Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

  [I - O Autor e o Mecenas]

 

   2. O Narrador-Autor

         2.1  Nas dedicatórias

         2.2  Nos seus poemas

 


]  2.2 Nos seus Poemas [

      A primeira informação que se pode retirar dos textos é que Manuel da Veiga, enquanto poeta de corte, escreve para um mecenas. Laura de Anfriso possui então, à partida, um leitor privilegiado que impõe à obra padrões e limitações específicas.

      Na Epístola dedicatória a D. Duarte (como na Écloga IV) o narrador solicita benevolência e apoio para o seu canto:

Alargando me vou no campo estreito

   Desta pequena carta, que me obriga

   A puxar polla rédea ao meo conceito.

 

O se do vltimo tempo a lus antiga

   me acompanhe estes mêbros já cansados

   pera que vossa glória ao mundo diga.

                              (vv.233-38).

Canto de louvor ao Bragança - por um "eu" já idoso em 1627 - que é também um acto de retribuição, de gratidão por favores concedidos e não claramente nomeados. Uma nota no final da Epístola refere a defesa do poeta estrangeiro Árquias, por Cícero (X.24) que pode levar à suspeita de uma tentativa de identificação entre as duas situações [1] . O pedido de amparo estende-se às próprias personagens, aos pastores e narrador, náufragos, e através deles, a toda a obra:

Vede senhor que este ditoso canto

   Apenas se salvou de hüa tormenta,

   Que poz ondas no Ceo com puro espanto.

 

Ao humido papel que se apresenta,

   Dai vossa mão real, porto seguro.

   E se este nada não vos descontenta:

   Outras cousas prometo ao futuro.

                              (Écl.IV,vv.560-66)

Uma "citação" indirecta que alude a Os Lusíadas, e transforma a lenda sobre a salvação dos manuscritos camonianos, a nado, numa fórmula retórica. Ou então se refere a uma qualquer tentativa de censura – há um intervalo de dois anos entre o pedido e a licença de impressão.

      Na Écloga I estabelece-se mais claramente a tradicional e evidentemente horaciana [2] relação de vassalagem entre poeta e mecenas, em que o primeiro paga a sua sobrevivência no presente, com a promessa de imortalização do segundo, numa futura epopeia:

   Vos darei entre tanto

   Os versos da espessura,

   Onde ensayarme vou para outro canto;

   Sofrei que esta hera a võs viua arrimada,

   Entre vossos loureiros enrolada.

                              (vv.22-25).

      Não há, portanto, qualquer dúvida relativamente ao facto de Manuel da Veiga ser um poeta de corte, e de ter subsistido pelo mecenato, dedicando os seus textos aos Braganças.

      Motivo de especulação fantasiosa – como adiante se referirá – têm sido alguns versos sobre o modo e origem da sua escrita:

Em luzes de papel pobre, & pequeno,

 Com apertado pão, com agoa breue

 As musas meditei, que hoje condeno,

 

Desde que o claro Sol em libra esteue

 Toquei grilhõis no escuro laberynto:

 Ate ver as escamas de ouro, & neue.

 

Quando liuros de gloria me faltaraõ,

 Por não gostar da furia o meu Tirano

 Exemplos de Pompeo me acompanharaõ

 

Que como bem disia o Affricano

 Esta o doce fruito do que offende

 Nas dores do offendido, & no seu dano.

                             (Epíst. 292-306)

«Em luzes de papel pobre, & pequeno», onde não é possível o acesso a «livros de glória» tem sido interpretado como testemunho da prisão do autor, prisão que se reiterará noutros poemas:

Eu só triste e afligido, & descontente,

   atado em dura, & aspera corrente

   dos grilhões faço lyra

   e o cárcere também chora & suspira

   Vendo que hum breue instante

   Me não deixa o tormento penetrante.

                        (Livro III, Ode 1, vv.49-54).

Ser  nesse espaço de retiro, voluntário ou imposto, que se dá a sua conversão - um hipotético abandono da poesia profana: «As Musas meditei, que hoje condeno», e também revelação: «Desde que o claro sol em libra esteve» [3]. Estes versos são acompanhados de uma nota em que se refere De Fuga in Persecutione de Tertuliano [4]. O poeta afirma ter estado preso, e ter sofrido uma conversão que o leva a mudar de vida, no entanto, por várias vezes ao longo dos poemas, o vocábulo «prisão» aparece seja associado ao corpo, enquanto prisão da alma, seja associado ao mundo, enquanto prisão do homem, adquirindo um sentido metafórico que é reforçado por uma cosmovisão de carácter (neo-)platónico.

      Em outros passos a metáfora dos «grilhões» aparece associada ao silêncio (Livro II, Ode 5: «mudos grilhões», por exemplo) - o que pode implicar uma censura própria ou imposta; também a prisão aparece com um segundo sentido, definida como «de lagrimas e riso» (Livro II, Ode 8), as manifestações humanas da emoção, que reiteram o sentido primeiro relacionado com corpo.

      A estes "dados" acrescenta-se a informação de Manuel da Veiga ter sido formado em leis:

As rimas em grilhões forão nacidas,

   E entre leis, & digestos mal polidas;

   Não canto sutylesas

   Canto o q vy, & ouvy; mortais tristezas

   De hum ausente, & cativo,

   De cuja voz sou sombra, ou eccho viuo.

                        (Livro VI, Ode 10, vv.163-66)

O estudo das leis não colide com a informação anterior de, em jovem, ter meditado sobre as musas. Mas o aspecto mais interessante destes versos reside na distanciação, clara e sucessiva, que o narrador impõe entre si e a personagem de Anfriso (o herói, mas nem sempre "eu" de enunciado) de quem se diz tradutor e secretário - destruindo portanto um argumento auto-biográfico mais primário:

Até aqui diuertia

   Anfriso magoas, & eu que as tresladaua,

   Froxa a pena sentia,

   Que as Musas detestava:

   Mas com cambios de glórias a animaua;

                        (Livro II, Ode 8, vv.71-75)

 

Assi cantaua Anfriso

   Metamophorsis de honra exercitando:

   Quem he flor, he Narciso;

   Não vay almas dobrando:

   Mas sombras Nominais multiplicando.

                        (Livro III, Ode X, vv.41-45)

Anfriso não pretende ser uma máscara sob a qual se esconde o autor, mas sim a figura do mecenas, e o narrador, confidente e secretário da sua personagem, afirma-se, para além de sua "sombra", como um tradutor enganoso dos seus cantos: «Eu que as rimas lhe ouui, no vulgo errado/ As deixo publicadas,/ Na estampa da memoria eternizadas.» (Livro I, Ode 1, vv.148-50). A escrita é envolvida num mistério voluntário que vai complexificar a decifração do canto a vários níveis. E um dos primeiros problemas tem que ver com a figura da personagem masculina principal, o pastor Anfriso, sob a qual se oculta um D. Duarte de Bragança.

[] H.B.[


[1] Cícero: IV.8: «...E tu queres ver agora os registos de Heracleia, que todos sabemos terem sido destruídos durante a guerra Itálica, no incêndio dos Arquivos?»; V.11: «Exiges os nossos censos. É evidente! Como se não soubesse que, aquando do último censo, Árquias acompanhou o exército com o preclaro general Lúcio Lúculo; aquando dos anteriores esteve na Asia com o mesmo, então questor;...»; IX: «Pois bem: aqueles anseiam por um estrangeiro, mesmo depois de morto, só porque foi poeta. E nós havemos de repudiar este, que está vivo e é nosso, por vontade própria e pelas leis, principalmente quando há tanto tempo aplica todo o seu zelo e todo o seu talento na celebração da glória e do louvor do povo romano? Com efeito, jovem ainda, não só se consagrou às Guerras Címbricas, como até agradou ao famoso gaio Mário, que parecia assaz rude para estes estudos.»; IX.21: «Será sempre referida e enaltecida como acção nossa a terrível batalha naval de Ténedos, em quase bateu Lúcio Lúculo e na qual, mortos os almirantes, a esquadra inimiga foi afundada.»; X.23: «...se os nossos feitos tem como fronteira os confins do globo, devemos ansiar por que, aonde chegarem as nossas forças armadas, aí penetre o nosso glorioso renome. Se tudo isto é importante para os povos cujos feitos se narram, também constitui enorme incentivo para as arriscadas façanhas daqueles que arriscam a vida pela glória.», in Em defesa do Poeta Arquias, Editorial Inquérito, Lisboa, 1986. Todas estas longas citações permitem inferir que Tagarro poderia ser originário de Africa/Asia, tendo-se os seus papéis perdido por causa das guerras, em que ele próprio ter  participado – ou Alcácer-Quibir, ou qualquer outra após a ocupação dos entrepostos portugueses no oriente? E que seria a falta de documentação o motivo de ter sido perseguido? O que de novo aponta para o Portugal de além-mar, enfim, pela protecção:­ «Contra quem me ladrar na partezinha.» (v.249).

[2] Horácio, Oeuvres, Garnier, Paris, 1967, p.49 - Ode I: «mon front ceint d'une couronne de lierre, récompense du sage, je vis avec les dieux d'en ­haut...».

[3] Astrologicamente, o sol em Balança – no século XVI –­ corresponde ao período de 15 de Agosto a 15 de Setembro data da Batalha de Alcácer-Quibir? Seria Tagarro um dos prisioneiros resgatados por interferência dos Braganças com os dinheiros de Filipe II?

[4] O apocalíptico pai do "donatismo" e do puritanismo não conformista, do radicalismo individual e do protesto político baseado em conceitos bíblicos, está ligado ao desenvolvimento do cristianismo africano.

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