imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Anónimo, 1552

 

Outra elegia a Madanela de Outro Autor [1]

 

1       Aquela verdadeira penitente

a que tiraste señor muitas maldades

por te amar desacostumadamente

 

Deixa agora os parentes y as cidades

5       a vos busca com o peito cheo doutros amores

y doutras saudades

 

De noyte ao sepulchro veo apressadamente /Fol.miij

que o vosso amor puro lhe fez perder

todo o receo

 

Cortada dos trabalhos y da dor

10     busca mas nam como devia

a voz seu doce mestre y señor

 

A noite se acaba y amanhecia

y ella que depois que vos não vio

com os olhos nem com a alma nam dormia

 

15     Soo y triste de casa se sayo

sem cuydar vos ver resuscitado

ao sepulcro se foy onde vos ungiu

 

Cuidando que o vosso corpo amado

acharia y que por suas mãos

20     seria outra vez embalsamado.

 

Vio mortos vivos vio doentes sãos,

vio o que he mais sua alma desatada

de entendimentos y cuidados vãos

 

E ainda assi esta tam enlevada /Fol.miij-v

25     em tuas palavras y divino rosto

que de nenhuma outra cousa era lembrada.

 

De tudo al tinha perdido o gosto,

a vos so busca seu contentamento

em vos sñor o tinha todo posto

 

30     Isto a faz vir sem nenhum tento

cuydando em quem ajudaria

a rebolver a pedra do moimento

 

Isto a faz estar quem nam movia

os olhos do sepulchro esperando

35    quem lhe dissesse onde vos veria.

 

Por vos continuamennte ela chorando

por vos nam sente dor nam sente medo

por vos sua tardança esta culpando

 

Parece lhe que por nam vir mais cedo

40     vos perdeo, y nestes sobresaltos

o seu spiritu nam estava quedo

 

Ao peito o coraçam lhe dava mil saltos

na terra te buscava onde tomou /Fol.miiij

nam pode os pensamentos ter mais altos.

 

45     Com lagrimas dizia quem sou

quem vos esconde de mi quem foy tam duro

que do Sancto sepulcro te levou

 

Aquelle brando, aquelle espiritu puro

onde esta como nam vem agora

50     consolar este peito mal seguro

 

Em quanto do Sepulchro estiver fora

o teu corpo sagrado nam terei nam digo alegre

mas repousada huma ora

 

Ahuma parte do mundo dixarey

55     que nam busque os campos discubertos

y os vales sombrios buscarey

 

Por desusados caminhos y incertos

por mar, por rios, por povoados

vos buscarey señor y nos desertos.

 

60     Os meus olhos nam seram cerrados    /Fol.miiij-v

com doce somno, y os meus pensamentos

nisto os terey sempre ocupados

 

Trabalhos, desonras nem tormentos

grandes necessidades y tristezas

65     nam me apartaram destes  fundamentos

 

Bem sey que tudo isto sam estreitezas

pera quanto devo mas tambem

sey que nenhuma cousa tu desprezas

 

Isto dizia y logo se vio bem

70    dor y lagrimas se nam sam fingidas

quanto podem y quanta força tem

 

Nam foram estas suas esquecidas

que deus inda que tarde nam se esquece

se nam de condições endurecidas

 

75     Porque sabe o que quer porque conhece

quem o busca com todo coraçam

primeiro que a todos lhe apareçe

 

Mas porque ainda / nam erguia do chão /Fol.mv

a sua alma a cousas mais seguras

80     aparecee lhe alli como o hortelão

 

Outro ser O Maria outras venturas

outro descanso outro repouso tens

diferente daquelle que procuras

 

Outros contentamentos outros bens

85     que nunca perderas, outra alegria

diferente daquella porque vens

 

Buscavas o sñor na pedra fria

esperavalo morto veio resurgido

como antes da morte te dizia.

 

90     Na ora que de ti foy conhecido

logo levantaste o entendimento

que trazias de todo escurecido

 

Nelle quietaste o pensamento

seguraste os cuydados y as lembranças

95     encheste a alma de contentamento

       de nova paz, d'novas esperanças

Laos Deo.

[]


[1] In A Paixão de Jesu Christo nosso deos e señor assi como a escreueram os quatro euangelistas: e como a decraram os santos: e dotores catholicos, (Évora: André de Burgos.1552) fóls.miij-mv;