«Data de 1958 o primeiro livro de Ramos Rosa, O Grito Claro, cumprindo agora o autor trinta anos de percurso poético. É um longo caminho de exploração da linguagem, de demanda, não apenas artística, mas também de auto-conhecimento, que vêm a ser compensado com o prémio Pessoa.
Poeta modernista, tenta libertar as energias expressivas reprimidas, tornando-se o experimentador que busca uma imagem, a imagem possível num mundo em transformação, que redima o universo caótico, abdicando, pois da posição de celebrante de uma ordem humana e social.
A poesia deixa de ser um exercício impresso em que se exibe a excelência individual e torna-se um sinal falado de estímulo sensorial e uso do corpo: a arte – se este termo pode ser hoje usado – é um gesto revolucionário, o discurso, necessariamente descontínuo, porque mimese de um processo caótico e metamórfico, oferece-se como uma via alternativa. Neste autor, a imaginação poética aberta à experimentação linguística torna-se numa imaginação política, susceptível à ideia de uma sociedade ideal e utópica face à mitologia capitalista, defendendo a cooperação em lugar da competição. A poesia como “liberdade livre” é a metáfora da auto-determinação política, e o recurso à linguagem do quotidiano, à sua simplificação coloquial, implica a rejeição de todas as formas de elitismo.
Mas o eco de uma realidade social opressiva desencadeia a busca de uma outra realidade, descoberta do mundo e de si próprio através da linguagem, que se torna demanda de essências, do verdadeiramente desconhecido, do indizível. Ramos Rosa abandona assim as suas ligações com o realismo e o surrealismo, procurando outro dos caminhos de ligação com o real, descobrindo o seu.
Questiona o real pelo poema, micro-cosmos que espelha não apenas o cosmos como o próprio homem. No poema então se reflecte o eu, mas o conhecimento que proporciona é precário, sujeito ao espaço-tempo, à relatividade e efemeridade da vida, conhecimento que, logo escrito, se petrifica, perdendo o seu sopro vital. Isto leva a um recomeçar constante, um novo acto criador que de novo desencadeie vida, e que mantenha aceso o sopro vital. O poema liga-se assim ao real através da própria respiração, é o sopro que sustenta o corpo, e o corpo é o primeiro nível de materialidade que se alarga aos outros, à casa, à natureza circundante – árvore/mar – ao mundo.
O poeta é o demiurgo que procura repetir o gesto divino inicial que separa a luz das trevas, e faz ouvir o verbo no silêncio da página em branco. Esta demanda dos princípios é uma busca da pureza inicial, de um mundo anterior à queda, adâmico, ou de um mundo mágico em que ainda são possíveis as homologias entre casa, corpo, página. Há um prolongamento e uma partilha entre o ‘eu’ e o mundo que tornam difícil decidir onde um começa e outro acaba, uma ligação entre as palavras e as coisas que revelam o tradutor de Michel Foucault.
Desencadeiam-se associações e homologias que transformam o poema num “objectivo correlativo” das experiências vividas e do próprio acto de escrita. Usam-se as palavras desligando-as das suas relações sintácticas, tornando-asfragmentos em que se reduz a presença da acção humana – o verbo – justapondo-se substantivos e adjectivos, seduzindo o leitor para uma partilha do trabalho de exploração das denominações puras, dos tempos primordiais da fala. Abstraídas do seu espaço convencional, as palavras são redescobertas e preservadas em novas combinações que exibem o seu potencial oculto.
As homologias estendem-se ao jogo tipográfico, em que a disposiçäo gráfica, procurando romper com a linearidade do signo, acentua a capacidade visual do poema, a respiração da palavra-matéria que se gera na página. Mas esta pode ser entendida ainda em termos musicais, na progressão das frases que se desenvolvem, repetindo-se, variando e alargando-se numa estratégia de “fuga”. Estendem-se ainda ao desejo de fusão de todas as artes, nos comentários poéticos sobre a pintura, em que também se busca reproduzir a sua estrutura essencial, numa metamorfose em que ecoa Jorge de Sena.
António Ramos Rosa tem sido associado às tradições poéticas de inspiração francesa, mas esta sua preocupação da palavra como “pedra”/”coisa” que materializa o poema, traz ecos anglo-saxónicos, de “no in ideas but in things” de William Carlos Williams. A imaginação criativa no processo de invenção, no fabrico do poema, quebra as ordens petrificadas do real e cria novas ordens mais de acordo com a realidade das partes que a compõem que, como tal se vai sucessivamente transformando e evoluindo.»
Helena Barbas
Texto escrito sobre António Ramos Rosa, para o diário matutino ‘O Europeu’ em Dezembro de 1988, na ocasião do seu Prémio Pessoa. Foto de época roubada agora ao ‘Expresso’ on-line.