Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

 ] III – Bucolismo e Intertextualidade  [

      Laura de Anfriso é composto por éclogas e odes, com pastores por personagens, insere-se claramente no género bucólico.

      Sem entrar em polémicas sobre a complexa relação entre a Arte e a Vida, pode afirmar-se que, para além de todas as divergências próprias às suas perspectivas particulares, os estudiosos daquele género literário consultados estão de acordo em considerar, como sua característica primeira, uma relação mais ou menos mediatizada com o real. Esta preocupação com a vida e o mundo tem levado os críticos a uma leitura evidentemente biográfica dos textos:

É próprio do género bucólico que os autores falem de si mesmos nessas composições e nelas figurem com o nome de uma ou outra personagem, em cuja acção revivem situações da sua existência real, em cujas palavras exprimem sentimentos seus; que nos revelem experimentados alvoroços e padecidas amarguras de amor, quer confessando-se directamente, quer deixando-se entrever sob os traços, através os gestos e falas deste ou daquele pastor enamorado, deste ou daquele zagal queixoso.

      Reconhecer-se-á, pois, que – para a compreensão e explicação duma obra pertencente a tal género – será indispensável o conhecimento da vida e maneira de ser do seu autor. [1]

A tentação biográfica poderá ter sido desencadeada e alimentada pelos estudos sobre a vida e obra de Virgilio, cuja prática corrobora, ainda, interpretações de carácter histórico-social:

     É forçoso que se reconheça, sob a clara aparência das Bucólicas, toda uma actualidade que nos é velada como por um bruma, mas cuja imprecisão pareceria um encanto por acréscimo aos contemporâneos de Virgílio.

     Evitemos, no entanto, de procurar em todo o lado, sistematicamente... e em vão, alegorias e mascaradas romanas. Com este jogo de identificações e de chaves, os escoliastas gastaram tesouros de engenhosidade ingénua. Nos nossos dias, um idêntico esforço de erudição foi retomado; mas nesta via as tentativas mais ousadas e as mais subtis só podem conduzir a hipóteses frágeis. [2]

      Com a emergência dos modernos paradigmas e abordagens do texto literário, a interpretação puramente biográfica tornou-se obsoleta, mas não é possível ignorar a componente sociológica, já que a preocupação com o real, em maior ou menor grau, está  sempre claramente explícita. Em última instância, isto permite classificar o género, seja como pertencendo à literatura de intervenção (pela sua qualidade de critica social), seja como mera ficção escapista. Contra posições extremas insurge-se Helen Cooper:

Muito raramente é escapista - é uma arte que está profundamente preocupada com assuntos sociais, morais ou religiosos; mas acima de tudo, é uma arte, pelo que as suas preocupações mais sérias são contrabalançadas pela imaginação dos artistas e pela qualidade da sua poesia. [3]

            Assim, para além de preencher de imediato uma relação de arquitextualidade, é a própria estrutura formal histórica do bucolismo com as suas regras estritas que obriga a uma leitura forçosamente intertextual não apenas relativamente à tradição pastoril, mas em primeiro lugar com a História e as práticas de escrita do período a que se reporta o texto. A problemática histórica irá constituir o cerne do ponto quarto deste trabalho. Neste momento tentar-se-á justificar a questão intertextual, tanto a nível das interferências citacionais quanto das formas usadas para o que será necessário desenvolver uma análise descritiva da obra.

[] H.B.[]


[1] Manuel da Silva Gaio, Bucolismo I - Bernardim Ribeiro, Imprensa da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1932, p. xii.

[2] E. de Saint-Dennis: «Il nous faut bien reconnaitre, sous la claire apparence extérieure des Bucoliques, toute une actualité voilée pour nous comme par une brume, mais dont l'imprécision semblait une grace de plus aux contemporains de Virgilie.// Gardons-nous cependant de chercher partout, systématiquement... et vainement, allégorie et mascarade romaine. A ce jeu d'identifications et de clefs, les scoliastes ont dépensé des trésors d'ingéniosité naïve. De nos jours, um même effort d'érudition a été repris; mais dans cette voie les tentatives les plus hardies et les plus subtiles ne peuvent conduire qu'à des hypothèses fragilesin Virgile – Bucoliques, Soc. d'Édition "Les Belles-Lettres", Paris, 1960, p.13.

[3] Helen Cooper: «It is very seldom escapist - it is an art that is deeply concerned with social, moral or religious matters; but above all it is an art, so that its serious concerns are offset by the artists imagination and by the quality of its poetry.» in Pastoral - Medieval into­ Renaissance, D.S. Brewer, Rowman and Littlefield, Totowa, N. Jersey, 1977, p.1.