Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[II – A Obra e a Crítica ]

 

 1. Sobre Laura de Anfriso

     1.1  Problemas editoriais

     1.2  Aspectos prosódicos

     1.3  Os mistérios da escrita

     1.4  A escrita como encenação e escultura

 


]  1.3 Os mistérios da escrita [ 

      Ao afirmar-se como "tradutor" das palavras da sua personagem principal – Anfriso – o narrador insinua que o seu é um texto «à clef», pelo que, mais que uma leitura, se implica – ou exige, – uma "decifração". Assim, não se poderá  deixar de ter em conta as pistas que foram, ostensiva e voluntariamente, semeadas pelo próprio autor.

      E o que mais chama a atenção neste livro de poemas são as notas à margem, próprias dos tratados de retórica da época, e não raras nos textos poéticos. Quando encontradas ­nos outros autores consultados (como em Eloy de Sá Sotto Mayor, por exemplo) são habitualmente esparsas, e limitam-se a chamar a atenção para determinada figura de estilo, ou a indicar a fonte bíblica ou clássica que terá inspirado determinado verso. Aqui, referem mais de uma centena de nomes e abarcam uma dimensão quase enciclopédica do conhecimento, da Antiguidade Clássica aos contemporâneos de Tagarro, pertençam as suas obras ao campo do sagrado – ortodoxo ou não – ou do profano.

      Colocadas pelo próprio, estas notas marginais – que por momentos ameaçam tornar o poema em centão – não só levam, obrigatoriamente, a uma leitura intertextual, como desencadeiam uma dupla estrutura de sentido. No primeiro caso, quando chamam a atenção, ou confirmam que determinado passo pertence a outro texto. No segundo, quando o sub-texto referido contradiz, ou de alguma maneira se opõe, ao texto de superfície. Este processo parece ter sido utilizado voluntária e expressamente com intenção de "revelar" segredos, ou fazer afirmações "perigosas":

E, com efeito é bastante raro um texto literário ser recuperado e citado tal qual. O novo contexto procura, em geral, uma apropriação triunfante do texto pressuposto. Ou essa finalidade permanece escondida (...) Ou então o novo contexto confessa operar uma rescrita crítica, e dá em espectáculo o refazer dum texto. [1]

            Torna-se difícil, na prática, separar as duas alternativas, e desde já se pode afirmar que funcionam em simultâneo na obra de Manuel da Veiga. Neste momento, porém, procurar-se-á  apenas fazer o levantamento das informações sobre o acto de escrita em si, já que o complexo processo de intertextualidade que se anuncia será abordado em capítulo independente.

[] H.B.[]


[1] Laurent Jenny,"A Estratégia da Forma" in Intertextualidades, Almedina,­Coimbra, 1979, p. 43.