundidades diferentes aqui, para mim trata-se de um estranho e escuro lago:
se descer aquela rua, quando chego a um certo ponto
o raio brilha vindo de um pequeno sino de igreja: não interessa
que eu não tenha uma oração, nem um lugar, nem uma língua para a rezar,
devagar desço com uma tristeza que me é estranha, como podia eu
ter sabido que ele vivia ali, e se soubesse, que diferença
teria feito? – Vahan Bey tinha espalhado os canhotos dos saldos bancários
sobre a mesa, alguns poucos velhos cartazes de cinema lado a lado com um leque
de pinturas ilustrando partes de O Judeu Errante chama
a atenção, o funcionário público reformado discute seriamente
as qualidades dos vinhos de Bozcaada com um amigo, um alfinete d’ama
fixa-lhe o porta-moedas ao casaco, de pelo curto tigrado e focinho largo
o seu gato recusa afastar-se-lhe dos pés. Estico o braço e pego no passaporte.
«A História de Pugachev» *
«Meu bom amigo». O tom dele era sarcástico. «Por mais
que nos esforcemos, decerto não podemos considerar Pushkin
como historiador – apesar de tudo os anos não mudaram o ponto
ou o nó cego do seu desacordo: para um
fazedor e o feito são determinados pelo fluxo do Tempo:
a interpretação dificilmente entra nos anais e arquivos; a História:
a nossa inescapável memória mais alta.
«Cronos!»
diz o outro, enfadando deliberadamente o oponente.
«Não pode andar para trás e para diante nos campos do tempo, estão torcidos
como fios de uma intriga: hora, dia, estação: estes banais eixos
horizontais e verticais que inventa fazem-me sorrir: ou será que a Vida,
meu bom senhor, fica de fora da sua História com a sua lógica própria,
como um problema de palavras cruzadas?
À meia noite, cansadas, as mulheres
retiram-se para um canto afastado da sala e falam em voz baixa
sobre pulseiras e brincos, esperando ao lado de um beco sem saída
analisado sabe-se lá quantas vezes. Yahya Kemal
e o nome de Cavafy são deixados cair como de costume
e os dois homens acham inaceitável, por razões diversas,
as ideias de Pound e Eliot sobre o tempo e a história. Atravessando
«O Terramoto de 1509» o poeta eleva a sua voz –
e embora saibam que os homens nunca se exaltaram
em anos, as mulheres param e aguçam os ouvidos
por um momento, como gatos a um ruído novo, olhos a brilhar
de ansiedade fingida. Depois as querelas clássicas sobre ficção
descobertas antigas e novas provas extraordinárias cruzam-se
no dissecar de Kemal Tahir, Solzhenitsyn,
Georges Duby. Incapaz de suportar a truculência galaroz
nas caras sérias de crianças destes dois não-
convidados títeres, as mulheres sorriem e cacarejam ao fundo da sala.
Pela manhã o velho
actor tem as pálpebras pesadas, prepara um esforço final
para derrubar o idealismo sublimado de Pushkin. Inutilmente:
a paixão incansável do poeta pelo paradoxo impele-o
a pôr-se de pé. Ignorando o adversário desconjuntado no sofá
exerce vigorosamente o seu direito de ir aos extremos
«Que tenha sido um zé-ninguém, até um vagabundo, admito-o,
claro que não sou cego. Mas se toda a gente vivesse
decorosamente, a poesia nunca teria derrubado
as regras primitivas que enganam o nosso tempo. Afinal de contas
porque deveria a discórdia, o amotinamento, os heróicos
absurdos que subvertem o progresso ser menos importantes
que o seu Tratado de Versalhes?
O dia rompe.
Como a querer limpar o espaço das conversas,
O jovem actor levanta-se e põe música
encosta a cabeça contra a vidraça da janela:
duas mulheres apressam-se para apanhar o autocarro, falando
uma para a outra e olhando para o bêbedo deitado
sobre um jornal aberto no chão.
* publicados na revista «Tabacaria», nº. 7, Maio de 1999, Casa Fernando Pessoa, pp. 78-84;
** publicados na antologia «Poesia em Lisboa 1999» Casa Fernado Pessoa / P.E.N. Clube Português, pp. 17-24