Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 1. A pastoral renascentista

    1.2  Os pastores e o cenário bucólico

 


]  1.2 Os pastores e o cenário bucólico [ 

      Um dos processos de distinção da origem de influências recebidas será o modo de figuração – mais "artificial", ou mais "rústica" – das personagens pastoris; um outro será os estudos dos cenários em que evoluem – mais "reais", ou mais "simbólicos".

      Considerando-se o vaqueiro/pastor vicentino como exemplo mais próximo da tradição medieval, verifica-se que este é representado de um modo diferente dos seus congéneres da Antiguidade Clássica. E esta representação passa pelo tipo de linguagem utilizada: do dialecto saiaguês herdado de Juan del Encina, começam a falar um português rústico, retirado da observação de uma realidade campesina nacional, ainda que, pouco a pouco, convertida numa linguagem convencional representando um estereotipo. Tal como o seu vocabulário, as ideias que exprimem estão directamente relacionadas com o seu «modus vivendi». Todavia, isto implica, também aqui, a presença de uma certa artificialidade, pois são personagens artisticamente construídas: a sua é uma "falsa" rusticidade. Por esta sua faceta tornam-se análogos aos pastores sicilianos de Teócrito. Porém, de surrão e cajado, grosseiros e boçais, entregues a ocupações e divertimentos próprios do seu estado, alguns dos protagonistas dos Idílios destacam-se do grupo por apresentarem preocupações pouco típicas da sua classe: são os pastores-poetas que apascentam o gado e fazem versos simples e modestos.

      Em Virgílio o pastor é já uma personagem decorativa. Dedica-se ao pastoreio um pouco por acaso, ou para cumprir com as exigências do género. As suas ambições estão mais ligadas à terra que ao gado – o pastor de Virgílio é mais um lavrador que aspira a elevar a sua rusticidade a uma urbanidade. É esta minimização do elemento pastoril que vem a alimentar a artificialidade da figura do pastor tal como se encontra no Renascimento. Diz Rodrigues Lobo:

Escondeo a Natureza no fundo do mar, em ásperas conchas, as perlas finas, a que deo tanto preço a cobiça dos homens; sepultou nas entranhas da terra, entre bárbaras nações e remotos climas, o ouro que havia de penhorar tanto a nossa vontade; murou o mar de serras, semeou-o de perigos, que nos pusessem medo ao desejo, só a fim de dilatar mais tempo a nossa vida; porém, a malícia, cujo intento foi tirar-lhe apela o sossego, descobriu para nosso dano estes segredos, e escondeo a verdade de outros em que consistia o descanso de um ânimo seguro; cobriu de burel aos pastores, disfraçou seu contentamento com um trabalho vil e desprezado, e desta maneira encantou um tesouro que só na terra havia para fazer os ânimos contentes. [1]

Em Rodrigues Lobo, como em Fernão Álvares do Oriente e Eloy de Sá Sotto Maior, os pastores já  foram cortesãos que se decidiram a voltar as costas ao mundo, à vaidade da corte, aos amores mundanos. São já todos "pastores peregrinos" que abandonaram o seu estado social primeiro, para regressar a um paraíso não deteriorado pela cobiça do homem:

Quanto fora a vida mais saborosa e mais quieta entre as ovelhas, e quanto mais seguro o fruito dela, que o das esperanças da corte e dos enganosos tratos da cidade?

      E se suspiramos há  tanto tempo pela ditosa idade de ouro, é por esta melhoria que teve de todas as outras: viviam os homens como pastores, guardavam gado e tratavam com a terra. E claramente se prova esta verdade, pois o primeiro que Deos nela criou, este ofício teve; o título que lhe deo foi senhor dos animais; Abel, o primeiro justo em que começou a Igreja, e os mais que de Adão naceram guardaram gado. [2]

Este regresso às origens implica, igualmente, uma transformação na sua linguagem.

      No prefácio à sua Primavera, diz ainda Rodrigues Lobo: «... &  os meus paftores muyto naturais pois por melhor que fallem & digam feus queixumes diãte do entendimento de V. S. sempre ferão rufticos.» [3]. Paradoxalmente, a qualidade de "bem falar", com "naturalidade", insinua a perfeição da linguagem popular decorrente da proximidade de uma forma de expressão original e adâmica – que irá ser explorada no Romantismo – e que tem o seu paralelo no estilo de um "entendimento" de muita cultura (a filosofia?):

Que estilo mais conforme ao uso da razão e menos inficionado da malícia que a singela prática dos pastores? Desta razão naceo os escriptores antiguos disfarçarem a doutrina de suas obras no modo pastoril, como mais puro estilo e verdadeiro; neste escondeo Salamão os mistérios da nossa Fé que estão nos cantares da Esposa, escolhendo para a empresa tão alta e para a poesia tão  divina a semelhança tão humilde cujo exemplo era assaz bastante para acreditar estas artes com os homens de nossa idade. [4]

A rusticidade do falar deixa, então, de ser uma bitola que permita aferir a origem social dos pastores.

      Como alternativa, oferecem-se os seus nomes:

A simples consideração dos nomes dos pastores, nos nossos poetas bucólicos, pode ser ponto de partida para afirmações que, confirmadas por outros índices, servirão para caracterizar o cosmos pastoril das suas obras. [5]

Se mais correntes ou populares, como em Gil Vicente, Sá de Miranda e Bernardim ou D. Francisco Manuel, pertencerão à tradição medieval, se mais rebuscados na sua estirpe, como em António Ferreira, corresponderão à tradição clássica. Neste último grupo que se podem incluir os pastores da Laura de Anfriso.

      Apresentando um comportamento adequado às regras da tradição emergente de Teócrito na sua preocupação com o gado – e pela presença de pescadores – os pastores de Tagarro são igualmente virgilianos, tanto pela qualidade do seu canto, quanto pelo facto de o seu herói ser, alternativamente, pastor e lavrador.

      No que respeita aos nomes das suas personagens, estes emergem das várias tradições. Alfisibeu e Sileno vêm, respectivamente, das Éclogas VIII e IV de Virgílio, embora o segundo apareça também em Rodrigues Lobo, Eloy de Sá Sotto Maior e, posteriormente, numa écloga pastoril de Miguel Lopo  Albergaria [6]. Frondoso é o pastor de Camões (Écloga IV), já  herdado de Lope de Vega, e depois presente na Lusitânia Transformada e na Écloga "Araduca”(IV) da parte 4ª. da Fuente de Aganipe... . Salício foi pastor em Sá de Miranda (Nemoroso) e Eloy de Sá Sotto Maior (Ribeiras do Mondego), tendo igualmente ocorrido em Garcilaso de La Vega (Éloga I). Quanto a Lico, apenas se detectou o nome em Eloy de Sá Sotto Maior, mas a sua origem pode ser clássica se se considerar o sucessor de Aristóteles no Liceu. Fileno surge em António Gomez de Oliveira (Idylios Maritimos...), mas poderá ser considerado­ como uma variante do Filénio de Rodrigues Lobo (Primavera).

      Apenas Anfriso se apresenta com uma qualificação um pouco diversa (que, no entanto, não lhe é exclusiva). Embora também virgiliano, Anfriso é o nome de um espaço: «... e tu, memorável, nós te cantaremos pasto do Anfriso» [7] espaço esse nomeado em função do rio que o banha. Anfriso é o rio junto ao qual Apolo – expulso do Olimpo por ter morto os ciclopes – faz pastar os rebanhos do rei Admeto. Também Luciano, na sua Farsália (VI.365) refere este rio, recuperado entre nós por Sá de Miranda: «Pobre pastor de Admeto, oyólo, y viólo/ con zurrón y zampoña el rio Anfriso,/ su cayado sopuesto triste y solo» [8]. Enquanto personagem bucólica o Anfriso mais conhecido no período é a já referida personagem principal da Arcádia de Lope de Vega, texto publicado pela primeira vez em 1598, e com 14 edições até 1621. Mas já em 1613 aparecia uma referência a «el pastor de Anfriso» no "Coloquio de Los Perros" de Miguel de Cervantes [9] . Vai aparecer posteriormente (1701) como herói de uma écloga piscatória anónima [10].  Em Manuel da Veiga Anfriso é, sucessivamente, pastor, peregrino, náufrago, lavrador, mas também aparece sob a figura do rio: o «Tessalico Anfriso» [11]. Pelo nome apolíneo, o pastor encontra-se associado ao espaço da pastoreação, com o qual se identifica, bem como às águas que banham esse espaço, transformando estes elementos em substitutos alternativos uns dos outros. Anfriso nomeia um pastor, mas também um cenário: o nome estabelece um elo de continuidade entre a personagem e o espaço que ela ocupa.

      Apascentando o seu gado, a personagem bucólica movimenta-se normalmente em cenários exteriores. Fica, assim, sujeita às modificações temporais que determinarão a fartura ou escassez de alimento para o seu gado. Nesta perspectiva, torna-se lógico que privilegie a Primavera como o momento de germinação e abundância.

      Nos seus primórdios, o cenário pastoril é bastante simples e praticamente uniforme – o prado, o bosque, árvores, um rio. Mesmo assim essa simplicidade pode apresentar características diversas mais ou menos abstractas: epicuristas e sensoriais como em Teócrito e Horácio, onde a voz da natureza faz coro com a voz dos animais e do pastor; ou mais monótonas e generalizadas, com aspectos de utilidade social, e simultaneamente mais anímicas, como em Virgílio, onde a natureza se esquece de cumprir as suas fungões para ouvir o canto do pastor. Será talvez por interferência da tradição medieval e bíblica, e dir-se-ia ainda pelos teatros de correspondências neo-platónicas, que o cenário pastoril vem a adquirir a dimensão emblemática que parece ser a sua no início do Renascimento. Assim, cenário e pastores adquirem sentidos que ultrapassam as evidências, sentidos que recorrem a um mesmo campo vocabular, aos "topos" tradicionais – "bosques deleitosos" e "perpétuas primaveras" – que cada autor reordenará sem por isso se distanciar dos seus significados, sem abdicar de uma ligação ao real.

            Também os pastores de Manuel da Veiga têm uma grande ligação ao concreto, especialmente porque se movimentam em espaços restritos, mais reais do que simbólicos. Os seus pastores concentram, assim, os papéis atribuídos às diversas tradições: têm uma função alegórica, como no classicismo, já que são uma metáfora do real e, na sua preocupação com o particular, revelam um simbolismo que ultrapassa a sua individualidade; tem uma função figurativa, como na herança medieval, pois o seu simbolismo aspira ao divino, além de que as preocupações com o homem, a sociedade e a moral, são também de carácter religioso. E ainda, seguindo a tradição arcádica neo-platónica, os nomes dos pastores funcionarão como pseudónimos de contemporâneos seus. Reafirma-se, pois, que, à semelhança do que acontece com o Duque de Alba na Arcádia de Lope de Vega, o mecenas de Tagarro aparece representado na Laura de Anfriso sob a figura do pastor-herói. Do mesmo modo, o seu autor-narrador, ao assumir a função de "secretário" e "tradutor" dos cantos do seu mecenas, de cuja vida relata os principais passos, esconder-se-á, por vezes, sob o(s) pseudónimo(s) do(s) pastor(es). Não aparece, no entanto, associado a uma personagem particular e definida, nem na sua obra, nem nas obras dos seus contemporâneos que foram consultadas [12].

[] H.B.[]


[1] Francisco Rodrigues Lobo, Discurso sobre a vida e estilo dos pastores, As Éclogas, apud. Maria Ema Tarracha Ferreira, Textos Literários Séculos XVI e XVII, Editorial Aster, Lisboa, 1966, p.68.

[2] Ibid., p.70.

[3] Rodrigues Lobo, A Primavera – De novo emendada e acrescentada nesta segunda impressão pello mesmo autor, Impresso por Pedro Craesbeck, Lisboa, 1608, p.1.

[4] Francisco Rodrigues Lobo, Discurso sobre a vida e estilo dos pastores, Op. Cit., p.71.

[5] Mª. de Lurdes Belchior, Op. Cit., p.77.

[6] Miguel Lopo Albergaria, Lésbia, 1701, Ms. 1714, T.T.

[7] Virgílio: «...et toi, memorable, nous te chanterons pâtre de l'Amphryse», in Les Bucoliques, Les Georgiques, Garnier, Paris, 1967, Georg. III.2.

[8] Sá de Miranda, Nemoroso, vv. 274-76.

[9] Miguel de Cervantes Saavedra: «Deteníame a oírla leer, y leía como el pastor de Anfriso cantaba extremada y divinamente, alabando a sin par Belisarda, sin haber en todos los montes de Arcadia árbol en cuyo tronco no se hubesse sentado a cantar desde que salía el sol en los brazos del Aurora, hasta que se ponia en los de Tetís;» "Coloquio de los Perros" in Novelas Ejemplares, Biblioteca Edaf, Madrid, 1982, p.483.

[10] L.S.A.R., Écloga Piscatória de Anfriso e Limiano, ou Inveja de Anfriso ..., Ms. 1708, T.T.

[11] No seu poema à Tapada de Vila Viçosa, Lope de Vega refere um vale daquele espaço: «La nemorosa Tempe de Tessalia» como metáfora para descrever o jardim brigantino. Op. Cit. , p. 707, vv.89.

[12] No prefácio a Ribeiras do Mondego, Martinho da Fonseca identifica, na prosa, alguns dos nomes pastoris, e entre eles refere Tagarro. Porém, na leitura do texto – tanto da edição de 1932 como da setecentista, não foi possível confirmar esta informação.

[]