Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 1. A pastoral renascentista

    1.2  Os pastores e o cenário bucólico

 


]  1. A pastoral renascentista [ 

      A voga do género pastoril tem os seus inícios, de facto, na primeira metade do século XVI não se tendo em conta a forma das pastorelas, nem os poemas em que as personagens são pastores, tanto da tradição romancística como trovadoresca [1].

      Deste modo, quando se aborda o bucolismo, terá de recorrer-se aos autores renascentistas, que são usados como ponto de referência. Ainda, e por sistema, nos estudos sobre a pastoral do Renascimento e seus seguidores imediatos, a tendência é a de saltar de Virgílio e Teócrito para Sannazaro, e abordar os textos enquanto uma "corrupção" do modelo clássico, esquecendo-se a tradição medieval, não tendo em conta que: «O Renascimento não constitui, com efeito, uma ruptura em relação aos modelos tradicionais, mas antes uma busca de conciliação entre esses modelos e a escola italianizante[2].

         Aquela ignorância poder  dar origem a leituras erróneas, já que:

A Patoral, talvez mais do que qualquer outro modo ou forma literários, é uma questão de tradição, de autoridade e modelo, e de influência, e nenhuma obra pode ser compreendida por si só. As fundações da pastoral do Renascimento encontram-se nos séculos imediatamente anteriores, e não na Roma antiga. [3]

        É a tradição medieval mais próxima que, associada ao interesse pela Antiguidade Clássica, torna mais rico este género onde tudo se usa e nada se esquece. Nestas condições, revela-se como de maior peso a participação na totalidade de um processo de pensamento englobante (o que subjaz à tradição), valorizando-se a qualidade – e não a quantidade – do estímulo recebido.

      Para Helen Cooper [4] como para William Empson [5] o termo pastoral tem, no Renascimento, o sentido específico de tornar simples o complexo, e a sua existência justifica-se por uma relação de referência directa com o real: «É na relação metafórica, ou irónica entre o mundo criado pelo poeta e o mundo real que a pastoral existe.» [6]

          A preferência por este género revela-se como manifestação de um anseio de criar uma alternativa ao real, ao mesmo tempo que se adopta uma perspectiva crítica perante a sociedade, não sendo, portanto, apenas uma fuga para um espaço idílico. Assim, a pastoral é, primeiro que tudo, um molde de pensamento, uma filosofia, que se explicita em formas específicas (não confináveis apenas à écloga):

A Pastoral, no seu sentido mais completo, é qualquer coisa mais do que um género literário. É uma necessidade de reformar a vida. Não se trata apenas de descrever a existência dos pastores e dos seus prazeres inocentes, mas de a imitar, se não na realidade, pelo menos em sonho. O ideal bucólico será o remédio que libertará os espíritos dos constrangimentos do amor cortês, dos desenxabidos da alegoria, e também da realidade terra-a-terra. [7]

      No caso dos estudos sobre Tagarro, a tendência foi para ter em conta apenas a tradição clássica, tanto mais que Virgílio e Teócrito, para além de Sannazaro, são glosados, invocados em nota, directamente mencionados. Mas a tradição virgiliana é das mais vivas por toda a Idade Média, e é ela que alimenta a evolução medieval da écloga latina. Virgílio participa, então, das duas vertentes tradicionais, associando-se, igualmente, a uma segunda linha de tradição, a que é constituída pela herança "independente" da pastoral vernacular. Esta segunda via manifesta-se em toda a Europa nela se insere Petrarca e  entre nós tem os seus representantes iniciais em Bernardim Ribeiro, Cristóvão Falcão [8] e também Gil Vicente, confessadamente inspirado por Juan del Encina [9].

      A importância de Virgílio mostra-se crucial e simultaneamente complexa. As Bucólicas chegam ao Renascimento filtradas por séculos de interpretações e glosas que a tendência para o racionalismo, no período, não consegue, de todo, extinguir. A tradição medieval acrescenta aos textos sentidos impossíveis de ignorar, estabelecendo, deste modo, regras não escritas mas que estariam na mente dos seus utilizadores e leitores. Como exemplo e a partir das "Bucólicas I"  e IV, as mais conhecidas encontra-se o encorajar do uso contínuo da écloga como panegírico político, o facto de esta poder ser lida como manifestação auto-biográfica, e ainda o poder retratar problemas de carácter político social. O potencial bucólico para apresentar uma Idade de Ouro – aspecto que será igualmente discutido no próximo capitulo – e é usado como processo irónico de descrição dos mais variados sofrimentos humanos, individuais ou colectivos. Os temas de Virgílio, tanto panegíricos como religiosos a "Écloga IV"‚ aceite como uma profecia do nascimento de Cristo pelos Padres da Igreja associam-se a um cenário mitológico tornado familiar pelas Metamorfoses de Ovídio (também ele vivo através da Idade­Média), está presente na tradição bucólica portuguesa, e em Tagarro. A dimensão e quantidade destas influências generalizadas são fáceis de provar. A partir da interpretação cristianizada da "Écloga IV" de Virgílio que se desencadeia a voga de éclogas tendo por tema a Natividade, especialmente a anunciação aos pastores, estabelecendo-se, por aqui, uma fusão entre as tradições clássica e medieval. Recorde-se que Gil Vicente inicia a sua actividade com o Monólogo do Vaqueiro que obedece àquela temática.

      Da herança clássica chega ao Renascimento a ideia que a écloga corresponde a uma experimentação formal, associada ao modo heróico, ao panegírico de príncipes e mecenas. Os seus cultores reúnem-se em academias, usam pseudónimos, escrevem para um senhor que é identificado com o David bíblico rei, poeta, pastor.

      Da tradição vernacular resulta o conflito entre forças desiguais que provocaram uma reestruturação da écloga e estão igualmente presentes em Manuel da Veiga, nomeadamente, a influência da teoria estilística imposta por Sérvio, que defende o estilo humilde para a pastoral, e o domínio dos conteúdos pelo pensamento cristão o valorizar da metáfora de Cristo (Papa/Bispo) como pastor das suas ovelhas que desencadeia a tendência para uma leitura alegórica ou mesmo mística.

            Às heranças da antiguidade vêm associar-se o conhecimento e descobertas do seu presente, nomeadamente Teócrito cuja recuperação veio a ter lugar nos séculos XVI-XVII.

[] H.B.[]


[1] Teófilo Braga desenvolve a ligação entre estas diversas manifestações pastoris, atribuindo a Bernardim Ribeiro a primazia na personificação sob a alegoria de um pastor e na reconstrução da Écloga nova – misto de modelo de importação italiana com a forma popular portuguesa: «Entre esta dupla influência, a tradicional e erudita, Bernardim Ribeiro para exprimir a verdade da sua alma achou a espontaneidade característica do octosyllabo popular, e no diálogo pastoril. A aproximação das fontes tradicionaes e populares dera-lhe a superioridade sobre os outros poetas, e como bem diz Bouterweck, um carácter nacional ao bucolismo.» in Bernardim Ribeiro e o Bucolismo, Livraria Chardon, Porto, 1897, p.70.

[2] Mª. Leonor C. Buescu, "Sobre o Renascimento Português: Reflexões e Notas" in Ensaios de Literatura Portuguesa, Editorial Presença, Lisboa, 1985, p.14.

[3] Helen Cooper: «Pastoral, perhaps more than any other mode or form of literature, is a matter of tradition, of authority and model and influence, and no work can be understood in isolation. The foundations of Renaissance pastoral were in the centuries immediately preceding, not in ancient Rome», Op. Cit., p.1.

[4] Ibid., p.6.

[5] William Empson, Some Versions of Pastoral, Penguin, Harmondsworth, 1966, p.25.

[6] William Empson: «It is in the metaphorical or ironic relationship beetween the world created by the poet and the real world that the pastoral exists.», Ibid., p.2.

[7] J.Huizinga: «La pastorale, dans son sens le plus complet, est quelque chose de plus qu'un genre littéraire. C'est un besoin de réformer la vie. Il ne s'agit pas seulement de décrire l'éxistence des bergers et de ses plaisirs innocents, mais de l'imiter, sinon en réalité, du moins en rêve. L'idéal bucolique será le remède qui délivrera les esprits de la contrainte de l'amour courtois, des fadeurs de l'allégorie, et aussi de la réalité terre à terre.» in L'Automne du Moyen Age, Payot, Paris, 1980, p.136.

[8] Segundo Teófilo Braga: «O género pastoril do século XV constitue o caracter principal da eschola siciliana, assim chamada por que os poetas toscanos crearam o "dolce stil nuovo" sobre as fórmas rudimentares dos trovadores da corte de Frederico II. O fundo tradicional da poesia siciliana constitue esse typo lyrico da Pastorella occidental e das Serranillas portuguezas, que chegou a penetrar na cõrte de D. Diniz, e de que os nossos Cancioneiros trobadorescos apresentam tão numerosos documentos. Bernardim Ribeiro e Christóvam Falcão conheceram esta forma tradicional das Pastorellas ou Serranillas. Apezar de apreciar o gosto siciliano imitado nas Pastoraes de Tansillo e nas varias imitações dos Idyllios de Theocrito por Pontano e Sannazaro, postas em moda pelo gosto erudito da Renascença, Bernardim Ribeiro preferiu a fórma popular e tradicional para as suas Eclogas, e a fórma culta italiana para a Novella pastoral da Menina e Moça.», in Op. Cit., p.69.

[9] Teófilo Braga: «Apresenta Gil Vicente nos seus Autos a fórma pastoril; mas não é o espírito do bucolismo antigo que o incita, preferindo o inspirar-se dos elementos tradicionaes, apropriando-se do Villancico popular, ainda àquelle tempo usado na lithurgia catholica. Garcia de Resende referindo-se à graça dos seus Autos, separa-os do novo gosto bucolico, dizendo na Miscellanea: ”Posto que Juan del Encina/ O pastoril  começou...», Ibid., p. 68.

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