Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

  [I - O Autor e o Mecenas]

 

   2. O Narrador-Autor

       2.1  Nas dedicatórias

       2.2  Nos seus poemas

 


]  2.1 Nas Dedicatórias [

      De acordo com a prática comum na época, os poemas laudatórios aparecem tanto no início da obra, em forma de apresentação, como no seu final, funcionando aí como critica ou um comentário sobre a escrita.

Começando pelo prólogo, o primeiro poema é um epigrama (6 versos) em latim, assinado pelo "Licenciatus Sebastianus Lupus de Almeida [1] Auctoris amicissimus", em que o louva como «cisne» «peregrino». Sobre o significado do primeiro vocábulo, diz Fernão Álvares do Oriente:

Saberás, Jacinto amigo, que no cisne, ave consagrada ao nosso Apolo, significaram os Antigos a música sonora; e porque em tudo com ela se parece a poesia, chamaram também aos poetas cisnes, nome que ainda hoje, apesar do tempo e da enveja, conservam com justo título. O fundamento deste símbolo creio eu que foi a natural propriedade do cisne: o qual consumido da velhice, canta com maior suavidade, e sempre melhor...» [2]

quando a «peregrino» [3], para além das conotações religiosas medievais, tem o sentido de "estrangeiro", trazendo consigo a ideia do deambular, mas também de um estatuto social específico, o de não ser um "cidadão romano", mas antes "cidadão do mundo" que está acima das leis particulares a um determinado espaço político, face ao qual mantém a sua autonomia.

Seguem-se-lhe quatro sonetos, respectivamente da autoria do atrás referido António Mendes da Veiga [4], apelidando-o de «novo Petrarca»; de Luis de Mendonça [5] que, nomeando-o «Celio soberano», o equipara a «hum Anjo humano», não só pela voz e pelos ensinamentos, como também pelo canto; de Luis de Medrano de Almeida [6], que o considera aclamado e coroado pelo próprio Apolo; de Belchior Rodrigues de Mattos [7], em castelhano, onde Tagarro aparece metaforicamente referido sob a imagem de «la vega florida», sendo os trágicos sucessos das suas memorias eternizadas por Laura/Filomela. A estes segue-se uma Ode pelo Licenciado Manoel Pires de Almeida [8] em que a exaltação do autor se mistura com insinuações nacionalistas e patrióticas.

      No que respeita aos dois poemas finais, de louvor, o primeiro é constituído por umas décimas do Licenciado Francisco Mendes da Costa [9] e uma Canção escrita  pelo Licenciado Paulo Duarte [10] ambas em castelhano. As décimas começam de forma curiosa:

   DVlce Pastor disfraçado

Que ati mismo eres Felippe

Pues desprecias de Aganippe

Rabel, y canto acordado.

(vv.1-4)

sugerindo uma certa independência e autonomia da escrita de Manuel da Veiga (e também a sua qualidade "filípica", de auto-censura?) por desprezo dos modelos e linguagem castelhanos (seguidos em Fuente de Aganipe y Rimas Várias de Manuel Faria e Sousa?). Curiosa também é a referência feita na última estrofe:

   Mas ah que tienes por vicio

Los cantos tan excellentes;

Que tus partes eminentes

Te lleuan a otro officio,

De Aguilas el exerc¡cio

Es el que más te enamora

(vv.21-26)

insinuando que a escrita não é a actividade principal a que se dedica Manuel da Veiga, que o seu ofício seria outro. Considerando a simbologia da  águia, encontra-se:

A águia, capaz de se elevar acima das nuvens e de fixar o sol, é universalmente considerada como um símbolo ao mesmo tempo celeste e solar, podendo os dois aspectos confundir-se. Rainha dos pássaros, coroa-lhes o simbolismo geral, que é o dos anjos, dos estados espirituais superiores. (...) a trafição bíblica dá muitas vezes aos anjos a forma da águia (Ezequiel, 1,10; Apocalipse 4,7-8). [11]

Símbolo de contemplação, e do Verbo, paternal e profético, a águia está associada ao anjo, também um dos epítetos com que Manuel da Veiga é metaforicamente apelidado. Os anjos são essencialmente os intermediários entre Deus e os homens desempenhando, pois, uma função sacerdotal ou religiosa. Por outro lado, a águia é também a figura principal do escudo dos  dois ramos dos Veigas. O primeiro apresenta:

Escudo esquartelado: no 1º quartel, de púrpura,  guia de ouro, aberta, armada de prata dos Veigas; no 2º e 3º de prata, a cruz de S. Jorge (de púrpura) cantonada de uma flor-de-lis, azul; no 4º, de prata, 3 flores-de-lis azuis, em roquete.

E o segundo ramo, apresenta como variante:

 

Em qualquer dos casos, o timbre utilizado é a águia, ouro ou púrpura, aberta.

            Por aqui se reforça a possibilidade de Manuel da Veiga ser de origem nobre o que adiante se atestará pela sua vasta erudição e por tal melhor se justifica o facto de ser um poeta de corte, grande conhecedor dos seus meandros.

[] H.B.[]


[1] Deste autor não foi possível encontrar qualquer referência em Inocêncio, Barbosa Machado, e Leitura de Bacharéis.

[2] Fernão Álvares do Oriente in Lusitânia Transformada, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa,­ 1985, p.119.

[3] «Peregrini, meaning the citizens of any State other than Rome, implied membership of a definite community...” in The Oxford Classical Dictionary.

[4] Também ele poeta, deixou manuscrito Primavera del Alma que, segundo Barbosa Machado, consiste em versos sagrados (Lic. para imprimir de Francisco de Castro, de 16 de Abril de 1624, e censura de Fr. Tomás de Sto. Domingos – o mesmo que licencia a Laura de Anfriso), dedicados a D. Miguel de Noronha, conde de Linhares e Governador de Tânger, uma das figuras ligadas a Tagarro.

[5] Encontram-se dois Luis de Mendonça. O primeiro, Ludovicus de Mendoza é o referido por Nicolau António, que diz: «Cistercensis coenobii de Spina Monachus, Philipo II. Hispaniorum Regi nuncupavit sculpique Reggiis expensis fecit: Summam Totius Teologiae moralis septem arboris comprehensam. Matriti anno 1598 Reliquit in schedis quae asservantur in ejusdem monasterii bibliotheca: Vitas Sanctorum per ordinem mensium in proprios eorum dies distributas: tomis sex. Epistolam symbolicis caracteribus & ingenium plenam, ad Philippum III. Adhuc Principem. Sermonem, quo scripta sunt, ignorare nos haud pudet, qui nec ab illustratoribus domesticarum rerum Henriquezio & Vischio haurire potuimus. Dessecit circa annum Domini MDCXII», in (vol. II, p. 50). Se for este Mendonça, e a informação sobre a data da sua morte estiver correcta – 1612 –, surge a possibilidade de, pelo menos parte de Laura de Anfriso ter circulado em manuscrito pela primeira década do século XVII. O segundo Mendonça é um poeta castelhano, autor de Eloquencia Española en Arte  (B.N.Madrid, R-15.007), editado em Toledo, em 1604, in José Simon Diaz, Bibliografia de La Litteratura Hispânica, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto "Miguel Cervantes" de Filologia Hispânica, Madrid, 1984, Tomo XIV, p. 5214.

[6] Não foi possível encontrar qualquer referência a este autor.

[7] Sobre este autor algumas questões se levantam. Aparece uma referência na Leitura de Bacharéis (M.4, nº44) datada de 1629; Também uma outra se encontrou no Indice das Chancellarias de D. Sebastião e D. Henrique – Alf. dos 46 Livros. Verbete de 93º. v. de juro – Livro 20, fls. 155 (Mercês desde 1557 até 1580). As datas parecem tornar impossível que seja o mesmo indivíduo. Nas Mercês de D. Teodósio II aparecem nada menos que cinco Belchior Rodrigues: um, cavaleiro fidalgo da casa do Duque, moço das chaves do Duque D. João I (1588-1599); outro, Moço da mantearia do Duque (1583-1539; 1594-1614); o terceiro, escrivão da fazenda, pai de António Abreu; os dois últimos são referidos apenas como pais do Pe. Antonio da Cepa e de Lopo Rodrigues, respectivamente; pp. 276 e 375;

[8] Segundo Inocêncio e Barbosa Machado, nasceu em Évora a 6 de Abril de 1597. Presbítero secular e prior da Igreja da Caridade em Beja, foi duas vezes a Roma na qualidade de agente de negócios do Arcebispo de Évora, D. José de Mello. Vem para Lisboa persuadido pelo Conde de Atouguia, de quem fora mestre, onde morre em 19 de Novembro de 1655. Escreve um soneto e uma ode ao nascimento do­ infante D. Pedro, depois D. Pedro II. São dele os comentários de censura feitos aos Lusíadas que provocam a resposta de João Soares de Brito em Discurso Apologético a favor do insigne poeta Luis de Camões... (B.N.L., CAM.399-P, Mss. in 4º de 33 p., inédito) e de João Franco Barreto em Orthographia (1641, pp.208-209), comentários que lega a ­Manuel Severim de Faria. A este último autor dedica um Tratado Contra os Cultos. Manuel Pires de Almeida é ainda o autor de uma Arte Poética, dividida em três tomos (versificatória e poesia comum; poesia lírica, trágica e cómica; epopeia ou poema heróico), e de duas artes de Gramática, uma Francesa e outra Italiana, além de várias traduções. Estas suas obras aparecem referidas no Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Lisboa, 1985, como existentes na Torre do Tombo (embora não tenham sido encontradas).

[9] Referido por Nicolau António como nobre – "Dom"– e cavaleiro africano «Lusitano Urbe Marrochitana», autor de várias poesias ao divino.

[10] Não foram encontradas referências a este autor.

[11] J. Chevalier e A. Gheerbrant: «L'aigle, capable de s'élever au-dessus des nuages et de fixer le soleil, est universellement considéré comme un symbole à la fois céleste et solaire, les deux aspects pouvant d'ailleurs se confondre. Roi des oiseaux, il couronne le symbolisme géneral de ceux-ci, qui est celui des anges, des états spirituels supérieurs. (...). La tradition biblique donne souvent aux anges la forme de l'aigle (Ezequiel 1,10; Apocalipse 4, 7-8) in Dictionnaire des Symboles, Seghers, Paris, 1973, vol.I, p.21.

[12] Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues, Op. Cit., p.356.

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