imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas

- a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses - helena barbas - fev.2003

 

[] Diogo Mendes Quintella, 1615

A S. Maria Magdalena - Soneto 23

A S. Maria Magdalena - Soneto 24

A S. Maria Magdalena, indo ao Sancto Sepulchro...- Soneto 25

Glosa do Soneto atras.


 A S. Maria Magdalena - Soneto 23 [1]

 

Na Lapa do deserto fria, & dura

Do mundo a Magdalena despedida

Em aquelle alto Deos toda em bebida,

Fazia d’Anjos já hüa vida pura.

 

5       Converteoselhe em dia a noyte escura

Quando d’amor d’aquelle foy ferida.

Que veyo lá dos Ceos a dar a vida

Por remedio de toda a criatura.

 

De lagrimas banhava o branco peyto,

10     Com penitencia a carna fugigava

Obrar, & contemplar era seu feyto.

 

Não he de espantar logo se gozava

Do Ceo toda a riqueza hum tal sugeyto,

Que mais, que tudo mais a Deos amava.

 


A S. Maria Magdalena - Soneto 24

 

Que Fazeys Magdalena, que enlevada

Estaes aos pés de nosso Redentor?

Conheceys por ventura esse Senhor?

D’outra Maria he Filho mais sagrada.

 

5       Conheceo minha alma, que abrazada

Ma tem elle de seu divino Amor,

Por quem eu passarey, sem ter temor,

Por ferro, fogo, & agoa muy ousada,

 

Que vendome elle a mim, vime a mim nelle

10     Tão longe de quem sempre ser divia,

Que logo em mim propus mudar a pelle.

 

Com lágrimas lavey a minha ousadia

Logo que tal me vi, fuyme após elle

Sem que por me ganhar me perderia.

 


A S. Maria Magdalena, indo ao Sancto Sepulchro no dia da Sagrada Ressurreyção do Senhor - Soneto 25 [2]

 

De Noycte a Magdalena vay segura,

Passa por homens d’armas sem temor,

Tanto enlevada vay no seu Amor,

Que não entende a quanto se aventura.

 

5       Indo buscar a vida á sepultura

Quando não achou nella o seu Senhor,

Com suspiros, com lagrimas, com dor

Movia a piedade a pedra dura.

 

Suave Esposo meu todo o meu bem

10     (Com os olhos no sepulchro começou)

Quem vos levou Senhor, donde vos tinha?

 

Quem vos levou Senhor, onde vos tem?

Torneme meu Senhor quem mo levou,

Ou leve com seu corpo esta alma minha.

 


Glosa do Soneto atras.

 

1

Cantar podes já Musa, afoutamente

Este esforço dos homens ser mudado,

Na feminil fraqueza, que altamente

Tal dom por muyto amar tem alcançado:

5       Pois quando os homës fogem bayxamente

Com medo que no peyto he congelado,

E quando a terra ao Ceo faz guerra dura

De noyte a Magdalena vay segura.

 

2

Naquella triste noyte, & temerosa,

10     Em que mostrarão mays sua cegueyra

Os homens, que da Lua tão fermosa,

Nem dos Ceos a luz vião verdadeyra:

Noyte em fim que o temor com mão medrosa

A alma, & vista lhe cega de maneyra,

15     Que armada Magdalena só d’amor

Passa por homens d’armas sem temor.

 

3

Passa por homës d’armas, nada teme,

Antes póde de todos ser temida,

Que em lugar de temer suspira, & geme

20     Como quem tem d’amor a alma ferida:

Antes qualquer armado ante ella treme

De perder receoso a triste vida,

Vendo que quanto entre armas sem temor

Tanto enlevada vay no seu Amor.

 

4

25    Na força vay d’Amor tanto esforçada

Que por elle não sente já tormento,

Porque possa passar, mais que apartada

Se ver de seu Amor hum só momento:

Deste receyo já tanto apertada

30     De ver de seu Amor o apartamento,

Passa por homës d’armas tão segura,

Que não entende a quanto se aventura.

 

5

Se a quanto se aventura conhecéra

Com esforço mayor, com mór cuydado

35     Tão alto pensamento acometera,

Que então lhe dera Amor esforço dobrado:

Mil estremos d’amor então fezera,

Dandonos a entender quanto he acertado

Arriscarmos a toda a desventura

40     Indo buscar a vida á sepultura.

 

6

Busca na sepultura a doce vida,

Que morta tinha Amor, que nella ardia,

Estando em nosso Amor tanto accendida,

Quanto via d’Amor nossa alma fria:

45     Em nosso nome foy esta ferida

D’amor, que ardendo nella em nós se esfria

A quem chorando vai com grande dor,

Quando não achou nella a seu Senhor.

 

7

Quando sem seu Senhor nossa alma sente

50     Sentindo nosso mal de dor cortada,

Por vela de seu bem estar ausente,

Com tanto mal, mil ays dá magoada:

Com tantos ays nossa alma penitente

Deseja ver da culpa ja passada

55     Em amizade vir de seu Senhor,

Com suspiros, com lagrimas, com dor.

 

8

Com suspiros, com lagrimas, com dor,

Com que Amor lhe feria o brando peyto,

Chorava ver ausente o seu Amor

60     De nós, de quem se queyxa deste geyto:

Ay dura condição, com desamor

Pagas a quem por ti tanto tem feyto?

Não viras que em estar na sepultura

Movia a piedade á pedra dura?

 

9

65    Se a dura pedra Amor, já de dor sente

Os males, porque estou triste chorosa,

Que he verme, meu Senhor, de vós ausente,

Sem quem toda a minha vida he penosa:

Vejavos eu Senhor, que não consente

70     Esta alma vida ter tão desditosa,

Pois sem vós vida ter póde ninguem,

Suave Esposo meu, todo meu bem.

 

10

Vejavos eu Senhor, porque não veja

Chorar meus tristes olhos de contino,

75     Porque verey então quanto sobeja

O bem a quem vos vé meu Deos benigno:

Vervos minha alma Amor sempre deseja,

Quem sem vos ver de si ja perde o tino,

Que se vistes por vós quando chorou,

80     Cos olhos no Sepulchro começou.

 

11

No Sepulchro onde a morte tinha a vida,

Enterra d’Amor, seus olhos tristes,

Pos minha alma d’amor por vós ferida,

Que tanto que vos vio d’amor feristes:

85     Com ella sem vòs fico esmorecida,

Sem vós, que logo tanto que partistes,

Não soube mais dizer me esta alma minha,

Quem vos levou Senhor, donde vos vinha.

 

12

Quem teve Senhor tal atrevimento,

90     Ou quem tomou sem mim tal ousadia,

Que ousaste vir sem mim ao Moymento

E levarvos sem mim, que em vós vivia?

Pois Senhor vos levarão hum só momento

Sem vós não poderey ter de alegria,

95     Digame meu Senhor, todo meu bem,

Quem vos levou Senhor, onde vos tem?

 

13

Mova seu coração a piedade

Em lágrimas por vós ver meu desfeyto,

Que usarão feras ja de humanidade

100  Vendo diante hum brando objeyto:

Quem comigo usou tal crueldade

Levandovos sem mim tão sem respeyto?

Levandovos Senhor, quem me deyxou?

Torneme meu Senhor quem mo levou.

 

14

105  Se quem meu bem levou ja me levara,

Pena de tão grão dano não sentira,

Que então com elle estar me consolara,

Que seu tão gande Amor mo consentira:

Mas pois nisto me foy a sorte avara,

110  Que de estar com meu Senhor também me tira,

Torneme meu Senhor a onde o tinha,

Ou leve com seu corpo esta alma minha.

 

                                    FIM.

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[1] In Segunda Parte dos Sonetos, e Glosas feytas a Santos, apud. Conversam e Lagrimas...  (Lisboa: Vicente Alvarez,1615), fol.133-136v.

[2] Soneto atribuido a Diogo Bernardes, aparece sem indicação de autor;