Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

  2. Graus de intertextualidade

 


]  2. Graus de intertextualidade [ 

      Pelo que atrás ficou dito, pode desde já considerar-se que Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro se institui como um espaço de intercâmbio discursivo onde se cruzam e transformam outras vozes, um espaço de intertextualidade assumida, usada e levada ao seu extremo, que não apenas promove «a absorção e transformação mais ou menos radical de múltiplos textos» [1] que se projectam na sua superfície, considerando, pois, toda a literatura enquanto «um grande texto», como ainda ultrapassando as mais ousadas expectativas de uma Kristeva [2] alarga essa noção de «grande texto» às várias artes do seu tempo, e à história política e também filosófica e religiosa de um país.

      Aqui se encontram todos os graus e tipos de intertextualidade. Exoliterária, pelas suas referências à escultura, pintura e música; endoliterária, hetero-autoral e externa, no uso da literatura, não apenas da antiguidade, mas igualmente de contemporâneos; homo-autoral e interna, nas citações entre poemas, repetições e glosas.

      São também facilmente detectáveis os cinco tipos de relações transtextuais, tal como definido por Genette [3]. A citação, enquanto «presença efectiva de um texto noutro»; as notas marginais, enquanto marca de uma relação paratextual; a «metatextualidade» enquanto relação de comentário; a já referida «arquitextualidade» pela autodeterminação do género; e ainda uma «hipertextualidade» na medida em que a ligação entre texto e hipotexto se efectua tanto por derivação como por transformação.

      Para Laurent Jenny não há dúvidas sobre o facto intertextual se a obra possuir uma forte coloração de metalinguagem, neste caso evidente, tanto devido às notas marginais, quanto à permanência do conceito de imitação renascentista:

...o dogma da imitação, próprio do Renascimento, é também um convite a uma leitura dupla dos textos e à decifração da sua relação intertextual com o modelo antigo. Os modos de leitura de cada época estão, portanto, igualmente inscritos nos respectivos modos de escrita. [4]

      Pode desde já afirmar-se que em Laura de Anfriso se assiste ao exacerbar do clássico conceito de imitação:

      Os problemas da representação, em relação com a mimese aristotélica, enquanto projecto do empreendimento literário, são resolvidos em função do princípio central do Humanismo, ou seja da Imitatio. Esta impõe, indiscutivelmente, o princípio da autoridade dos clássicos (entendendo como seus pares os italianos Bembo, Sannazzaro e os castelhanos Boscán, Garcilaso) e esse princípio que poderia ter alcançado um carácter compulsório, se não tivesse actuado também como contraponto, um projecto de originalidade, vai reger a produção literária quinhentista em Portugal. [5]

E Tagarro, na continuidade da prática de quinhentos, institui como seu modelo, não apenas toda a tradição greco-latina, como também a judaica e cristã que, na sua obra, quase atingem a paródia no sentido aristotélico do termo («paros»=ao longo de;«ode»=canto): um modificar e refazer de toda a cultura. Antecipa ainda uma prática que irá ser "institucionalizada" em 1659 por Lorenço Gracián no seu "Discurso XXXIII - De los Conceptos por Acomodacion de Verso, Texto o Autoridad":

Requiere esta agudeza tan grande erudicion como sutileza. La erudicion para tener copia de lugares, y de Textos, la sutileza para ajustarlos.[...] No solamente una palabra, pero toda una parte de la Autoridad se puede alterar. [...] Las autoridades que se acomodan umas vezes son sagradas, y deven se ajustar a cosas graves y decentes. [...] Otras vezes son de las letras humanas, y estas no importa que se acomoden a sujetos humildes. [...] Ha de ser celebre la Autoridad e muy sabida, para que ténga más gracia.

Fundase este conceptuoso artificio, no solo en la conveniencia, sino en la desconveniencia de la autoridad cõ la materia. [6]

Este processo citacional é, assim, exaltação dos antigos e dos contemporâneos [7], mas também subversão:

Sendo o esquecimento, a neutralização de um discurso, impossíveis, mais vale trocar-lhe os pólos ideológicos. Ou então reificá-lo, torná-lo objecto de metalinguagem Abre-se então o campo duma palavra, nova, nascida das brechas do velho discurso, e solidária daquele. Quer queiram quer não, esses velhos discursos injectam toda a sua força de estereótipos na palavra que os contradiz, dinamizam-na. A intertextualidade fá-los assim financiar a sua própria subversão [8].

São então os clássicos, particularmente os latinos, com Virgílio à cabeça, que se prestam a esta subversão que, não os destruindo, acaba por garantir a sua vitalidade. A apropriação do passado neste processo de absorção dos antigos, ou da sua citação pelo intertexto, funciona totalmente no momento em que este se sobrepõe ao sub-texto nas memórias das gentes, quando o seu autor se torna de facto «Auctoris» – produtor de autoridade. Talvez que esta técnica justifique a perda de interesse esporádica a que ficam sujeitas, o esquecimento a que são votadas determinadas obras – como Laura de Anfriso. O leitor comum (que na época pertenceria a uma elite) – a memória colectiva – não possui actualmente a maioria dos referentes que lhe poderão permitir um fácil entendimento dos poemas. Estes tornam-se obscuros, hermetizam-se. As notas marginais podem então, também e ainda, ser encaradas como uma antecipação da obscuridade e um meio de obviar ao esquecimento – que, nesta hipótese, teria sido "previsto" pelo poeta. Recorde-se que a imortalidade pela escrita é um dos topos herdados da antiguidade clássica que com maior assiduidade se encontra nos textos de carácter bucólico [9]. No entanto, em paralelo, parece estar igualmente presente, ou ter emergido, a consciência da ameaça que pode constituir o esquecimento. Como exemplo, refere-se a descrição da estátua da memória cujo templo tem por nome «incerto» feita por Eloy de Sá Sotto Maior em Ribeiras do Mondego:

Estão da outra banda todos aquelles, que por letras, fizerão immortal seu nome: mas porque estes são quasi infinitos, & de mim vos quizera dizer quem sou, os deixaremos. A mim chamão Memória; quam antiga sou mostro no rosto, & a elle pera tras: porque não vejo mais que o passado, & pera mostrar que delle viuo, o que ao presente visto, não mostra mais q o que foy, que porq quasi se não sabe, as letras o declarão. Nas azas mostro a ligeireza, cã que voo, & he ella tall, que não ha aue, por velóz que seja, que se lhe possa comparar. Tenho as chaues desta porta, q guardo ha muytos annos, porque sei sustentar este perigo. O mayor em que me vejo, he com hum grande enemigo, que me persegue, & tem sua morada por bayxo deste Templo, chamão lhe Esquecimento: he hum velho cego, q dorme de contino em hua coua, aonde nunca entrou a luz do dia. [...] quem pello esquecimento me perde a mim de vista, ve morta a honra, & a fama sempre viua. [10]

Por tal, o assinalar de citações procurará restituir a funcionalidade, reactivar a vivência dos materiais do passado na sua relação com o público é esse o primeiro trabalho dos humanistas: o recuperar dos textos perdidos da antiguidade, o recapitular dos legados culturais do passado.

            Poderia dizer-se que, por este motivo, será a hipertextualidade abundante e declarada, e dele decorrem dois aspectos diferentes. Por um lado, o autor exibe as suas leituras, seja com intenção didáctica, seja para provar o dinamismo e as possibilidades criativas do modelo. Por outro, manifesta o seu desejo de ser lido, de ser entendido de que o seu «segredo» seja revelado: «A partir do momento em que se perde o segredo da adequação entre um sujeito e a sua linguagem, só a intertextualidade vai permitir o reencontro de uma verdade compósita.» [11]. Daqui resulta um acto ditatorial de condicionamento da leitura pelo autor, e uma limitação das decisões interpretativas que ficam, em primeiro lugar, sujeitas ao tempo histórico da escrita.

[] H.B.[]


[1] Julia Kristeva, Semeiotiqué. Recherches pour une Sémanalyse, Paris, Seuil, 1969, p.60.

[2] Julia Kristeva: «Le terme d'inter-textualité désigne cette transposition d'un (ou de plusieurs) système(s) de signes en un autre; mais que puisque ce terme a été souvent entendu dans le sens banal de "critique des sources" d'un texte, nous lui préférons celui de "transposition", qui a l'avantage de préciser que le passage d'un système signifiant à un autre exige une nouvelle articulation du thétique la positionnalité énonciative et dénotative.» in La Révolution du Langage Poétique, Paris, Seuil, 1969, p.60.

[3] Gérard Genette, Palimpsestes, Seuil, Paris, 1982, p.7-14.

[4] Laurent Jenny, "A Estratégia da forma" in Intertextualidades, Almedina, Coimbra, 1979, p.7.

[5] Mª. Leonor C. Buescu "Sobre o Renascimento Português...", Op. Cit., p.23.

[6] Lorenço Gracián, Arte de Ingenio, Tratado de la Agudeza..., Off. Craesbeckiana, Lisboa, 1659, fol.67-69.

[7] Como acontece, por exemplo, em Fernão Alvares do Oriente, que glosa e expande "Horas breves do meu contentamento", Op. Cit., pp.146-48; ou Eloy de Sá ­Sotto Maior, que igualmente homenageia Diogo Bernardes, Op.Cit., p. 34.

[8] Laurent Jenny, Op. Cit., p. 45.

[9] Mª. Leonor C. Buescu: «Assim, qual a via para atingir uma "imortalidade"? São os poetas antigos que respondem e a resposta é retomada pelos poetas portugueses a partir do século XVI: a glória da criação literária é o garante da imortalidade. Com efeito, na Ode XXX do Livro III, Horácio identifica a glória do poeta com a única glória perdurável, ela própria condição da glória dos heróis. Trata-se de um tópico comum a muitos poetas e escritores latinos, já  por sua vez herdado do pensamento gregoin Aspectos da Herança Clássica..., p.46.

[10] Eloy de Sá Sotto Maior, Ribeiras do Mondego, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1932, p.71-v.,

[11] Laurent Jenny, Op.Cit., p.48.

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