Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

 [II – A Obra e a Crítica ]

 

 2. A Crítica

     2.1  Uma leitura tradicional

     2.2  Uma leitura linguística

     2.3  Outras referências

 ii - Conclusões prévias

 


]  2.2 Uma leitura linguística [

      Em "Manuel da Veiga Tagarro e a Língua da Laura de Anfriso" [1], de 1972, Orieta del Bene procura detectar as marcas linguísticas deixadas por  autores como Camões, Gôngora e Rodrigues Lobo em Tagarro.

      Não acrescenta nada de novo sobre a biografia do autor, em muitos passos seguindo a interpretação já apresentada por Belarmina Ribeiro, com a agravante de não encontrar um plano rígido para a obra. Relativamente ao problema da linguagem, diz que:

Manuel da Veiga se exprime numa Koiné culta, nobilitada por influências que o autor mostra aceitar conscientemente, e, conforme ao costume da época, muitas vezes com intenção de homenagem para os autores de quem engasta versos e expressões na sua própria obra. [2]

No entanto, não refere que a «aceitação consciente» passa pelo uso de notas marginais. À revelia destas mesmas notas considera ter sido Camões o poeta mais aproveitado:

...numerosíssimas terão sido as expressões camonianas, sobretudo tiradas de Os Lusíadas, que aparecem na Laura de Anfriso, dando a toda a obra, e em particular à Carta Dedicatória e às quatro éclogas, um carácter linguístico inegavelmente camoniano.

Parte então para o levantamento do que chama «elementos do carácter linguístico camoniano», apresentando exemplos como: «Porque me ouviu tocar frauta rude/ Já  não leda, mas triste/ E sem concerto» (Éclog.I, vv.69-70), «E eu triste e descontente» (Éclog.I, vv.200), ou «Naquela alma gentil», (livro II, Ode 10, v.64), e acrescenta:

às vezes a evocação camoniana é criada com o mínimo de elementos estritamente lexicais, mas através de uma sensibilidade linguística que leva o poeta a usar, dir-se-ia automaticamente, processos e figuras de retórica consagradas por Camões. [3]

Tendo em conta a pobreza e antiguidade dos exemplos dados, esta afirmação torna-se quase ridícula, pese embora o reconhecimento de uma intertextualidade petrarquista, sem dúvida por via camoniana.

      Continua a autora por este sistema, e com o mesmo nível de provas recolhidas junto do léxico, considerando palavras como: Ledo e contente, triste e descontente, venturoso, ameno, claro, sereno, sonoroso, deleitoso, etc., termos que, não sendo raros ou eruditos, nem neologismos, individualmente não parecem oferecer uma base para um estudo deste tipo.

      No que respeita a Gôngora e Rodrigues Lobo, detecta a inserção de versos que se referem particularmente a estes autores. Porém, no caso do primeiro, a exuberância, própria do espírito imperial espanhol, agravaria a frustração dos leitores, dado a situação política em Portugal – mais um motivo para o desengano, na ofensa do sentimento patriótico nacional. No caso de Rodrigues Lobo, as aproximações não são apenas vocabulares, mas também nos termos de descrição paisagística:

A paisagem que aparece na obra de Tagarro é mais de tipo "coimbrão" como em Rodrigues Lobo, e não há aceno à abrasada e solitária planície alentejana, como o seria de esperar de um natural de Évora. Mas o «topos» do «Locus amoenus» vinha de longe, tanto mais que se harmoniza bem com a meiguice (sic) do canto de Manuel da Veiga. [4]

Encontrando-lhe laivos de romantismo, busca ainda associações e semelhanças com Bernardim Ribeiro:

Talvez o pré-romantismo de Tagarro se possa achar mais no desespero com que ele descrê da vida e da mulher amada, no desejo da morte que ele chega ao atrevimento de usar sob a forma do suicídio (livro IV, Ode 4) - a Inquisição não deve ter reparado - e na atitude negativa com que o protagonista se aproxima da religião, pois não é a vida de oração ou o serviço de Deus que mais sinceramente lhe apetece, mas tão só a paz, o descanso, e a fuga à responsabilidade que o claustro possa oferecer-lhe. [5]

      Seguidamente, aborda o texto sob perspectivas temáticas, como o patriotismo. Considera que Tagarro procura manter vivo o espírito da epopeia nacional, provado pelo interesse em louvar a dinastia de Bragança, pela introdução de elementos ou intenção épica num texto marcadamente lírico e pastoral, prometendo cantos maiores, e melhores para o futuro – o que a leva a dizer que Laura «...se insere na atmosfera cultural que ter  dado origem à corrente de literatura autonomista portuguesa.» A sugestão épica é associada por Orieta del Bene ao clima messiânico do período, o do Bandarra. Ao referir os aproveitamentos linguísticos das literaturas clássicas, surgem algumas contradições:

Havendo aqui, por um lado, a necessidade de traduzir o verso latino, e por outro, estando ausente a preocupação patriótica , de se dirigir ao leitor português de modo entusiasmante, alusivo e relativamente discreto, como o pediam as circunstâncias, o poeta está bem mais livre do que acontece com o aproveitamento do verso camoniano [6].

Detecta algumas das referências clássicas, mas o modo como estas são apresentadas mostra que Orieta del Bene não consultou a edição de 1627, uma vez que apresenta como «revelação» versos e momentos que, naquele texto, vêm claramente indicados nas margens. Esta ideia confirma-se pela informação que é veiculada em nota ao artigo: «As duas edições (1627 e 1758) são substancialmente iguais e não apresentam, variantes de interesse [7]

      Discute ainda o problema de periodização e, com base no estudo do termo desengano, conclui que aquele:

...caracteriza todo uma época cultural, a do barroquismo exuberante ocultando e exprimindo, ao mesmo tempo, a profunda crise de passagem que estala as formas da Renascença antes de chegar, tortuosamente, ao novo Classicismo Árcade. [8]

deixando implícito que classifica o texto como Barroco. Porém, quando do estudo da originalidade de Tagarro que, ao contrário de Belarmina Ribeiro, afirma centrar-se nas éclogas, diz: «É nesta poesia que aparece mais gradual e harmónica a paisagem da imagem renascentimal à seiscentista, de um barroco apenas acenado» [9] – o que aponta para o conceito de Maneirismo. Mais adiante afirma de novo:

O estilo de Manuel da Veiga, com o seu classicismo renascentimal, com o seu camonianismo, com a sua atmosfera lírica à Rodrigues Lobo parece filho de uma atitude conservadora, no sentido em que o poeta se dá conta de não ser necessário estar a par das correntes literárias estrangeiras e castelhanas e principalmente castelhanas enquanto o país não voltasse a ter um futuro aberto à sua frente, e deste modo acontece que uma obra impressa em 1627 e presumivelmente composta não muito antes desta data, pode ser considerada, ainda depois de Gôngora ter publicado Polifemo e Soledades, uma obra de passagem entre a Renascença e o Barroco. [10]

Acrescente-se que – embora já corressem em manuscrito aqueles textos de Gôngora foram publicados exactamente em 1627.

      Para além da hesitação em usar o termo Maneirismo – que já não se justifica em 1972 como em 1950 – Orieta del Bene esquece as referências não apenas temáticas, como a personagem de Anfriso, mas também as notas e os versos que apontam Lope de Vega. Se Tagarro se assume como "discípulo" de Lope, terá forçosamente que ignorar Gôngora, “inimigo”, ou pelo menos oponente, do seu mestre.

      Curiosamente, del Bene termina com uma avaliação geral em que usa a metáfora da pintura – e do período maneirista – para enaltecer o carácter positivo da obra e do autor:

De facto, o ecletismo de Laura de Anfriso lembra aquele ecletismo, nascido de condições históricas mais ou menos análogas, dos pintores italianos da geração posterior a Caravaggio e aos Carracci: as suas obras não vinham revolucionar a arte, mas tratavam de conservar, assimilar e transmitir tudo o que de nobre e belo fora criado na passagem entre a Renascença e o Barroco, reinterpretando-o em tom menor mas não falho de encanto. [11]

            Deste artigo ressalta a ideia que Laura de Anfriso se trata de um texto de transição, que procura a síntese de todo o conhecimento anterior, e que pertence à categoria das obras menores. De um modo geral, constata-se que a sua autora se serve de um conceituário bastante elementar, com base nas noções de influência e semelhança, donde resultam conclusões superficiais e contraditórias.

[] H.B.[]


[1] Orieta del Bene, "Manuel da Veiga Tagarro e a Língua da Laura de Anfriso" in Arquivos do Centro Cultural Português, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1972, pp. 508-518;

[2] Ibid., p.508.

[3] Ibid., p.509.

[4] Ibid., p.516.

[5] Ibid., p.515.

[6] Ibid., p.512.

[7] Ibid., p.507.

[8] Ibid., p.513.

[9] Ibid., p.516.

[10] Ibid., p.517.

[11] Ibid., p.518.

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