Para aproveitar a “saison” – e dado que se multiplicaram entretanto – retoma-se um “Evangelho de Judas”, versão de/parte do códice Tchacos duplamente traduzido para português ao tempo (Ésquilo, Temas & Debates, 2006) – aqui versão da autoria de Antonio Piñero, também entrevistado
O Evangelho de Judas – As heresias da salvação
Todos os textos tidos por sagrados são, naturalmente, salvíficos. O problema da salvação em si corresponde à passagem de um lugar para outro, de preferência melhor, depois da morte. E, nalguns casos, há a ideia de que já se esteve nesse lugar (sempre um paraíso) do qual se saiu, caiu, foi expulso por algum motivo. Será por isso que se inauguram com um génesis, que é também uma cosmologia – como na Teogonia do grego Hesíodo, no Timeu de Platão, ou na Bíblia judaico-cristã.
No panteão grego, em que os deuses se guerreiam, a degradação alastra a partir do espaço divino. No caso judaico-cristão, tendo como criador um único deus, perfeito, a falha primordial é atribuída à criatura – os desobedientes Adão e Eva.
Também os textos gnósticos se preocupam com a salvação do homem, com a relação que este pode manter com a entidade que imaginam o criou. E no seu conceito de criador tentam fundir aquelas tradições antagónicas. Por um lado, assumem a existência de uma divindade suprema una e perfeita (macho-fêmea), no topo da de uma hierarquia herdada de Platão e da Bíblia. Esta entidade e suas emanações («Éons») distribuem-se por um espaço simbólico: o «Pleroma», cuja última fronteira traz por nome «Limite». Deste para «baixo», até à terra, existe a zona sublunar (já de inspiração aristotélica) habitada pelo Demiurgo – o criador do mundo material – e seus acólitos – os Arcontes/Planetas (herdados da astrologia e do panteão greco-latino).
Em termos gnósticos, os males do mundo e do homem são justificados por um erro divino. E o tipo de falha varia conforme as seitas. Numa excepção curiosa, o erro divino é tomar a decisão certa no momento errado. Na maioria dos casos, uma das emanações, Sofia (a Sabedoria), tenta imitar o Absoluto (o único verdadeiro criador). Concebe um pensamento a partir de um reflexo de si própria, aspirando a reproduzir-se sem consorte (por autopartogénese) e dela sai o Demiurgo – «o Aborto». Este vai depois ocupar-se das tarefas atribuídas ao seu homónimo no Timeu, construindo embora um mundo (mau) à sua imagem e semelhança.
O cosmos gnóstico é pois altamente hierarquizado, tornando-se os seus escritos enigmáticos, ou difíceis de ler, quando procuram inventariar todas as emanações divinas, organizando-as por todos os espaços – um dos seus ecos pode encontrar-se na Divina Comédia de Dante.
Naturalmente que os homens têm lugar nesta hierarquia, mas à semelhança dos deuses, não são todos iguais – há os «hílicos» (materialistas), os «psíquicos» (os inquietos que podem vir a receber a revelação) e os «espirituais» (os mestres).
Fomos falar com Antonio Piñero, famoso especialista em gnosticismo, responsável pela edição e tradução para o espanhol de muitos dos textos que agora também já podemos ler em português. Foi por ocasião do lançamento de O Evangelho de Judas – publicado quase em simultâneo pela Ésquilo (trad. de Sofia Torallas-Tovar), e pela Temas e Debates (trad. de Rudolph Kasser). Piñero está longe da figura do investigador como «Indiana Jones» e embora relate no prefácio as tropelias sofridas por este manuscrito, teve acesso a ele já tratado e fotografado.
Começámos pelas hierarquias humanas. Pensava que «hílicos», «psíquicos», «espirituais» seriam nomes dados a fases de uma evolução individual, tanto mais que o autor de O Evangelho de Judas (E.J.) insinua que um «psíquico» pode passar a «espiritual». Piñero, no prefácio, define-os como «gentes», «raças» sem evolução possível – uma condenação? «Trata-se de uma autêntica predeterminação, mas não completa. O espírito está ébrio ou adormecido. O salvador é aquele que acorda essa centelha interior. O ataque aos “psíquicos” – por antonomásia, aos discípulos, à igreja, aos sacramentos da eucaristia e do baptismo – é demasiado duro». Invoca outros escritos, o Livro Secreto de João, A Sabedoria de Jesus Cristo, em que os autores, da linha «sethiana», se esforçam por salvar o Demiurgo, o que não acontece neste caso.
Porém, há um momento no E.J. em que o «espiritual» pode cair, regredir, enganar-se, o que insinua uma circulação entre os graus, mas trata-se de uma exegese do Novo Testamento – «Muitos serão os chamados e poucos os escolhidos» (Mateus, 20-16), diz-nos: «O gnóstico é o único que se atreve, dentro de um certo ramo, a alegorizar selvaticamente sobre os textos sagrados. Todas as suas construções partem deles, nunca usa outros. No fundo, é também uma revelação do livro». E para estas gentes, o primeiro de todos é sempre o Timeu, de Platão: «Tem o mesmo valor que os escritos de Homero para os Estóicos – eram textos sagrados. E alegorizavam sobre eles porque eram sagrados». Seguem-se-lhe o Antigo e o Novo Testamento.
Foram muitas as interpretações do processo de salvação gnóstico. A ideia de o indivíduo ser portador de uma centelha do divino exalta as fantasias. Marsílio Ficino (1433-1499) foi um dos primeiros a tirar conclusões. Deus não pode dividir-se, o todo está em todas as partes, o homem é (potencialmente) deus – uma espécie de holograma da totalidade. Piñero discorda: «O gnóstico resolveu isso claramente. A divindade é única, só, e transcendente. Mas pode projectar-se enquanto luz, como luz, continuando a ser um farol. Numa dessas projecções, ao nível da plenitude divina (dentro do Pleroma), mas num grau inferior (a um segundo nível, num quarto extracto), existe a identidade divina como ideia arquetípica do homem. Puramente platónico. Essa ideia arquetípica do homem é uma emanação da divindade como luz, e o ser humano é a realização, em sombra, do arquétipo. E dado que o arquétipo é divino, o ser humano tem a possibilidade de ser divino». Há aqui também um desvio ao princípio platónico, pois enquanto sombra do arquétipo, o humano é uma degradação, sem hipótese de regresso: «Sim, é certo, a divindade é inacessível. Mas esta sombra tem uma parte de luz. A parte da sombra é a parte do arquétipo que corresponde ao corpo e à alma. A parte de luz (rodeada de sombra) é a única que ascenderá à plenitude. Quando morre um gnóstico, o corpo e a alma perecem, mas o espírito une-se plenamente com a divindade, por semelhança, mas fora dela. Quando chega à plenitude da divindade, o gnóstico está dentro do “Pleroma”, mas dois graus mais abaixo do arquétipo. Os “sethianos” explicam isso claramente ao introduzirem o “Éon Limite”. Quando o gnóstico chega ao “Pleroma”, cruza o “Limite”, mas fica em baixo. A divindade está em cima e pode contemplar-lhe a luz». Apesar de tudo isto, entende que a salvação é completa: «Na medida em que cada uma das naturezas o permite. Somos perfeitos e completos ao nosso nível, mas não somos deuses. Nalguns sistemas, a salvação do “psíquico” é perfeita e completa ao seu nível, dentro das suas aptidões, mas fica abaixo da Lua – é um lunar. Nós, como gnósticos, temos um alcance muito inferior ao da Sofia. Há uma hierarquia total. Os “sethianos” resolvem a contradição ao dizer que essa hierarquia é real e simbólica, porque trata apenas de modos da divindade».
Há versões em que o fogo divino (o espírito) que habita o homem resulta de uma projecção – ou mesmo uma explosão – da Divina Sofia. No E.J. é dado ao homem pelo Demiurgo: «Trata-se de uma vingança de Sofia porque, apesar de o Demiurgo ser filho dela, nasceu no espaço inferior. Aborrece-o porque é um filho adulterino, foi concebido sem a vontade do pai, sem o seu par – e aqui o perfeito é o par».
No E.J. o herói é também Jesus. Mais uma acha para alimentar as demandas sobre o Jesus histórico, que Piñero considera serem uma falsificação anglo-saxónica. Quanto ao problema decorrente, corrobora que, apenas a partir de textos tardios, é possível apanhar o substracto histórico de um modo cientificamente aceitável: «A ideia dessa impossibilidade é um dogma da escola alemã da “História das Formas”. Um postulado de Martin Dibelius (1883-1947) e Rudolf Bultmann (1844-1976), que durou de 1919 até 1950, data em que Ernst Käsemann (1906-1998), também da mesma escola, elimina a ideia. Dela fica que devemos ser cautos com o que afirmamos sobre Jesus. E não há agora qualquer nova demanda. Aos alemães e ingleses interessa-lhes afirmarem-se como os primeiros na ciência teológica, desprezando os latinos – que só os anglo-saxões são sérios».
Como cientista Piñero defende que é possível reconstruir o fundamental sobre o Jesus histórico: «Os Evangelhos são duplos: uma manifestação de fé, e uma correcção ao dogma de Paulo. Paulo insiste apenas no valor salvífico da Morte, no sacrifício e Ressurreição. Os Evangelhos dizem que toda a vida de Jesus é salvadora. Por tal é necessário fazer uma Proclamação e uma História. E, ao serem quatro os mais antigos, temos a possibilidade de fazer comparações. Com uma aplicação sistemática de instrumentos críticos, de critérios heurísticos, obtém-se claramente uma imagem do que Jesus não poderia ter sido». Trata-se, portanto de uma construção pela negativa: «Não poderia ter sido um filósofo cínico, um homem a-religioso. É patente que o centro da predicação de Jesus foi o reino de Deus. Há coisas que temos a certeza que não ocorreram. E há uns oito acontecimentos centrais que são genuínos».
A prova máxima que nos dá é que, caso o N.T. fosse mera proclamação de fé, os seus autores não lutariam tanto para acomodar a personagem à ideia preconcebida que dela têm: «Vê-se a fractura, a luta. Se tivessem inventado algo como o Cristo da fé, não haveria tantas inconsistências – em particular em Marcos. Jesus aparece como um homem que se irrita, que se aborrece, que discute com os discípulos, que discorda deles, que ri. Decerto teriam inventado outra coisa».
António Piñero, «não-crente», racionalista, trocou a Filosofia pela Filologia e entusiasmou-se com a hipótese de poder resgatar este tipo de textos desconhecidos em Espanha. Quanto a esta recente onda cultural que aproveita os manuscritos para os usar como arma ideológica comenta: «Agora é muito mais fácil. A Igreja Católica foi dessacralizada, desmitificada, já não é um referente cultural, literário e ideológico, ficou mais a descoberto. O imaginário, o marco ou referente cultural dos jovens, é o mundo da ficção científica, da ciência do universo, da biologia, da genética, da astrofísica. Depois, trata-se de uma reconstrução puramente psicológica. Nalguns países tem a pretensão de continuar a dominar as consciências. Quem tem animosidades contra a Igreja aproveita para a atacar. Se fosse o Islão, já não o fariam porque aí não lhes sairia grátis. O elegante é expor as coisas simplesmente como creio que o fazemos, e cada um que pense o que quiser». Quanto a este seu último trabalho acrescenta: «A nossa tradução – da Sofia e minha – foi feita exclusivamente tendo diante o texto em língua copta, e sem dicionário algum. Corrigi e controlei, mas não foi cotejada com outras, nem com a inglesa».
Helena Barbas [Expresso, 2006]