Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

]  Introdução  [

 

      Os postulados que serviram de ponto de partida aos formalismos são já  hoje fenómenos datados que ocupam um merecido lugar na história das ideologias. No entanto, as marcas decorrentes da tónica na materialidade da obra, quer positivas, quer negativas, são ainda bem visíveis. E o avanço considerável que representam as novas técnicas de abordagem de texto, já  não consegue ocultar as deficiências dos princípios metodológicos, especialmente no que respeita ao conceito de literariedade enquanto legitimação da literatura como ciência autónoma.

      A poética, na medida em que tem por objecto o estudo da literariedade, viu-se numa encruzilhada que a  obriga a enveredar, tanto por uma teoria do discurso - mais apropriada ao campo da linguística - quanto por uma retórica ou uma semiótica  que, obliquamente, acabam por recuperar o comentário de texto. Em qualquer dos casos, o seu objecto deixa de ser geral para se cingir ao que pode transcender um texto particular, atestando como utópico o projecto de construir uma ciência literária. A literatura acaba por revelar que, não só os traços que a caracterizam lhe são exteriores, mas também que o seu âmbito é pertença do campo de todas as ciências humanas.

      O texto continua a ser entendido como um sistema, mas evidencia a sua irregularidade e fragilidade que, escapando a uma taxinomia, prenunciam o risco da queda no detalhe indecomponível. A incapacidade de captar a contingência do texto desencadeia a inevitabilidade de uma crítica dialógica, ou intertextual, que dê atenção aos valores escamoteados ou julgados inerentes à literatura, nomeadamente, o sujeito e a história:

 

A poética e a história da individuação já não podem ser concebidas uma sem a outra. As duas em conjunto não podem ser afastadas. A sua marginalização não seria mais do que aquele efeito cultural cuja característica é de se fazer passar por efeito de ciência e verdade. É a centralidade do sujeito, do ritmo, do corpo na linguagem que exercem a contestação permanente das práticas pela teoria e das teorias pela prática. O resto não é mais do que o jogo do signo. [1]

 

      Parece, então, que a centralidade do sujeito começa a recuperar terreno, e a deslocar a coerência e autonomia do texto, a pôr em causa o que Paul Ricoeur chama de «falácia do texto absoluto» [2]. Busca-se uma teoria do sujeito enquanto instância que possa assumir como verdadeiros os discursos que produz, e capaz de englobar o pressuposto de agente de enunciação.

      A especificidade do texto passa a definir-se por um equilíbrio entre os elementos que o constituem e a integração de componentes até aqui considerados como aleatórios. A análise exige, agora, a integração – pelo menos relativa e tão detalhada quanto possível – de todos os dados pertinentes, o que implica uma escolha interpretativa que se revela indissociável de uma reflexão sobre as condições da enunciação dos discursos:

 

Não é a intenção do autor, que se encontra supostamente oculta por detrás do texto; não é a situação histórica comum ao autor e aos seus leitores originais; não são as expectações ou sentimentos desses leitores originais; nem sequer a auto compreensão que de si tinham como fenómenos históricos e culturais. Aquilo de que importa apropriar-se é o sentido do próprio texto, concebido de um modo dinâmico como a direcção do pensamento aberta pelo texto. Por outras palavras, aquilo de que importa apropriar-se nada mais é de que o poder de desvelar um mundo, que constitui a referência do texto. Desta maneira, estamos o mais longe possível do ideal romântico de coincidir com uma psique alheia. Se se pode dizer que coincidimos com alguma coisa não é com a vida interior de outro ego, mas com o desvelamento de um modo possível de olhar para as coisas, que é o genuíno poder de referência do texto. [3]

 

      A condição da exterioridade torna-se contingente ao texto, e revela-se como fundamental para o processo hermenêutico. Pressupõe-se, por esta via, a existência de um universo de valores que patenteiam a inscrição de um sujeito, sujeito esse que, simultaneamente, é garante da determinação e reconhecimento daqueles valores. Restituído ao homem e ao mundo, o texto literário fica sujeito ao tempo e à história.

      No que respeita a Manuel da Veiga Tagarro, o autor de Laura de Anfriso, este ponto é reforçado pelo facto de o poeta viver do mecenato e de dedicar o seu texto a um indivíduo que pertence à classe social dominante. A obra surge, de imediato, pré-determinada por esta situação particular e exigirá, como informação prévia, o esclarecimento das relações entre o seu “emissor” e o seu “receptor” mais próximo. Por este motivo se dedicou a primeira parte deste trabalho a uma tentativa de reconstituição biográfica que tem por fim criar um enquadramento para a situação de enunciação.

 

      A obra, enquanto enunciado, será discutida no ponto seguinte. Destinada a uma reactualização indefinida, a enunciação literária aparece ligada a múltiplas cadeias de elementos entre os quais se contam os modos como foi sucessivamente aceite. O estatuto inevitavelmente dialógico e intertextual da comunicação literária impõe aos textos horizontes potenciais de sentido, que acabam por se actualizar de vários modos, abrindo-se a diversas leituras:

 

Pode até afirmar-se que tais leituras são regidas pelas prescrições do sentido inerentes às margens do sentido potencial que rodeia o núcleo semântico da obra. Mas também estas prescrições se têm de conjecturar antes de poderem reger o trabalho de interpretação. [4]

 

O desenvolvimento sintagmático de cada discurso será modulado em função de uma estratégia persuasiva: por um lado, pretende a conversão do leitor (narratário), fazendo-o passar a uma posição de crença; por outro, esta crença acabará por fundamentar a identidade do sujeito de enunciação pressuposto pelo texto. Procurar-se-á, então, examinar as concordâncias e oposições entre as diversas práticas de leitura e, frente aos seus resultados, encontrar uma justificação para um enquadramento periodológico e de género.

      Na medida em que o sentido de uma obra depende das relações que estabelece com outras, com um género e uma época, teoria e história da literatura acabam por tornar-se complementares no determinar, não apenas das variáveis diacrónicas, mas também no reconhecer das variantes sincrónicas do género do discurso considerado. E as mudanças que determinam as preferências poéticas resultarão das interrelações que definem os espaços sócio-culturais. Reconhece-se, desde já, a importância da interdisciplinaridade entre os diversos domínios da cultura (neste caso, principalmente a política, a religião, e a filosofia) que, tanto a nível formal como estrutural desencadeiam analogias no interior da obra. E tendo a arte um carácter culturalmente paradigmático, impõe-se a busca de cristalizações artísticas na produção de diversos autores do período, através das quais se possa detectar de que modo elas se manifestam a nível do pensamento e dominam, ou definem, uma utilização da história. Entre correspondências e analogias, pretende-se relevar a influência recíproca que as obras exercem umas sobre as outras, seja no quadro mais restrito da arte, seja num sentido mais vasto, no do mundo cultural. No campo da intertextualidade intenta-se a distinção entre os processos formais e estruturais que foram literalmente “roubados”, e os que obedecem a uma transposição e elaboração próprias.

 

      Embora não se possa esquecer que a crítica literária se libertou do historicismo após a reorientação dos processos metodológicos, constata-se que toda a comparação inter-artística pressupõe um critério de pertinência que obedeça a um levantamento sistemático, e que esclareça quais os elementos, estruturas e processos que possuem uma generalidade significativa no período histórico a que se reportam:

 

Fundada na intelectualidade pura da inscrição do sentido e da historicidade da sua escrita, a irredutibilidade da história literária é a verdadeira entropia do movimento e do desenvolvimento da crítica científica: os seus domínios e as suas disciplinas próprios são e serão sempre de definição aleatória porque as ciências humanas em geral, e as da literatura em particular, são sempre susceptíveis de retirar, da história da literatura, e do reservatório que ela é, ordens de factos que contêm coerências susceptíveis de serem entendidas sistematicamente e logo, autonomia metodológica. [5]

 

      Permitirá, assim, que se detectem não apenas os factores que vêm permitir a inserção da obra no espaço do chamado «bucolismo» enquanto subgénero literário, mas ainda reconhecer a emergência de formas menos correntes associadas­ ao épico, tal como se tentar  provar no ponto terceiro.

 

      Os problemas do conflito entre a literatura e as outras ciências – principalmente a história e a filosofia, também elas artes nos seus primórdios – têm que ver com a vastidão e variedade dos seus campos de estudo, difíceis de partilhar. Por este motivo, a interpretação interdisciplinar exigirá  um esforço de síntese entre as principais correntes e suas manifestações a nível artístico.

            Nos seus começos, a escrita da história é literária – o que, em última instância, permite inserir a história no campo da literatura. Esta experiência profunda, da historicidade das escritas e da literatura, pode levar a pensar que a resposta à literatura estará na história. Mais ainda porque, ao revelar extra-textualidade, beneficiando de formulações simbólicas, míticas e filosóficas já constituídas e independentes de si, a obra revela as poéticas como indissociáveis da história geral. Estas correspondem, porém, a uma série de transformações que afectam o dialogismo das racionalidades e dos universos semânticos – ou ainda das crenças –, como as mudanças de conceptualização do real, ou dos paradigmas científicos, cujas relações vivas e pensadas constituem o campo da nossa cultura. Assim, como paradoxo epistemológico, a ligação entre poesia e história que se estabelece na quarta parte deste trabalho, vai desembocar na filosofia, uma filosofia de carácter erótico que serve de base ao pensamento estético do período em análise.

[] H.B.[]


[1] Henri Meschonnic: «La poétique et l'histoire de l'individuation ne se conçoivent plus l'une sans l'autre. Toutes deux ensemble ne sont pas en marge. Leur marginalization ne saurait être que cet effect culturel dont le propre est de se faire passer pour effect de science et de vérité. C'est la centralité du sujet, du rythme, du corps dans le langage qui exerce la contestation permanente des pratiques par la théorie, et des théories par la pratique. Le reste n'est que le jeu du signe» in Les États de la Poétique, Puf, Paris, 1985, p.22.

[2] Paul Ricoeur, Teoria da Interpretação, Edições 70, Lisboa, 1976, p. 42.

[3] Ibid., p. 104.

[4] Ibid., p. 90.

[5] J. C. Polet: «Fondée sur la pure intellectualité de l'inscription du sens et de l'historicité de son écriture, l'irreductibilité de l'histoire litteraire est la véritable entropie du mouvement et du dévelopement de la critique cientifique: ses domaines et ses disciplines propres sont et seront toujours de définition aléatoire car les sciences humaines en général et celles de la littérature en particulier sont toujours susceptibles de tirer, de l'histoire de la littérature, et du réservoir qu'elle est, des ordres de faits qui recèlent des coherences susceptibles d'intelligence systématique et,­ dés lors, d'autonomie métodologique.», in ”Histoire littéraire et littérature comparée” in Méthodes du Texte, Éditions Duculot, Paris, 1987, pp. 231-2.

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