Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

  [I - O Autor e o Mecenas]

 

 1. Em Busca de Manuel da Veiga

         1.1  Tagarro como Topónimo

         1.2  Tagarro como apodo

         1.3  Veiga, a assinatura nobre

 


]  1.1 Tagarro como Topónimo  [

      De facto, difícil se torna, após tantos anos, e tantos cataclismos históricos e geográficos, conseguir uma informação fidedigna, mas algumas hipóteses se levantam. Em primeiro lugar, será de ter em conta o nome de Manuel da Veiga, a quem Nicolau António acrescenta o apelido de Tagarro, e ao qual se segue o epítome de Lusitano. Nas licenças concedidas a Laura de Anfriso, aparece nomeado como Manoel da Veiga Tagarro Português. Este facto leva à suspeita de que Tagarro não seja realmente um nome mas um “cognome”, associável a uma zona geográfica restrita uma aldeia ou vila, ou um rio inscrita noutra mais vasta um país, uma região ou província Portugal, ou um território dominado pela “Lusitânia”. Não é invulgar que os autores até seiscentos acrescentem ao seu nome próprio - ou substituam o apelido pelo topónimo - o nome, por vezes latinizado, do local que os viu nascer [1].

      Normalmente partilhado por todos os habitantes de um lugar, o topónimo é usado pelos humanistas tanto para prestigiar o nome próprio com o do local onde nasceram especialmente quando esse espaço se associa a feitos grandiosos ou à tradição da antiguidade latina como para aumentar a glória da sua terra natal, pelo esforço e contribuição pessoais, pelo prestígio individual.

       Porém, em Portugal apenas se encontrou uma aldeia com o nome de Sta. Maria de Tagarro, um lugar da Estremadura, a 3 kms. da freguesia de Alcoentre, no concelho de Azambuja [2]. Refere-se ainda a existência de uma Ermida da invocação de S. Pedro Apóstolo, construída no tempo em que o Cardeal-Rei D. Henrique era ainda Arcebispo (1560), e ampliada em 1596 por autorização de D. Miguel de Castro [3]. No entanto, e devido à referência encontrada no Vocabulário Português e Latino de Raphael Bluteau, é possível que o espaço pertença ao Portugal de além-mar da época. Sob a entrada «Tagarote» diz Bluteau: «Falcão Tagarote. Ave de Rapina, assim chamada de Tagarros, Ribeyra da Africa, junto da qual estão hüas penhas, donde crião estas aves.» e acrescenta mais adiante: «Segundo Cesar Ondin, no seu diccionário castelhano, & Portuguez, em Castella chamão Tagarotes a huns pobres cavalheyros, que frequentão as casas, em que achão de comer, & nellas fazem bem sua obrigação[4]. Poderia o rio que Bluteau refere pertencer a uma zona portuguesa das praças de Africa, e ser Manuel da Veiga de uma das famílias que ficou despojada com Alcácer-Quibir? Em favor desta possibilidade testemunha a preocupação textual com o resgate de Africa e o modo prudente e conhecedor como tal é aconselhado, e ainda o facto de Tagarro se associar à família de D. António de Noronha, companheiro de Camões, filho de D. Francisco, conde de Linhares e Governador de Tanger. Também a D. Margarida a que Teófilo se refere como amada de Tagarro pertence a esta família [5]. O ser demasiado velha para uma relação amorosa, não invalida a probabilidade de ter existido um ponto de contacto entre o poeta e os seus familiares. Como curiosidade, encontra-se em Lope de Vega [6] o uso do termo «tagarote» associado aos versos:

Pero el hacer tan infinitas sumas,

como sabéis, de fáciles virotes,

me ocupa el tiempo acomodando plumas.

 

Hállome bien en versos tagarotes

que vuelan por currales de comedias

a entretener ociosos marquesotes.

       Nos restantes dicionários consultados encontra-se sempre uma associação do termo com o Norte de Africa, e ainda com o Alentejo:

Tagarino - adj. rel. aos Tagarinos. Nome que se dava aos mouros nascidos entre os cristãos da Espanha e que falavam a língua castelhana. S.m., Indivíduo desta raça;

 

Tagarra - s.f. peixe da costa de Portugal; árvore da Guiné: seu distintivo consiste num pau de tagarra, em forma de antebraço” Ern. de Vasconc., Guiné, 97;

 

Tagarrão - s. m. Provinc. alent., Pote de barro, de grande­bojo.

Neste momento, uma outra hipótese ainda se poder  colocar, a de Manuel da Veiga, à semelhança do que acontece com alguns indivíduos originários do Brasil, ser mestiço ou ”pardo”. Recorde-se que não são apenas os judeus os perseguidos, já que os árabes são igualmente expulsos de Espanha por Filipe II em 1609.

[] H.B.[]


[1] Esta prática surge já em séculos anteriores e não se restringe a Portugal. Os exemplos abundam nas artes italianas: Angelo Ambrogini‚ conhecido como Angelo Poliziano pela latinização de Montepulciano; Parmigianino originário de Parma; Virgílio conhecido como o Mantuano, etc.. Em Portugal também se adopta esta estratégia, especialmente no caso de autores que publicam parte da sua obra em latim, ou seguiram estudos clássicos: Burgalês, Barros, Amato Lusitano, etc.

[2] Considerado como grande, e próximo da serra de Monte-Junto, sabe-se que já existia em 1280, porque constitui, com Alcoentre e Alcoentrinhos, uma dádiva de D. Dinis aos começos de Alcáçovas de Santarém.

[3] Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Diccionario Historico, Chorográphico, Biográphico..., João Romano Torres, Editores, vol.VII, tomo­2, Lisboa, 1915. Ainda neste Dicionário, o autor aparece com o nome de Manuel da Veiga Tagarra;

[4] Raphael Bluteau, Vocabulário Portuguez & Latino,... na Officina de Pascoal da Sylva, Lisboa, Tomo VIII, 1721, p.16. Sobre este assunto, e relativamente a D. Teodósio II de Bragança, diz António Caetano de Sousa: «Muitos fidalgos de Andaluzia acossados da Justiça das suas terras, achavão refugio na Corte de Villa-Viçosa; muitos da Estremadura com mulheres, filhos, e famílias, corrião a abrigar-se da sua grandeza. Os Portugueses tinhão de ordinário por sagrado asylo das suas desgraçasin História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Coimbra, Vol. IV, 1948 p.305.

[5] «Dona Margarida de Noronha, Prioressa da Annunciada de Lisboa, sobrinha desta senhora (D. Lianor de Noronha) filha do Conde de Linhares Dom Francisco de Noronha seu primo com irmão com seu grande engenho de que he dotada não somente se fez docta na lingua latina e em outras, mas na Portuguesa em que he muito eloquente escreveo muitos discursos de cousas espirituaes que a quem os lee moue a muita deuação. A mesma pinta tam excellentemente a oleo & illuminura que suas obras fazem espantar aos maiores officiais daquelle officio.// E a letra que faz latina, e outra de que alguns escriptos seus se mostrão como por cousa de marauilha, tem tanta perfeição que vi confessar a alguns mestres dos melhores que nesta cidade ha não na terem visto tal & que della alguns que de gentis escrivães se prezão podem tomar traslados para a imitarem: & della por ser viua não digo mais.» Duarte Nunes do Leão, Descripção do Reino de Portugal..., na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1785, p.356. É a irmã de António de Noronha.

[6] Lope de Vega, "A Don Diego Félix Quijada y Riquelme" (Epístola IV) in La Filomela (1621), apud. Obras Poéticas, Editorial Planeta, Barcelona, 1983, p.780, vv.10-15. Esta epístola será anterior a 1617 e, segundo a nota de José Manuel Blecua, o vocábulo é utilizado com o sentido de “bahari”, ave rapaz – ave de rapina.

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