Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

 [II – A Obra e a Crítica ]

 

 2. A Crítica

     2.1  Uma leitura tradicional

     2.2  Uma leitura linguística

     2.3  Outras referências

 ii - Conclusões prévias

 


]  2.3 Outras referências [ 

      No seu pequeno artigo "Um poeta esquecido: Manuel da Veiga Tagarro", Jacinto do Prado Coelho [1] considera Laura de Anfriso como «...a melhor colectânea lírica do século XVII em Portugal» mas continua a alimentar a lenda em torno do seu tema e autor:

É uma história de amor com triste e romanesco desenlace. Sob o nome de Anfriso oculta-se o próprio autor, Manuel da Veiga, nos tempos da sua juventude. Viveu em Évora, a que chama «a sua aldeia» onde se terá licenciado. Laura não sabemos quem seja, não obstante as conjecturas de Teófilo Braga, com excessiva tendência para identificar os heróis das obras de ficção com personagens de carne e osso.

Continua, pois, veiculando a ideia geral de que o texto é auto-biográfico, e que os acontecimentos narrados correspondem a factos reais: nomeadamente a «prisão», a entrada no convento de Laura, a perda da esperança em Anfriso provocada por uma não retribuição do seu amor, a resignação, e final entrada em ordens.

      O pré-romantismo é afirmado por associações com o «clima bocagiano» [2] que considera alternarem com «A graça de uma arte neo-clássica», além de manter a influência de Camões: «Tagarro aprendeu em Camões a expressão luminosamente clara, impressionantemente simples [3]

      Louvando o facto de se ter eximido a cultismos e conceptismos em pleno Barroco, afirma o desengano como um pretexto para «exibir cultura e bom engenho» em elementos que vêm, na sua maior parte, do «lirismo renascentista» [4]. Salienta ainda o aspecto da natureza-jardim com­ características cénicas, bem como a importância do teatro, próprios do período. Termina confirmando:

Tagarro é pois um barroco; mas aqui este adjectivo – aliás ambíguo, em tantos e tão vários sentidos se emprega hoje! – exprime apenas um modo de sentir a vida e conceber a arte, independentemente de qualquer juízo pejorativo. Tagarro é inegavelmente um artista lírico de boa palma, um notável criador de imagens poéticas e de música verbal. [5]

      O apreço evidente que Jacinto do Prado Coelho demonstra por Manuel da Veiga – foi ele o orientador da tese de Belarmina Ribeiro – fá-lo cair nalguns excessos encomiásticos, especialmente no que respeita à luminosidade e clareza de expressão.

 

      Anterior ainda a este artigo, é o estudo de Mª. de Lurdes Belchior (1959) sobre Rodrigues Lobo [6] e nele se refere, marginal e esporadicamente, a figura de Manuel da Veiga. Lobo e Veiga são comparados por dedicarem ambos os seus trabalhos à corte dos Braganças [7]. Mais adiante afirma:

É verdade que Veiga Tagarro compõe uma écloga – a écloga II – à vinda de D. Teodósio a Lisboa, em 1619, quando da visita de Filipe III. Mas Veiga Tagarro estava muito ligado à casa de Bragança (o que acontecia também com Rodrigues Lobo) e a écloga é uma obrita sem pretensões (sic), dando apenas corpo aos sentimentos de gratidão e estima que ligavam o poeta ao duque. [8]

Este argumento é utilizado para justificar o facto de, para esse mesmo acontecimento, Rodrigues Lobo ter escrito sobre a Jornada de Filipe III, defendendo-o da acusação de essa sua obra ser «ensonsa e charra...» feita por Carolina Michaelis e Ricardo Jorge: «O romanceiro de Rodrigues Lobo é uma espécie de epopeia frustrada [9], o que nos permite observar os processos e as fórmulas de encarecimento que, por falta de inspiraçõ (?) ou maestria (?), se não elevaram a um nível  da criação artística.» Rodrigues Lobo é acusado de ter traído a causa portuguesa.

      Uma outra referência feita – em nota – a Tagarro prende-se com a sua descrição metafórica da natureza e baseia-se no estudo de Belarmina Ribeiro acima discutido.

      De um modo geral, Mª. de Lurdes Belchior está a defender o seu autor das comparações que entre ele e Tagarro são feitas por Ricardo Jorge, que não perdoa nem a um, nem a outro:

No bando dos poetas que zumbem nos freixiêdos da Tapada, estremam-se o leiriense Rodrigues Lobo, o Lereno, e o eborense Manuel da Veiga, o Tagarro; aquele decanta os Braganças no Condestabre; este vai-lhe no encalço ao depois na Laura d'Anfriso. Os Braganças inçam propriamente a obra do Lobo desde as Éclogas à Corte na Aldeia e à Jornada; e no Tagarro toda a bucólica não passa dum fogacho de incenso, tribulado às faces dos príncipes de Vila Viçosa: [10]

Numa breve comparação, em que salienta a qualidade e influência de Lobo sobre Tagarro, Ricardo Jorge alimenta o equívoco entre os mecenas, contesta as informações de Teófilo Braga, e admite ter sido impossível encontrar dados biográficos minimamente prováveis.

 

      Por fim, e mais recentemente, Manuel da Veiga Tagarro é mencionado em termos de um estudo sobre as éclogas bucólicas do Renascimento e Maneirismo da autoria de José Augusto Cardoso Bernardes:

O substrato gnoseológico que assinala a écloga portuguesa do Renascimento e Maneirismo vai acentuar-se, claramente com o advento do Barroco, evoluindo então esta quer no sentido do didactismo parenético (D. Francisco Manuel de Melo) quer no sentido da fantasia folclorista (Rodrigues Lobo e, sobretudo, Manuel da Veiga Tagarro). [11]

 

          É mais em termos de classificação periodológico que Manuel da Veiga irá ser referido noutras investigações de maior folgo. No seu estudo sobre Camões, afirma Jorge de Sena:

Por volta de 1620 o maneirismo que se inicia com Camões e os tão servis imitadores seus entrou em declínio. Rodrigues Lobo e Manuel da Veiga Tagarro, este mais tardio, serão os últimos expoentes delicados desse período que, no espírito de Francisco Manuel de Melo lutará  ainda com o Barroco. [12]

Faz então uma lista dos poetas sobreviventes a Camões, em que inclui Tagarro, afirmando, contra a tradição literária corrente, que:

...estão isentos de "gongorismos", ou apenas o exploram, na medida em que toda a Europa literária tendia para esse novo estilo de que, separadamente, Gôngora (1561-1627) na Espanha e Marino (1569-1625) em Itália viriam a ser os mais polarizadores expoentes. [13]

Acrescenta que será fácil confirmar a sua hipótese conferindo as datas de publicação das obras de Gôngora – 1627 – embora tanto as Soledades como O Polifemo circulassem, em manuscrito, desde 1613. E termina:

Honestamente, responsavelmente e inteligentemente, aqui proclamo que Camões e os outros até Rodrigues Lobo (quod erat demonstrandum) são maneiristas [14].

 

      Esta opinião vem, porém, a ser criticada por V. M. Aguiar e Silva [15]. Ao longo do seu exaustivo estudo sobre o Maneirismo e o Barroco, este autor refere Tagarro apenas esporadicamente. Num desses momentos recusa os propostos da periodização avançada por Sena, que considera «escassos de demonstração efectiva, mas ricos de aguda intuição» [16]. Reformula, então, a lista elaborada pelo poeta, acrescentando alguns nomes e retirando outros: «expungido do nome de Manuel da Veiga Tagarro, um poeta já inequivocamente de sensibilidade e expressão barrocas [17]

      Ao demarcar a fronteira cronológica entre as líricas Maneirista e Barroca, diz:

É precisamente nos anos que ocorrem entre a segunda e terceira décadas do século (XVII) que nos parece dever situar-se aquela fronteira: (...) A Laura de Anfriso (Euora, Manuel carvalho, 1627) de Manuel da Veiga, as Rimas Várias (Lisboa, Mattheus Pinheiro, 1628) de António Alvares Soares, e as Várias Poesias  (Lisboa, Mattheus Pinheiro, 1629) de Paulo Gonçalves de Andrade, testemunham já uma sensibilidade e um gosto poético barrocos. [18]

      Sem qualquer hesitação, e sem considerar a possibilidade de os poemas terem sido escritos antes das datas das suas edições, desenvolve a sua apreciação de Manuel da Veiga já como poeta barroco:

Veiga Tagarro evoca a sortílega beleza da mulher, numa sucessão de faustosas e hiperbólicas imagens oriundas da tradição estilística petrarquista imagens dominadas por conotações de luz, brilho e majestade , acabando por reconhecer que todos esses amavios e fulgores em breve se reduziriam a terra e, por isso mesmo, advertindo o pensamento da loucura de correr «apoz huma figura/ que vos ha de assombrar na sepultura» [19].

Tanto esta citação, como as seguintes, revelam que Aguiar e Silva baseou o seu estudo deste autor na edição de 1788.

      Outras referências vão ser feitas a Tagarro, especialmente quando da abordagem de temas e metáforas: estrelas como flores nocturnas [20]; caveira sobre sepultura [21]; invocação e exaltação do desengano [22]; mito de Ícaro [23]; concluindo que, associando a metáfora à hipérbole: «Tagarro evoca, através de metáforas culteranas e desrealizantes, o crescimento da vinha apegada aos álamos, e a calma do verão» [24], citando (livro I, Ode ­6 e livro IV, Ode 1), igualmente a partir da edição do século XVIII.

            Será pelo facto de Aguiar e Silva não só não ter baseado o seu estudo na edição da Laura de Anfriso de 1627, como por não ter tido em conta as datas de escrita dos poemas referidas nos de circunstância e que  vêm a "cair" no período maneirista, que se considera subsistir a dúvida e a necessidade de definição periodológica deste autor.

[] H.B.[]


[1] Jacinto do Prado Coelho, "Um poeta esquecido: Manuel da Veiga Tagarro", in A Letra e o Leitor, Moraes Editores, Lisboa, 1969, p. 31.

[2] Ibid., p.32.

[3] Ibid., p.33.

[4] Ibid., p.34.

[5] Ibid., p.35.

[6] Mª. de Lourdes Belchior, Itinerário Poético de Francisco Rodrigues Lobo, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1985.

[7] Ibid., p.135.

[8] Ibid., p.289.

[9] Ibid.; Repare-se no constatar de uma intenção épica associada a uma forma menor – o romance – que, no entanto, se apresenta como variante vernácula do género, já que na sua origem está relacionado com as canções de gesta.

[10] Ricardo Jorge, Francisco Rodrigues Lobo – Estudo Biográfico e Crítico, Imprensa da Universidade, Coimbra, 1920, p.91-2.

[11] José Augusto Cardoso Bernardes, O Bucolismo Português A Écloga do Renascimento e do Maneirismo, Almedina, Coimbra, 1988, p.173.

[12] Jorge de Sena, Trinta anos de Camões (1948-78), Edições 70, vol.I, Lisboa.1980, p.47.

[13] Ibid., p. 47.

[14] Ibid., p.60.

[15] V. M. Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Centro de Estudos Românicos da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971.

[16] Ibid., p.204.

[17] Ibid., p.204.

[18] Ibid., p.217.

[19] Ibid., p.317.

[20] Ibid., p.406.

[21] Ibid., p.248.

[22] Ibid., p.413.

[23] Ibid., p.415.

[24] Ibid. p.492.

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