Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro
- poesia e história - helena barbas - Maio 2003
[II – A Obra e a Crítica ]
1. Sobre Laura de Anfriso
1.1 Problemas editoriais
1.2 Aspectos prosódicos
1.3 Os mistérios da escrita
1.4 A escrita como encenação e escultura
] 1.4 A escrita como encenação e escultura [
Em Laura de Anfriso a escrita é valorizada como testemunho de um processo doloroso e de um tempo de sofrimento que, em nota, se associam, simultaneamente, às lamentações de Job [1] e à lenda pagã da luta de Apolo com a piton:
Em coua de dragois, e escuridade
Dous partos produzi, & o mesmo Ceo
Testemunha sera desta verdade.
Alli a dura historia se teceo
Do perseguido Anfriso, & a de Fileno
Que primaueras da Alma enriqueceo
(Epíst.,vv. 276-81)
Esta dupla associação (que já aparece na Floresta de Enganos de Gil Vicente, por exemplo), traz consigo a implicação profética da poesia [2]. Foi no espaço oracular que a obra se concebeu, e dele nasceram duas personagens, Anfriso – de Tessalia e Macedónia – que nos versos anteriores aparecia «a Laura atado», e Fileno, ambos náufragos. São estas personagens que irão ensinar ao narrador como «pintar» dois painéis trágicos. As artes da poesia e da música (o canto) são associadas à tragédia (a manifestação dramática mais sublime e sagrada), bem como à pintura, numa síntese artística que se invoca para esboçar os tormentos passados pelos dois pastores, e à qual, seguidamente, se vem juntar a escultura:
Mas como pode ser que se apurasse
Obra? da qual sospeito que se a vira,
Fugitiuos borrões Plauto a chamasse.
Na alhea letra a minha se esculpira,
Príncipe meu, com tinta adulterada,
Que apenas quinto olhar traslada & tiraõ
(Epíst., vv.303-08)
A linguagem apresenta-se como objecto de um artesanato específico – a inscrição num suporte material que apoia a pretensão à autonomia escultórica do texto. Para além da instância temporal e presente, o discurso aspira à perenidade, garantida pela fixação enquanto escrita e assegurada pela resistência da pedra (como epigrama, ou epitáfio).
A interrogação do narrador sobre as dificuldades do seu trabalho doloroso, traz consigo algum "menosprezo" pelo seu resultado, confirmando a "encenção" que envolve o acto de escrita. O trabalho – drama/acção de escrever, sujeito ao tempo e ao espaço – apela à sua "ressurreição" sentida como episódica e esporádica que apenas a leitura pode efectuar.
Revela-se aqui a importância das notas marginais omitidas pelos editores de 1788: a letra alheia que serve de base à "escultura" da letra própria, a pedra em que o "eu" lavra o seu próprio texto. Para além das possíveis associações com o epigrama grego, esta menção aponta para um conceito de arte aristotélico: o artista é aquele consegue ver para lá da matéria, revelando a essência que se esconde no seu interior. Esta ideia confirma-se pelo último verso referido: a necessidade de um «quinto olhar», um olhar "essencial" que consiga «trasladar» (trazer de outro lugar), traduzir, por entre o labirinto de citações, «a tinta adulterada», o pensamento do autor. O problema da escrita revela-se como hermenêutico pela exigência do seu pólo complementar que é o acto de leitura. Consciente da alienação a que ficará sujeita a sua obra, Manuel da Veiga instiga o leitor a que resgate o seu texto do estranhamento da distanciação, se aproprie dele e o torne de novo "presente". O leitor deverá, portanto, possuir uma capacidade de "visão" idêntica à do poeta, desejar tornar-se seu contemporâneo e, através de si, coetâneo dos génios do passado.
Este processo não será único, e tem que ver com uma concepção particular da imitação artística, já posta em prática por Petrarca e, segundo refere Fidelino de Figueiredo, utilizada comummente por Giambattista Marini (1569-1625) o "pai" do culteranismo. Marini confessara que «com materiais velhos construía o seu estylo...» [3].
Na última estrofe do sexto livro de odes reitera-se o mistério voluntário em que se envolve o acto de escrita que, não sendo gratuito para o autor, também não o deverá ser para o leitor:
Morda na mal limada consonância
Quem inchado vier de alta arrogância,
Mas tu Leitor prudente
Escarmenta em Anfriso sabiamente
Não dê contigo o engano
Em hüa confusão de eterno dano.
(vv.187-92).
A par do ocultamento que envolve o acto de escrita, está igualmente patente uma intenção ética, que se manifesta ainda de outros modos:
Nestas rimas senhor tãobem se alcança
Quão facil he na vida um breue riso:
Quão depressa se murcha hüa esperança.
Aqui se representa o grande Anfriso,
Aqui a nobre Laura, a Deos atados
Dando ameno teatro ao paraiso.
(Epíst., vv.254-59)
Associada à "representação teatral", ao drama, a escrita vai, de novo, ser qualificada de «santa tragédia». A referência ao sagrado repete-se mais adiante:
Não são isto Canções de Amor profano
Mas são huas escadas verdadeiras
Pera poder subir ao desengano.
(Epíst., vv. 272-74)
A obra apresenta-se como um código – um manual filosófico – a seguir para atingir um estado de "santidade" dissociado do amor profano, mas passível de com ele ser confundido. O desengano – cujo conceito irá ser discutido e desenvolvido – insinua-se como análogo à ataraxia estóica ou à indiferença neo-platónica, como uma situação em que não se ama nem se é amado, um estado "paradisíaco" porque sem sofrimento.
A obra é então exibida como um "monstro" – porque construída a partir dos fragmentos de outras obras, ou acumulação de paradoxos [4], algo contra-natura, idêntico aos que, gerados na natureza, por curiosidade e raridade, se oferecem aos príncipes.
[] H.B.[]
[1] Job, 30.29: «Irmão me fiz dos dragões, e companheiro das avestruzes// Enegreceu-se a minha pele sobre mim, e os meus ossos estão queimados do calor.// Pelo que se tornou a minha harpa em lamentação e o meu órgão em voz dos que choram.»
[2] A primeira referência à luta de Apolo com a píton aparece no hino homérico a Apolo: Já em Delfos, Apolo luta com uma "draikana", um dragão do sexo feminino, junto de um ribeiro, e mata-a com uma seta do seu arco. Píton começa por ser o nome dado ao local em que decorreu a luta, pois o dragão, sem nome naquele hino, só posteriormente recebe o nome literário de "Delfina". Em Simónides de Cós (frag. 26A, Berk.) o dragão passa ao sexo masculino e recebe, então, o nome de Píton. Por volta de 300 a.C. corre a versão popular, que depois vem a ser institucionalizada por Ovídio, nas suas Metamorfoses (Les Metamorphoses, Garnier, Paris, 1966, p. 379), onde Apolo visita Delfos, sendo aí confrontado pelo dragão que guarda o oráculo, matando-o com muitas setas. in Joseph Fontenrose, Python, University of California Press, Berkeley, Los Angeles, London, 1980. Mas a lenda aparece interpretada de modo curioso em Leão Hebreu: Píton é o símbolo da grande humidade que fica em resultado do dilúvio e que, perseguindo Latona por ordem de Juno, impede o nascimento de Apolo-Sol e Diana-Lua. in Diálogos de Amor, INIC, Lisboa, 1983, II, p.42.
[3] Fidelino de Figueiredo: «Numa carta a um amigo declara que colleccionava numa espécie de miscellânea tudo o que de picante e maravilhoso achara nos poetas gregos, latinos, italianos e hespanhoes, ordenando por materias, elementos com que construiu o seu estylo, saudado como um thesouro por elle descoberto. A intenção da sua poesia é ostentar grande riqueza de conceitos preciosos e surpreender pela maravilha e novidade...», in História da Litteratura Clássica, 2ª Epocha: 1580-1756, pp.31-32.
[4] Luis Gracian: «Son las Paradoxas monstros de la verdad, y un extraordinario, aunque sea de ingénio, se recibe bien. Funda soberania esta real potencia, en levantar criaturas, digo, en acreditar provabilidades...», "Disc. XVIII - De La Agudeza Paradoxa" in Arte de Ingénio, Tratado de la Agudeza,... Lisboa, 1659, p.39.
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