Para inaugurar confinamentos, um livro de um pintor – Noa-Noa de Paul Gauguin – sobre as “damas negras” – o relato poético da sua revelação de novos cânones da beleza feminina.
Na tradição ocidental – principalmente por culpa de Petrarca – estabeleceu-se como cânone da beleza feminina a figura da mulher loira de olhos claros. Camões é dos primeiros a subvertê-lo, com a «pretidão de amor» da sua Bárbara, uma escrava embora. Shakespeare, independentemente de polémicas quanto a destinatários dos seus sonetos, canta a beleza da «dark Lady». Tomás António Gonzaga lamenta-se por ter que louvar em searas os negros cabelos da sua Marília. Tudo culminará na «négresse» venal de Baudelaire, sempre por oposição ao modelo neo-platónico e petrarquista. Apesar de algumas ligeiras modificações no cânone, mesmo hoje não há «starlette» nem «diva» que se não aloire em Marilyn ou Barbie.
Em termos pictóricos, encontram-se representações de algumas exóticas figuras femininas de pele e cabelos escuros pelos romantismos e impressionismos, mas a perspectiva é sempre a da superioridade civilizacional do homem branco. Até aparecerem as «Vahiné» de Gauguin – as mulheres da Polinésia, de cabelos negros e lisos, pele escura, pés e mãos fortes, estruturas sem fragilidades: «Nos povos que vivem nus, tal como com os animais, a diferença entre os sexos é bem menos evidente que nos nossos climas. Nós acentuamos a fraqueza da mulher poupando-a a esforços, ou seja, às ocasiões de evolução, e moldamos a mulher segundo um padrão ideal de graciosidade» (pág. 48).
Para além das cartas que trocou com poetas e pintores seus contemporâneos – entre eles Van Gogh, Huysmans, Mallarmé, Verhaeren, Redon – o pintor Paul Gauguin (1848-1903) escreveu também as suas impressões de viagem. Em Noa-Noa relata a primeira e memorável estadia no Taiti, publicada com desenhos em 1897.
Parte já tarde na vida – depois de um passado burguês e confortável, uma mulher e cinco filhos. Havia descoberto a pintura pela mão de Camile Pissarro, e associa-se aos impressionistas para a sua primeira exposição, aos 28 anos. Visita a Martinica em 1888, onde se liga ao grupo de Pont-Aven. No regresso, exibe um estilo diferente que ele próprio define como «sintetismo». Para lá da influência da gravura japonesa – recém-descoberta pelos europeus, inspiradora do seu amigo Van Gogh, por exemplo – e dos vitrais medievos, assume a proposta da arte indígena: a ignorância da perspectiva, as cores fortes, as formas espessas, a planeidade.
Quando segue para os Trópicos, em 1891, já leva consigo o estilo. Na Polinésia irá descobrir os temas poderosos que o encaminham para as pinturas em maior escala, o simplificar das composições. Mudanças exigidas por novos horizontes, pelo espaço vibrando de luz e cor: «A paisagem, com as suas cores francas, perturbava-me, cegava-me.tão simples de pintar tal como se via, de meter sobre a tela, sem tantos cálculos, um vermelho, um azul! por que seria que hesitava em deixar correr na minha tela todo aquele ouro e toda aquela felicidade do sol? Velhas rotinas da Europa, timidez de expressão de raças degeneradas!…» (pág. 39).
Gauguin vai doente, arruinado e cheio de dívidas – a melhor das predisposições para se entrar num Paraíso de bons selvagens: «Selvagens! Aquela palavra vinha-me inevitavelmente aos lábios quando pensava naqueles seres pretos com dentes de canibais. Começava no entanto a compreender a sua verdadeira graça. Tal como eles para mim, eu era um objecto de observação, o desconhecido, aquele que não conhece nem a língua nem os hábitos, nem sequer a indústria mais primitiva, a mais natural da vida. Tal como eles para mim, eu era o ‘selvagem’. E se calhar, quem estava errado era eu» (pág. 39).
Em Noa-Noa, terminado há mais de um século, no ano de uma ida à Europa, Gauguin regista a descoberta de uma cultura outra, com hábitos e mitos próprios e dignos. Confirma a sua permanência para lá das tentativas de colonizadores e evangelistas, porque: «Os deuses de outros tempos arranjaram abrigo na memória das mulheres» (pág.75). É pelo novo olhar sobre as mulheres que se lhe revela a possibilidade de medir positivamente a beleza por cânones bem diversos dos ocidentais: «Segundo as regras de estética europeias, no seu todo ela não era muito bonita. Mas era bela. Todos os seus traços ofereciam uma harmonia rafaélica no ponto de encontro das curvas, e a sua boca tinha sido moldada por um escultor que fala todas as línguas do pensamento e do beijo, da alegria e do sofrimento» (pág. 41).
Além de perfume e feitiço, «noa-noa» quer dizer pau-rosa, e aqui aponta exactamente para um episódio em que a demanda dessa madeira para esculpir – por um caminho da Ilha, e da alma – corresponde à iluminação do pintor: «Agora eu era um outro homem, um selvagem, um maori» (pág. 50).
Gauguin volta para as Ilhas e morre por lá, junto da sua «vahiné». O poeta Vítor Segalen vai procurá-lo. Chega três meses tarde de mais. Aqui, em prefácio, dá-nos o cenário fúnebre com que deparou.
Helena Barbas [retomado do Expresso, 1998]