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[II – A Obra e a Crítica ]
2. A Crítica
2.1 Uma leitura tradicional
2.2 Uma leitura linguística
2.3 Outras referências
ii - Conclusões prévias
] 2.1 Uma leitura tradicional [
Na sua maioria, as alusões feitas a Manuel da Veiga Tagarro, ou à sua obra, têm por base o estudo de Belarmina Ribeiro. Será de salientar, no entanto, que devido aos padrões pelos quais são actualmente aferidos os comentários de texto, o interesse desta dissertação é praticamente limitado ao seu pioneirismo.
A autora começa por reproduzir o discurso de Frei Tomás de S. Domingos, o censor da edição do século XVII (1627), e depois o prólogo da segunda edição, de 1788. E o primeiro problema surge do facto de que, embora parte do seu trabalho seja dedicado ao levantamento de "citações" de autores clássicos – indicados em margem no texto seiscentista e ausentes no segundo – não menciona ter constatado a sua existência.
Depois, discutindo superficialmente o problema do mecenas – talvez induzida em erro por Fidelino de Figueiredo e Teófilo Braga –, considera como narratário único dos poemas D. Duarte de Guimarães que, mais adiante, confunde com o Marquês de Frechilha. Baseia-se na falta de informação por parte de Tagarro, argumentando que, se o livro fosse dedicado ao Marquês, o autor certamente no-lo teria dito. Esta hipótese pode, de imediato, ser rebatida, dado a dedicatória do livro utilizar os tratamentos, nacionais, de Excelência e Príncipe – superiores, portanto ao de Marquês, castelhano; e ainda devido à circunstância de D. Duarte ter falecido em 1627, como adiante se discutirá.
Outros aspectos menos pontuais são igualmente dignos de reparo. Especialmente, porque tanto a perspectiva histórico-social com que encara o período de publicação, quanto as relações que estabelece entre autor e obra, foram ultrapassadas. Referindo o papel da censura inquisitorial, e apoiando-se em Menedez-Pelayo, diz:
Está já hoje provado que o artista não se achava constrangido pela "acção compressora" dos índices e da Censura e que o influxo da inquisição no sentido de dificultar a expansão literária foi muito reduzido. (...) Assim, a Inquisição não veio impedir a liberdade da ciência, da erudição ou da filosofia. Quanto muito poderemos afirmar que o formalismo exagerado e ridículo da Censura prévia, tornava difícil a publicidade, mas nunca podia proibir a criação do artista ou "aferrolhar os espíritos". [1]
A esta perspectiva, claramente marcada por uma ideologia do Estado Novo, acrescenta-se uma leitura impressionista e sensacionista. Belarmina Ribeiro considera como carácter fundamental do livro a experiência humana do seu autor e a sua qualidade de transição:
Para além disto tudo está o homem que verdadeiramente sentiu e viveu, que escreveu porque sofreu, e que fez da sua experiência um cântico de amor e de vida. Nele temos o encontro de duas correntes: a do lirismo renascentista, e a do lirismo seiscentista. O começo de um no declinar do outro. [2]
No que respeita ao problema biográfico, refere as notícias de Barbosa Machado e Nicolau António, e diz: «Resta-nos investigar no seu livro e procurar nele mais algumas circunstâncias pessoais que venham ajudar a fazer um pouco mais de luz.» [3], a que se seguem várias observações sobre a relação directa – e não mediatizada – entre os dados veiculados pelo texto e hipotéticos factos biográficos. Conclui que Tagarro deve ter nascido nos finais do século XVI no Alentejo (Eclog.IV), foi de família nobre (livro IV, Ode 10; livro I, Ode 1), estudou em Évora, seguindo o curso da faculdade de Teologia (livro IV, Ode 10), foi licenciado (título); requisitado pelo magistério público (livro III, Ode 2), ter-se-á aplicado ao direito civil (livro VI, Ode 10). Apaixonou-se aos doze anos (Éclog.I), amor que se conservou constante pela vida fora (livro I, Ode 8) e que lhe causa dissabores, pois é perseguido e preso (livro III, Ode 1).
Afirma ainda que o poeta compôs a sua obra na prisão (Epíst.), levando à letra a metáfora «Em alheia letra a minha esculpira/ príncipe meu, com tinta adulterada,/ Que apenas quinto olhar traslada e tira» (Epíst.), pois diz que: «Serve-se de tinta fabricada por ele e de papel já escrito:...» [4]
À prisão segue-se um desterro voluntário (Éclog.IV) e, por desgosto, resolve consagrar-se a Deus (livro VI, Ode 8) seguindo o exemplo de Laura, afastando-se do mundo para melhor esquecer as suas mágoas:
tudo quanto de factos concretos da sua vida se pode tirar da sua obra. Mas como a sua biografia só nos pode interessar na medida em que ela vem afectar a sua obra, isto, que vimos através dela, nos basta. [5]
No que respeita à relação com Laura desenvolve o tradicional problema amoroso e atesta a separação dos amantes, não por questões sociais, mas pela inconstância feminina e aparecimento de um rival-monstro. Confirma-a, no entanto, como a mulher angélica, «idealizada desde Dante ao Renascimento» [6] e termina: «Laura foi uma mulher que personificou em si, todo o ideal e entusiasmo dum poeta apaixonado e que, por isso, se imortalizou.» [7]
Assim, o principal tema da Laura de Anfriso é uma história de amor, e será necessário admitir: «... pela sinceridade do sentimento expresso, que sob o nome de Anfriso se oculta o próprio autor.» [8]
O capitulo mais interessante será o III, em que aborda as influências culturais patentes nos diversos poemas, estabelecendo elos com várias tradições:
Em Veiga Tagarro confluem projecções diversas: as da história e cultura nacionais, as da cultura e poesia clássicas, as da renascença italiana representadas por Petrarca, Sanazzaro e Tasso, as da cultura católica representada pelos padres da igreja e pelos textos sagrados. [9]
Mas nos levantamentos subsequentes não é possível detectar se as interligações são feitas com, ou sem, consulta prévia das notas em margem fornecidas pela edição de seiscentos, o que, no entanto, não diminui o valor da interpretação de Belarmina Ribeiro.
Desenvolve, seguidamente, o conceito de que Tagarro é um poeta de transição, situando-o entre Renascimento e Barroco – portanto Maneirista, embora não use o termo – e continua detectando-lhe traços de pré-romantismo.
Este é provado no quarto capítulo, que dedica ao estudo da representação da natureza nos poemas do autor:
o poeta contempla a natureza, dum lado, como objecto consciente, por outro lado, com um modo sentimental, como se associasse as impressões da natureza com os seus sentimentos, com as suas recriações e lutas interiores, com a sua imaginação, e como se ele próprio estivesse irmanado com a natureza. [10]
Reúne, então, as várias tradições sob a imagem de uma tripla natureza:
Temos nele três naturezas que se compenetram e que nos mostram bem a convergência de outras tantas atitudes. A do homem Renascente, a do homem seiscentista e a do homem romântico. [11]
A figura de Laura apresenta-se, ainda, como uma personificação dessa natureza, a «Primavera florida» que «... é invocada e revive no espírito do poeta através da Natureza. Ele vivendo em contacto com a natureza, sente-a e fá-la reviver na sua obra.» [12]
Conclui o seu trabalho afirmando que Ideal e Real estão intimamente ligados, pois o poeta não apenas «sente o mundo exterior» como simultaneamente se projecta nele [13]. Amor e melancolia aliam-se, assim, numa busca do impossível.
Como apêndice à sua dissertação, Belarmina Ribeiro reproduz alguns poemas numa pequena antologia.
Como atrás se referiu, este é um trabalho pioneiro com já mais de cinquenta anos de idade. Para além dos aspectos negativos que necessariamente se salientaram, tem o mérito, não só de ter contribuído para um não apagamento total de um autor, chamando a atenção para ele e despertando o interesse pela sua obra, mas ainda de ser produtivo, na medida em que deixa em aberto pistas para aprofundamentos posteriores.
[] H.B.[]
[1] Belarmina Ribeiro, A "Laura de Anfriso", Dissertação de Licenciatura em Filologia Românica apresentada na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa em 1950,.p.4.
[2] Ibid., p.9.
[3] Ibid., p.11.
[4] Ibid., p.16.
[5] Ibid., p.18.
[6] Ibid., p.23.
[7] Ibid., p.24.
[8] Ibid., p.36.
[9] Ibid., p.58.
[10] Ibid., p.119.
[11] Ibid., p.120.
[12] Ibid., p.125.
[13] Ibid., p.126.
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