Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

]  V - Conclusão [

 

      A impossibilidade de constituir uma biografia transforma Manuel da Veiga Tagarro num "herói" do estruturalismo. Preenche, por esta via, todas as condições que eram exigidas pelos mestres, na medida em que obriga o leitor – quer este queira ou não – a centrar-se exclusivamente na sua obra. No entanto, e apesar da autonomia semântica do texto escrito face à situação de discurso, é impossível considerá-lo como uma entidade sem autor.

       A tentação biográfica torna-se uma necessidade quando o sentido do texto depende de um olhar particular sobre o mundo, que constitui a sua referência primeira. Recusando, embora, a perspectiva psicologizante que informa a lenda romântica construída em torno de Manuel da Veiga Tagarro, insiste-se na hipótese de o autor poder ter sido um dos náufragos-prisioneiros resgatados de Alcácer-Quibir. Directamente relacionado com o norte de Africa pela sua ligação com a família dos Noronha, terá sido nobre porque se move na corte, embora sem meios. Por estes motivos se justifica a identificação com o Árquias defendido por Cícero: guerreiro, poeta e "estrangeiro", sem bens, e sem acesso a registos que permitam provar a sua identidade, terá ficado sujeito a sobreviver através do mecenato.

      Porque o(s) mecenas que este "eu" de enunciação cantou se revela(m) igualmente desprotegido(s) da sorte, poeta e patrono(s) foram tragados pela história, tendo todavia sobrevivido esporádica e horacianamente imortalizados pela escrita poética.

 

      No que respeita ao conjunto de poemas torna-se evidente, pela presença das notas marginais na edição de seiscentos, que a sua leitura exige o recurso não apenas à intertextualidade, como à interdisciplinaridade. A carga de erudição – dir-se-ia mesmo enciclopédica – que acompanha os diversos poemas, dificulta de sobremaneira a sua interpretação. Mas a inclusão de fragmentos de outros textos, que transformam a obra num "monstro", revelam-se não apenas como uma exibição pedante, mas também, como uma tentativa de recapitulação dos legados culturais do passado, que se pretendem organizar num todo englobante. Por esta via, Laura de Anfriso deverá ser lida e entendida, não como um conjunto de componentes parciais, mas como um todo histórico – exibindo-se como "tradição" no sentido primeiro do termo. A historicidade da transmissão, e da recepção, deste "conhecimento", não pode, pois, ser elidida, tanto mais que, devido às transformações sócio-culturais, filosóficas, e mesmo religiosas do período – que resultam de uma mudança de cosmovisão – a tradição se revela como problemática. A recuperação do passado é uma tentativa para superar o esquecimento e obviar à alienação. Manuel da Veiga transpõe este obstáculo pelo recurso à estratégia da citação. A sua escrita é, deste modo, também uma forma de leitura dos textos da antiguidade – sagrada e profana –, textos que procura resgatar tornando-os, simultaneamente, presentes e produtivos para o futuro.

      Quanto mais não seja por este aspecto, será redutor despedir sumariamente Tagarro com mais ou menos classificações e etiquetas, especialmente quando os estudos que o mencionam são elaborados sem o recurso à edição de 1627.

      Relativamente a um enquadramento periodológico, pode afirmar-se que Manuel da Veiga, de acordo com os pressupostos superiormente sintetizados por V. M. Aguiar e Silva, se encontra mais perto do Maneirismo que do Barroco:

O barroco é profundamente sensorial e naturalista, apela gozosamente para as seriações fruídas na variedade incessante do mundo físico, ao passo que o maneirismo, sob o domínio do "disegno" interiore, da Idea, se distancia da realidade física e do mundo sensório, preocupado com problemas filosófico -morais, com fantasmas interiores e com complexidades e subtilezas estilísticas; o barroco é uma arte acentuadamente realista e popular, animada de um poderoso ímpeto vital, comprazendo-se na sátira desbocada e galhofeira, dissolvendo deliberadamente a tradição poética petrarquista, ao passo que o maneirismo é uma arte de  elites avessa ao sentimento "democrático" que anima o barroco, anti-realista, impregnada de um importante substrato preciosista e cortês, representado sobretudo pelo filão petrarquista; o barroco caracteriza-se pela ostentação, pelo esplendor e pela proliferação dos elementos decorativos, pelo senso da magnificência que se revela em todas as suas manifestações, tanto nas festas de corte como nas cerimónias fúnebres, contrariamente ao maneirismo, mais sóbrio e mais frio, introspectivo e cerebral, dilacerado por contradições insolúveis; o barroco tende frequentemente para o ludismo e o divertimento enquanto o maneirismo aparece conturbado por um "pathos" e uma melancolia de raízes bem­ fundas. [1]

      A favor da hipótese Maneirista, encontra-se a mundividência, já  que se refere um mundo labiríntico, mas o universo não perdeu a sua harmonia ptolomaica, pois as estrelas continuam a seguir o seu ordenado caminho astrológico; a oposição corpo/alma alia-se à inquietação espiritual e à angústia pela efemeridade da vida, mas estas são resolvidas pelo divino, e encontra-se uma solução pelo êxtase. A nível da linguagem descobre-se o uso de antíteses abstractas e metáforas conceituosas que remontam ao "Dolce­ Stil Nuovo", mas que, explicitadas pelas notas, não só adquirem uma intenção didáctica como "classicizam" o próprio Petrarca. Está ainda presente a dificuldade neo-platónica em encontrar um discurso para dizer o sagrado, que vai ser ultrapassada do modo usual, pelo recurso à linguagem da poesia amorosa profana.

      Assim, a ligação ao Maneirismo será igualmente uma falsa aproximação, na medida em que, a angústia existencial própria do período se apresenta altamente codificada de acordo com regras anteriores, e a sua forma de pensamento, seguindo uma lógica claramente escolástica, poderia ser considerada mais próxima ainda do medieval que do renascente. O seu é um sofrimento rígido e hierarquizado, altamente ordenado mesmo nos seus destemperos. Terá sido esta anacronia, sensível mas não muito evidente, que os críticos de Manuel da Veiga associaram ao preciosismo e ostentação, e os levou a incluí-lo no período Barroco.

      Como se pensa ter provado, se Laura de Anfriso peca é por excesso, e não por falta, de riqueza de significados, sejam eles a nível formal e prosódico, sejam a nível literário, histórico e filosófico, e esta desmesura é agravada pela duplicação, ou duplicidade, de sentidos e informações. Primeiro, relativamente à estrutura, verifica-se na epístola e éclogas que pretende conciliar os elementos próprios do género bucólico, que intitulam os textos, com uma estrutura épica, dissimulada e obsoleta, reunindo à intenção encomiástica a pretensão de sublimidade artística. Nos livros de odes vai ser seguido o processo inverso, pelo uso do nome da forma clássica e utilização das formas das silvas e canções pastoris. Estas duas partes do texto organizam-se num todo sob a égide do "epilion", que traz consigo a exaltação do tema pastoril amoroso à forma do canto heróico.

      Estes processos gemelares, reflexo ainda de uma apropriação das tradições clássica e vernacular, prolongam-se pelas personagens e vão igualmente fundamentar a evolução do triplo percurso para o desengano. Este é, inicialmente, um substituto analógico para a demanda da cavalaria medieval, mas progressivamente vem a revelar-se como um processo de evolução interior, tanto psicológico, como filosófico-espiritual.  Começa porque esse caminho é seguido pelos heróis – Laura e Anfriso – que evoluem simultaneamente, a par e em oposição. E se Laura vai representar para Anfriso as diversas e sucessivas hipóstases femininas, centradas nas figuras de Eva/Vénus, Diana/Astreia e depois Verdade/Sofia; Anfriso acaba por se contrapor enquanto hipóstase masculina de homem/Adão, rei/David, e deus/Cristo. Assim, em última instância, a morte do pastor porque vai para os Céus/Mundo Ideal   e o êxtase de Laura que se casa com Cristo , funcionam, mais do que como metáfora, como uma alegoria, da união mística dos princípios feminino (Lua) e masculino (Sol) que cada um deles representa. Por este processo, Laura sempre acaba por casar com Anfriso na dúplice união de Cristo com Sofia.

      Por aqui se recupera, uma vez mais, o mito do regresso à Idade de Ouro próprio do estado adâmico da vida pastoril, mas agora sob uma perspectiva religiosa (gnóstica) ou filosófica (o neo-platonismo de Leão Hebreu [2]). Este processo corresponde, em Manuel da Veiga, a uma tripla redenção de uma tripla queda – a gnóstica-cósmica, e as genésicas dos anjos e dos homens. A ascensão redentora aparece simbolizada no cortejo estelar e astrológico, narrado por Anfriso na sua subida aos céus, bem como no bordado de Laura, que "refaz" o universo. O processo escatológico apresenta-se, também ele, como síntese religiosa de diversas tradições que se pretendem cristianizar.

      Mas por detrás das personagens e de todo o seu percurso está o "eu de enunciação", presença residual do autor histórico, que apenas fica conhecido pelas suas opiniões, ou pela sua filosofia:

Quem escreve um poema é a problemática dum autor, o sujeito dum poema é sempre o seu autor seja qual for a retórica usada para se expressar, e esse autor não é apenas aquilo que surge dizendo um pronome pessoal qualquer num discurso, esse autor é a totalidade desse discurso. O sujeito dum poema é a globalidade do poema que é a pessoa do seu autor. [3]

Em Laura de Anfriso, materialmente ausente, Tagarro não deixa de ser uma forte presença que se não pode ignorar. E se a problemática é o autor, Laura e Anfriso são, por esta via, Manuel da Veiga.

       Não se pretende, com esta leitura, uma apropriação de um outro sujeito, presumivelmente escondido atrás do texto, mas sim do projecto de um mundo, de uma proposta ontológica que o texto acaba por desvelar diante de si mesmo. E nesta perspectiva, a importância maior de Laura de Anfriso é provar que alguns autores em Portugal não ficaram alheios às movimentações estéticas e ideológicas deste período tão conturbado, e que até contribuíram com a sua perspectiva muito própria para formas de pensamento mal aceites, condenadas ou mesmo censuradas pelo poder vigente. Manuel da Veiga fez passar esse seu conhecimento por intermédio das notas; ironicamente tornou-se, mais o(s) seu(s) mecenas, notas à margem das histórias políticas e literárias; mais ironicamente ainda, foram essas notas que permitiram que fosssem "ressuscitados".

[] H.B.[]


[1] Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, Op.Cit., p.­477-78.

[2] Mª. de Lurdes Belchior: «parte constitutiva das novelas pastoris a especulação sobre as leis do amor, tirada sem escrúpulos dos Tratados de Amor italianos ou de Leão Hebreu». Op.Cit., p. 116.

[3]  Joaquim Manuel Magalhães, "Philip Larkin, Um Poeta da Tristeza e da Aceitação", posfácio a Philip Larkin, Uma Antologia trad. de Mª. Teresa Guerreiro, Fora do Texto, Lisboa, 1989, p.110.