Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

  [I - O Autor e o Mecenas]

 

 1. Em Busca de Manuel da Veiga

         1.1  Tagarro como Topónimo

         1.2  Tagarro como apodo

         1.3  Veiga, a assinatura nobre

 


]  1.3 Veiga, a assinatura nobre  [

      Parece mais provável, no entanto, que seja Veiga, um apelido nobre de Portugal, o verdadeiro nome do autor, especialmente porque no frontispício do seu livro ele aparece referenciado como apenas "Lecenceado Manoel da Veiga", e também porque utiliza sucessivamente o termo veiga como substantivo com o sentido de «várzea» [1] no interior dos seus poemas. As «veigas florida[2] «veiga de estrellas» [3], «As veigas mais floridas» [4], «As veigas, que mostravam ledo riso» [5], «...estas veigas ditosas» [6] etc. [7], poderão ser consideradas, e correctamente dentro da tradição bucólica, como uma "assinatura" de autor [8] reconhecida pelos próprios contemporâneos [9].

       Um outro grupo de hipóteses surge então a partir de Veiga. Desta família, os dois ramos principais são provenientes do Norte de Portugal. O primeiro, fundado por João Esteves da Veiga, do lugar de Veiga de Santa Maria, a 6 kms. de Braga, e o segundo, por Vasco Lourenço da Veiga, filho do Arcebispo de Braga, D. Lourenço, e ambas datam dos primórdios da nacionalidade. Será delas que descenderão os Veigas, de algum modo ligados à aristocracia, que se reportam ao século XVI. O escudo da primeira primeiro apresenta:

 

 

E o segundo ramo, apresenta como variante:

... no segundo quartel, em campo de prata, três flores de lis de azul em roquete, e assim os contrários. [12]

Em qualquer dos casos, o timbre utilizado é a águia púrpura, aberta. E a prata, em termos heráldicos, significa a humildade e riqueza.

      António da Veiga, natural de Vila Viçosa, cavaleiro da Ordem de Malta e secretário do Grão Mestre, foi poeta, músico e jurisconsulto. Sabe-se que vivia ainda em 1618, em Torres Vedras. Talvez da mesma família seja o Padre Manuel da Veiga, também ele natural de Vila Viçosa, onde nasceu em 1566, tendo entrado para a Companhia de Jesus em 1583. Este é o "Emmanuel da Veiga" que aparece referido, nessa mesma data, como professor de Filosofia em Coimbra [10] e depois, professor de gramática durante 6 anos, bem como "Rector" no Porto. As suas duas obras - referenciadas por Inocêncio - são: o Tratado da Vida, virtudes e doctrina admirável de Simão Gomes Português, Vulgarmente chamado Çapateiro Santo, editada em 1625, e 1629, e queimada em auto-da-fé de 14 de Junho  de 1647 [11], e Vida e Costumes de Francisco Suarez [12], o grande escolástico de Coimbra. Sobre aquele autor diz Inocêncio que não se dever  confundir com Tagarro pois os seus estilos são demasiado diferentes.

      Encontra-se outro, António Lopes da Veiga, nascido em Lisboa em 1586, sobrinho do Bispo de Otranto, que acompanha a Madrid, onde fica a residir mesmo após a Restauração, desempenhando o cargo de secretário do condestável de Castela. Autor de Sueños Políticos, é dado como vivo ainda em 1656. Aparece citado em La Filomena de Lope de Vega [13]:

de Antonio López, portugués, la vega

de su nombre encarece un verde jaspe,

que en arte y resplandor los ojos ciega

                                

        Mas de todos o mais curioso é Frei Francisco da Veiga, religioso da ordem de S. Francisco, que viveu no século XVII, e é dado como sobrinho de Tomé Pinheiro da Veiga. Autor de Perfeição da Vida Evangélica e de Fructos do Sangue de Cristo, conta-se um facto da sua vida que aparece referido num dos poemas de Tagarro (Livro VI, Ode 9,­vv.1-6):

Era por tal forma asceta que, retirando-se para um convento da Ilha da Madeira, sepultou-se numa cova por seis meses, comendo só hervas. Com isso apanhou uma doença... [14]

      No Índice das Chancelarias de D. Sebastião e de D. Henrique [15] aparece um Lic. Manuel da Veiga, moço da fazenda que entre 1563-1564 recebeu Carta de Alcaide do Mar de Diu, lugar prometido  por D. Sebastião logo que estivesse vago.

      A hipótese mais fascinante é, no entanto, a sugerida pelo Registo Geral de Testamentos [16]: Manuel da Veiga, filho de Maria da Veiga e de António Dias,  faz um testamento em 4 de Outubro de 1635 (aprovado em 9 do mesmo mês) que é aberto em 4 de Novembro de 1635. Neste documento, Manuel da Veiga revela-se como «solteiro, que nunca casei», que fora ordenado, morador na cidade de Lisboa, no Terreno dos Mártires, em casa da Mãe, «donde ora vivo doente em hua cama, em meu perfeito juizo...». Destina que o seu corpo seja enterrado no convento de S. Francisco de Lisboa, e determina como seus herdeiros uma afilhada, Clara da Veiga, filha de Luís Serras, e duas primas, Ana da Veiga, filha de Cosme Dias (irmão do pai?), e Ana da Veiga, filha de Margarida Gomes. O testamento é lavrado por Frei Alberto da Conceição, e tem como testemunhas Maria da Veiga, o Padre Alberto da Conceição, Ausonio (ou António) Dias, de Lisboa o próprio pai ? e Diogo de Seixas de Andrade. O treslado é do Dr. Luís Gomes do Basto.

      Tentando confirmar esta possibilidade, encontrou-se uma referência a um António Dias, regente da cadeira de "terça" na Universidade de Coimbra em 1537: «o bacharel António Dias, que depois foi licenciado e doutor, e nesse ano só leu até 11 de Maio por ser chamado a Lisboa por el-rei;» [17]. O rei a que se refere é D. João III. Não se detectou qualquer ligação de parentesco entre este António Dias e o mencionado no testamento acima [18].

      Um segundo António Dias é referido nas Mercês de D. Teodósio II como morador no arrabalde de Barcelinhos, tendo recebido um benefício em 12 de Junho de 1613 [19] que pode, pela maior proximidade das datas, ser o do documento em questão.

      Todas estas pistas, embora enriquecedoras e estimulantes, não permitem chegar a qualquer conclusão positiva. Registam-se, no entanto, por duas razões: primeiro porque, de algum modo, e pela negativa, eliminam algumas possibilidades que obscurecem mais ainda a lenda biográfica; depois, porque a ausência de factos históricos ou de documentos comprovativos atesta como lendária a biografia vulgarizada de Manuel da Veiga. Portanto, estas informações permitem dizer quem não é Manuel da Veiga Tagarro.

            Parece possível então afirmar que os dados correntes sobre a biografia deste autor são, pura e simplesmente, suposições extrapoladas a partir da sua obra. Esta actuação não é de todo condenável porque, em Laura de Anfriso, se detectam afirmações de carácter histórico-biográfico que ultrapassam o estatuto de autor implicado. Todavia, essa recolha deverá ser feita de modo cuidadoso e privilegiar a verosimilhança, devendo evitar a confusão entre acontecimentos reais e elementos claramente metafóricos.

[] H.B.[]


[1] Planície cultivada e fértil. Prov. Minho. Terra de cultura de centeio ou de milho serõdio. (Do Cast. Vega).

[2] E.I-18 vv.3.

[3] E.I-28vv.11.

[4] E.II-4 vv.1.

[5] E.II-34vv.1.

[6] E.IV-1vv.2.

[7] «Quando he a Veiga fria», L.I - O.6-6vv.1; «e as veigas já se ornão», L.I-O.7-2vv.3; «chora a Veiga, e a fonte», L.I-O.9-3vv.3, e O.7vv.2; «Tenha embora esperança/ A fonte o campo, o bosque, a veiga e o prado...»; «veiga formosa», L.III-O.8-5vv.3; «veigas de prata», L.IV-O.1-1vv.2; «vossas veigas», L.IV-O.4-5vv. 2; «Vós das veigas belleza», L.VI-O.5-19vv.1.

[8] Esta tradição é instaurada por Hesíodo em Os Trabalhos e Os dias, vv.25-26. O poeta apresenta-se com identidade própria, auto-nomeia-se no interior da sua obra. Este processo, apelidado de «sphragis», vai ser divulgado por Arquíloco, e utilizado pelos autores posteriores entre os quais se conta Teócrito. in C. A. Trypanis, Greek­Poetry – from Homer to Seferis, Faber & Faber, London & ­Boston, 1981, p. 60.

[9] Vidé poemas de louvor no prólogo e epílogo.

[10] Friedrich Stegmuller, Filosofia e Teologia nas Universidades de Coimbra e Évora no século XVI, Instituto de Estudos ­Filológicos da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1959, p.89.

[11] B.N.L. Res.4968P.

[12] B.N.L. H.G.28665 5.

[13] Lope de Vega, La Filomena, Op. Cit., p.833, vv.331-3.

[14] Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Op. Cit.

[15] Ofícios e Padrões, ano 64-65, liv.13, fls.64v. T.T. 

[16] Livro 11, nº 32, Fls.­66 a 67v. - T.T.

[17] M. Gonçalves Cerejeira, O Renascimento em Portugal – I Clenardo e a Sociedade Portuguesa, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra, 1974, vol.I, p.106.

[18] Em Francisco de Andrada, Crónica de D. João III, Lello & Irmãos, Porto, 1976; e Frei Luis de Sousa, Anais de D. João III, Livraria Sá da Costa Editora, ­Lisboa, 1951.

[19] A. Luis Gomes, Op.Cit., mercês 135/19v. p.93.

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