Querelas entre artes e ciências a partir de “clássicos”: Cortes de Malcolm Bradbury, e Um Almoço nunca é de Graça, de David Lodge (lidos em 1990).
Uma das grandes preocupações do romance inglês dos anos oitenta tem sido a política económica dos cortes orçamentais tatcherianos (“honrosamente” imitados pelo continente). A par, ou como consequência, vem a aflição pelo destruir das áreas tradicionalmente pouco lucrativas: as ligadas à cultura, aos centros do saber humanístico – as Universidades – com as Faculdades de Letras à cabeça.
Os romancistas encontram aqui um manancial de conflitos a explorar. Mas enquanto Tom Sharpe (Ancestral Vices, 1980, ou A Epopeia de Mr. Skullion, Lisboa, 1990) satirizam a figura do professor, e Anita Brookner (Providence, 1983) ou Barbara Pym (An Academic Question, 1986, póstumo), ironizam sobre as relações individuais nos meios académicos, Lodge e Bradbury vão mais longe, esgravatando na ferida que se abre entre artes e ciências, ferida essa já detectada por Anthony Burguess no seu ciclo de romances sobre o professor Enderby.
De um modo geral, o problema‚ o mesmo, é apresentado em várias versões. Pelas leis do mercado, as universidades “artísticas” não dão lucro e os alunos que delas saem são candidatos ao desemprego; logo, cortam-se-lhes as verbas. Mas os professores têm que sobreviver, e os verdadeiramente ameaçados são os que não pertencem ao quadro, os que não têm lugares vitalícios: os leitores e assistentes. A estes oferece-se-lhes duas alternativas: ou abandonam a universidade, tentando encontrar um outro espaço em que os seus serviços sejam melhor recompensados – como relações públicas num banco, guionistas de televisão; ou mantém-se na universidade em situações precárias decorrentes da instabilidade dos contratos a prazo, com sujeição a todo o tipo de pressões e exigências vindas “de cima”, e degradação contínua das condições de trabalho (aumento do número de alunos, salas deficientes, falta de material, etc.). Mas mesmo os vitalícios podem ser “aconselhados” a reformarem-se antecipadamente – no auge de uma carreira. E tanto estes, como os investigadores jovens mais competentes, acabam por ir para a universidades estrangeiras – aqui, para os Estados Unidos – no momento em que de facto poderiam ser úteis ao seu país e, de algum modo, pagar o investimento feito com a sua educação. A este último caso chamam os americanos “brain-drainage“.
Em Cortes, Malcolm Bradbury relata-nos as aventuras de Henry, um assistente de Inglês e Dramaturgia numa pequena universidade regional, que é convidado para, em tempo mínimo, escrever um guião televisivo.
Na sua primeira entrevista com Lord Mellow, o director da cadeia de televisão Eldorado, este mostra-lhe a vista da sua janela do 40º andar: «Apontou para umas casas vitorianas pequenas e decadentes, com pináculos e cúpulas que se erguiam descoloridamente na grande sombra projectada pela grande torre de vidro. A merda dos pássaros fazia crista nos telhados de chumbo, a erva crescia viçosamente nas caleiras, clarabóias quebradas olhavam fixamente para eles. / – Aquilo é a universidade local – disse Lord Mellow./ – Quis esta torre de propósito ao lado daquilo. Lembra-me, está a ver, sempre que olho para baixo, que nós, na Eldorado, também temos as nossas funções e as nossas responsabilidades educativas. De facto fomos nós que instigámos os serviços daqueles parceiros lá de baixo a fazerem um programa educativo diário à tarde.» (p.64). Henry hesita, mas a simples menção do convite ao seu superior leva ao precipitar do seu despedimento, deixando-o sem escolha. Aceita, pois, escrever a série para televisão: Graves Prejuízos.
Mas não só o título não lhe pertence, como o próprio enredo, já condicionado pelas personalidades dos actores principais, é‚ sucessiva e arbitrariamente modificado pelos “jovens cheios de talento” que intervém de algum modo na concretização do projecto.
Apesar dos momentos verdadeiramente hilariantes decorrentes dos equívocos que naturalmente ressaltam de uma situação deste tipo, Malcolm Bradbury não consegue, para o seu herói, a dimensão absurda que atinge o professor de Burguess, na mesma situação em Enderby’s Dark Lady – Henry é uma personagem frouxa e acomodatícia. Bradbury cria apenas uma fábula, deixando ao leitor o trabalho de tirar a “moral” implícita, descobrir o drama por detrás da farsa. Talvez por isso a sua ironia, que funcionou de modo brilhante no campo teórico em Mensonge [título completo A Minha Estranha Busca de Mensonge: Herói Escondido do Estruturalismo (1989)] surja como mais superficial.
No romance Um Almoço nunca é de Graça, o tema aparece aprofundado de outro modo. Embora lateralmente, Lodge também refere a televisão, mas acusa-a de transmitir apenas sexo e futebol. Pela ausência, valoriza o trabalho “inútil” das gentes da cultura, que deveriam ser os primeiros responsáveis pela qualidade do divertimento dos homens de ciência e indústria.
Todavia, a questão principal é, ainda, a distância entre as duas formas do saber, e o esforço para a anular, através de um projecto de intercâmbio e aproximação: O Sistema Sombra do Ano da Indústria. Usa-se o Projecto como motivo para o encontro entre as duas personagens principais, Robyn Penrose e Victor Wilcox. Ela é uma assistente de Literatura Inglesa especializada em Romance Vitoriano e Estudos Femininos, de esquerda; durante um Período, uma vez por semana, deverá acompanhar Wilcox um engenheiro-mecânico, burguês e conservador, no seu trabalho, tornando-se a sua “sombra”.
Esta reunião é pretexto para o confronto entre duas formas de pensar, dois espaços de trabalho, dois tipos de relacionamento profissional totalmente antagónicos que, através de um romance amoroso, acabam por revelar possibilidades de entendimento e apoio mútuo. No entanto, essa compreensão – resultante do “Poder do Amor” – funciona apenas a nível individual, já que as instituições se vêem subordinadas a estruturas mais vastas, condicionadas pelas leis do capitalismo. E Robyn revela-nos o impasse: «Se se tentar transformar as universidades em instituições comerciais, destrói-se tudo o que elas têm de valioso. Mais vale fazer o contrário. Fazer a indústria à imagem das universidades. Transformar as fábricas em instituições colegiais. / – Ah! Não duraríamos cinco minutos no mercado – disse Vic.» (p.260). As distancias mantém-se, mas descobre-se a especificidade e utilidade de cada um dos campos, e as diferentes regras a que têm que obedecer.
David Lodge e Malcolm Bradbury partilham laços literários e pessoais – são da mesma idade e têm os mesmos estudos. Nos anos 50 dividiram tarefas no departamento de Inglês da Universidade de Birmingham, depois fizeram conferências em conjunto, e são considerados como os dois grandes nomes do romance académico – tendo-se chegado a aventar a hipótese de serem pseudónimos para uma mesma pessoa. Mas a diferença das escritas prova o contrário. O romance de Lodge vai mais fundo que a fábula de Bradbury pelo modo como aborda as questões, e por uma superior qualidade literária. Vai, ainda, mais longe que os seus antecessores pelo explorar de possibilidades de solução para um conflito secular, que insinua como insolúvel, para já.
Dois livros a não perder – e que apetece recomendar a todos os responsáveis pelo nossos sistemas económico e educativo.
Helena Barbas
Cortes de Malcolm Bradbury, trad. de Carlos Leite, Dom Quixote, Lisboa, 1990, 164 pp.
Um Almoço Nunca é de Graça de David Lodge, trad. de Maria Carlota Pracana, Gradiva, Lisboa, 1990, 289 pp. (2ª. edição 2002)
Fábrica ou Academia – artigo publicado no Jornal O Independente, 31 de Agosto de 1990, III-pp.23