Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

 ] IV – A Relação Poesia-História [

      Poesia e História aparecem associadas, tanto teórica como praticamente, desde os seus primórdios, e é a sua relação que desencadeia as principais reflexões sobre a analogia entre a arte e o real.

      O primeiro paralelismo, que marca todo o pensamento ocidental é estabelecido – implicitamente por Platão e declaradamente Aristóteles – a partir de concepções formalmente idênticas (arte como imitação do real), mas que se revelam antagónicas: enquanto Platão encara as Ideias como o verdadeiro real, de que a natureza é um reflexo, e acusa a arte de mimese (ser o reflexo de um reflexo), Aristóteles vai considerar que o verdadeiro real reside na natureza, cuja imitação se apresenta como a suprema qualidade da arte. Esta velha divergência, que traça a linha de demarcação entre as estéticas materialista e idealista, acaba por manter-se válida para todas as interpretações ulteriores da relação entre a arte e o real – neste caso, a poesia como arte e a história como "real" – resistindo às diversas oscilações, bem como às "nuances" que a evolução epistemológica lhe vem dando ao longo dos tempos.

      A nível das práticas de escrita, poesia e história aparecem ligadas na sua origem: a poesia vai buscar os seus temas à história, e à lenda – ou à história como lenda e mito – e a história serve-se da poesia como meio de transmissão, para assegurar a sua existência e permanência (as epopeias). É neste espaço que se pode inserir a intenção épica de Tagarro – a já  atestada escolha da estrutura do epilion  – que, a par da opção pelo género bucólico, com as devidas implicações adâmicas associadas às implicações filosóficas do desengano, se mostra também como desejo de regresso às origens.

      A amálgama épica inicial (poesia, história, mito e direito) fragmentou-se para dar lugar a outros géneros. O poder do mito é minado pelo cristianismo e a validade da narrativa foi desafiada pela história e pelo direito. A síntese épica divide-se entre dois caminhos: um, de carácter ficcional, dirigido para os ideais de belo e bom (na linha platónica), outro, empírico, dirigido para o real (na linha aristotélica). No primeiro vão ser enquadrados os impulsos estéticos e éticos; no segundo encontra-se como componente a história propriamente dita, pretendendo a verdade dos factos:

Escrevo de acordo com o que me parece ser a verdade, pois as histórias (logos) dos gregos são, em meu entender, muitas e ridículas. (Hecateu de Mileto [1])

      É, portanto, a partir de um desejo e de um conceito de verdade, que a história se vai afastar da poesia, deixando de ser ”logos":

Esta é a exposição de informações (estória) de Heródoto de Halicarnasso, a fim de que os feitos dos homens, com o tempo, se não apaguem e de que não percam o seu lustre acções grandiosas e admiráveis praticadas quer pelos helenos quer pelos bárbaros: e, sobretudo, a razão pela qual entraram em conflito uns com os outros. [2]

História passa a ser uma exposição de informações para manter na memória as acções grandiosas e as razões dos conflitos. O seu conceito continua a evoluir, e aquela passa a pretender-se, não só verdadeira, como científica e imparcial:

Eu Lívio (...) enquanto indago e revolvo com toda a aplicação e cuidado aquelas coisas antigas (as histórias dos antigos romanos) de todo o cuidado, o qual posto que não possa torcer o ânimo de mim, que escrevo da verdade, contudo pode fazer esse ânimo inquieto. Determino eu Lívio nem afirmar nem refutar aquelas coisas que se contam antes de se fundar a cidade de Roma, ou na sua fundação mais convenientes às fábulas dos poetas do que aos verdadeiros escritos das coisas verdadeiras e obradas. Concede-se esta licença à antiguidade que confundindo as coisas humanas com as Divinas, faça os princípios das cidades mais dignos e respeitosos. [3]

      Ao contrário do poeta, o historiador vai ter como função explanar uma evidência, para o que terá  que adoptar um determinado critério. A sua informação necessita de um suporte empírico passível de ser verificado – os documentos ou os factos. Ele generaliza e sintetiza. Não concebe o passado colectivo da humanidade como sendo composto de um número infinito de acontecimentos, actos ou actividades isolados, todos eles igualmente significativos e importantes porque resultam da dor individual – o sofrimento humano que o discurso histórico postula, mas que sempre soube nunca poder penetrar: «A causa mais verdadeira (dos conflitos) é a menos evidente na exposição.» (Tucídides [4]). Foi deixado aos poetas a "exposição” do sofrimento humano individual. Manuel da Veiga toma sobre si o retratar a dor de um indivíduo que não conseguiu o seu lugar na história, o sofrimento de um povo que de herói – tendo ocupado o centro do mundo – se vê reduzido a uma situação de lateralidade e de dependência.

      Isto não impede que também procure preencher, na medida do possível – e o possível é condicionado também por uma situação de censura, não apenas religiosa, mas também política – a exigência de veracidade que tradicionalmente é feita ao historiador, mas com as devidas reticências:

A primeira e mais principal parte de história é a verdade dela; e porém em alguas cousas não há-de ser tanta que se diga por ela o dito da muita justiça que fica em crueldade, principalmente nas cousas que tratam da infâmia de alguém, ainda que verdade sejam. (João de Barros [5])

O historiador é responsabilizável perante uma realidade exterior ao seu discurso, o seu trabalho é sempre referencial e susceptível de controlo. Porém: «a verdade é a mais variável das medidas. Não é um invariante trans-histórico, mas uma obra da imaginação constituinte.» [6]. Para além da intenção moralizadora, e das "cedências" ao poder – em que tanto se insere a ocultação voluntária das informações, como o encómio ao mecenas – interfere a imaginação que subjaz a todo o evoluir do conhecimento, e que relativiza o conceito de verdade. [7].

      A relativização de uma verdade torna-a homónima e análoga a outras, dá  origem a uma verdade plural (a verdade é que a verdade varia, de Nietzsche), um sistema de verdades fabricadas, ou diversos programas de verdade, contraditórios entre si, pertencentes a um tempo e um espaço heterogéneos e plurais, e dependentes da esfera de crenças, igualmente sinceras e profundas, adoptadas no momento. O princípio do século XVII será  um dos momentos em que se muda de paradigma – no sentido que Thomas Kuhn dá  a este termo: «uma manifestação de novos modelos "que dão nascimento a tradições particulares e coerentes de investigação científica."» [8]. –  ou em que a mudança de conceptualização do real traz consigo uma alteração no sistema de verdades que, inicialmente, se revela como pluralidade. Não há consciência clara da dimensão da ruptura, mas afirma-se o desfasamento entre o homem e o mundo, que é detectado nas pequenas coisas do quotidiano. Utiliza-se de modo novo o "topos" do "mundo às avessas" que se actualiza e enriquece de sentidos num espaço em que a perda e subjugação políticas são facto consumado. A insegurança própria do período, desencadeada pela mudança de cosmovisão, é agravada, a nível individual, pela necessidade de sobrevivência num ambiente cortês que, subitamente, se poderá tornar hostil, pela perda do meio de sobrevivência que representa um mecenas.

      Estes aspectos reforçam a necessidade de recorrer à imaginação – à arte, que também subjaz à interpretação do historiador – para encenar os factos históricos, ou as marcas deixadas por eles, sob a forma de um discurso poético:

Um largo sopro de imaginação fecundava para mitos idênticos a emotividade e a inteligência dos Portugueses, e por isso o sentimos estremecer na história como na poesia. À história, por vezes, falta apenas a rima e a regularidade do ritmo para ser poesia; por seu turno, a poesia épica, tão cultivada no tempo, de nada mais precisa, em páginas e páginas, do que prescindir de uma e outra, para ser a eloquente e imaginosa crónica da gesta heróica, em que a história essencialmente consistia. [9]

      Foi em termos da "força da imaginação" que os poetas reivindicaram para si, que acabaram condenados por faltarem à verdade histórica. Mas, curiosamente, com a "Nova História" – que se levanta contra o positivismo universitário – o historiador sofre agora, e por razões semelhantes, a acusação secular de falsidade de que o poeta se conseguiu ilibar após o Romantismo. Agora, o historiador é acusado de ilusionismo, de transformar em discurso sobre o real a fabricação de um texto a partir de restos documentais: a montagem ficcional dos fragmentos de que se compõe a história. Por outro lado, embora atravesse vários graus de sofisticação, o seu objectivo permanece o mesmo: manter "vivo" o passado para que possa servir de exemplo, positivo ou negativo, ao presente e ao futuro. A sua imparcialidade é, por mais esta razão, fictícia. Os impulsos éticos, ou a subordinação à forma de poder dominante, vêm a surgir, discretamente, por detrás do desejo de proporcionar ao seu tempo o ponto de referência necessário a uma comparação.

      Seja geral ou específica, eventual, serial ou quantitativa, a história tornou-se vulnerável. Chegou-se ao ponto de se poder insinuar (com Paul Veyne) que, uma vez que a história não existe, tudo é histórico. Recuando perante o risco de uma posição iconoclasta, Le Roy Ladurie pretende que a sua força e a sua fraqueza residem no facto de ela ser: «...uma mistura entre as Ciências Humanas, por um lado, e a literatura, o romance, as belas artes, o cinema, o teatro e a ópera por outro.» [10]. De ciência com pretensões à exactidão, à construção de leis universais, vem a revelar-se como uma arte de tratar os restos, uma arte de memória e encenação. Recupera, de certa forma, a sua qualidade inicial de lenda e mito: é a "legenda", no sentido original do termo, o "exemplum" que deve ser lido e que poderá ser seguido ou evitado; é o mito, em que não se distingue entre os seres, as acções ou os acontecimentos reais, e os imaginados ou desejados. Historiador e poeta aproximam-se.

            É neste sentido tão moderno – ou tão antigo – do termo que pode ser entendida a função da história e o modo como é utilizada na construção da poesia de Manuel da Veiga Tagarro: «... igoalmente perito na metrificação, como no estudo da Sagrada Escritura, Jurisprudência e Lição de Poetas e Historiadores de cujas autoridades estão cheyas as margens do livro que publicou,...» [11].

[] H.B.[]


[1] Maria Helena da Rocha Pereira, Helade, Faculdade de Letras de Universidade de Coimbra, Coimbra, 1982, p.127.

[2] Ibid., p.217.

[3] Tito Lívio, Historiarum ad Urbe Condita ­ Decadis Primae, p.2.

[4] Mª. Helena da Rocha Pereira, Op.Cit., p.294.

[5] João de Barros, Prólogo da 3ª. Década, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1963.

[6] Paul Veyne: «...la vérité est la plus variable des mesures. Elle n'est pas un invariant transhistorique, mais une oeuvre de l'imagination constituante.», Les Grecs Ont-Ils Cru à Leurs Mythes?, Seuil, Paris, 1983, p.127.

[7] «...la vérité est le nom que nous donnons à nos options, dont nous ne démordrions pas; si nous en démordions, nous les dirions décidément fausses, tant nous respectons la vérité;» Ibid., p.137.

[8] Thomas S. Kuhn, La Structure des Révolutions Scientifiques, Flammarion, Paris, 1983, p.30. E explicitara um pouco antes: «... quand les spécialistes ne peuvent ignorer plus longtemps des anomalies qui minent la tradition établie dans la pratique scientifique – alors commencent les investigations extraordinaires qui les conduisent finalement à un nouvel ensemble de convictions, une nouvelle base pour la pratique de la science. Les épisodes extraordinaires au cours desquels se modifient les convictions des spécialistes sont qualifiés dans cet essai de révolutions scientifiquesp.23. Estes «bouleversements» da tradição, manifestam-se a todos os níveis das ciências exactas ou humanas.

[9] Hernani Cidade, A Literatura Autonomista sob os Filipes, Lisboa, 1948, p.170.

[10] Jaques Le Goff (et al.), A Nova História, Edições 70, Lisboa, 1977, p.34.

[11] Barbosa Machado, Bibliotheca Lusitana, 1752, vol.III, p.401.

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