Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[IV – A Relação Poesia-História]

 

3. Laura e o Mito Imperial

  3.1  A construção da figura de Laura

  3.2  A Laura de Tagarro

iv - Conclusões prévias

 


]  3. Laura e o Mito Imperial * [ 

        O género bucólico, pela recuperação de um tempo e espaço com características adâmicas, está tradicionalmente associado ao mito do regresso da Idade de Ouro:

E na verdade, que outra cousa é a vida de um pastor senão a semelhança de Império, um ensaio de reinar com moderação e brandura? Que cousa mais semelhante ao governo de um reino que o vigiar do gado, pelejar por ele e defendê-lo das feras, segurá-lo dos ladrões, trazê-lo ao pasto fértil, às sombras frias, às fontes claras... [1]

      O mito instaura-se como uma construção progressiva que resulta do aglutinar de elementos diversos em torno de um núcleo central. A sua primeira formulação detecta-se em Os trabalhos e os dias de Hesíodo [2]. Entre os vv.108-202, o poeta relata a queda progressiva da humanidade desde um momento inicial áureo, em que o homem se identifica com os deuses, alheio ao sofrimento, à velhice e doença, e isento de trabalho. Este estado "adâmico" e paradisíaco é, porém, substituido pelo aparecimento de uma "quinta raça", a de ferro, que também ela virá a ser aniquilada:

Zeus aniquilará  também esta raça de homens dotados de voz

Sairão da terra de vastos caminhos

Para o Olimpo, para junto da raça dos imortais,

A Vergonha e a Justiça. O triste sofrimento aos mortais

Será deixado. Contra o mal não mais terão remédio. [3]

Deixando os humanos sem hipótese de salvação, a Justiça – ­aqui identificada com Nemésis – desaparecerá definitivamente da face da terra.

      O tema seduz muitos dos autores seguintes. Platão, no Fédon (110d-111c) descreve a região dos bem-aventurados; Na República desenvolve a utopia exemplar, passível de concretização na terra, que irá servir de modelo ao estado bem governado pelo homem mais justo. O mito torna-se presente (até pelas tentativas pessoais de concretização levadas a cabo pelo filósofo) e real. Crê-se que, em algum momento, em algum lugar, antes ou depois da morte, será possível encontrar a felicidade. Ovídio vai retomar o tema nas suas Metamorfoses (I, 127-161). Já influenciado pelos Phaenomena ­- um tratado astrológico [4] de Aratus, o poeta transmite aos latinos a associação de Astreia/Justiça com o signo da Virgem, o sexto do Zodíaco (vv.95-115) [5]. Astreia, filha de Zeus e Témis, ou de Astreus e Aurora, é identificável com várias outras figuras de diversas mitologias (Erígone, filha de Ícaro; Ceres; Vénus; Astarte; Juno ou Urânia) enriquecendo-se a simbologia associada à figura inicial.

      Toda a carga astrológico-simbólica está já implícita na recuperação do tema por Virgílio, o seu grande reformulador. O poeta canta o passado edénico nas Geórgicas e na sua Écloga IV profetiza o regresso à Idade de Ouro – ou a sua chegada – para a sua época, a de Augusto. Ideia que vai reiterar no canto VI da Eneida:

Levará o seu domínio a toda a terra

E exaltar  o seu valor aos Astros;

E circunscrever , com um só muro

Sete montes: ditosa m„e de heróis

[...]

Eis ao César e a progénie toda

de Iulo, cuja fama irá aos Astros.

Esse ‚ o homem que, por tantas vezes,

Prometido te foi; Augusto César,

Divina geração virá no Lácio

Onde reinou Saturno antigamente

restabelecer os séculos dourados,

E estenderá o seu manto até aos Índios

E os garamantes, gente que demora

Fora dos signos, para lá do curso

Do sol e onde Atlante, que sustenta

O céu nos ombros, faz girar o eixo

De brilhantes estrelas adornado. [6]

Com Virgílio, a Idade de Ouro é associada ao Império terreno, presente e com pretensões a universalidade, de Augusto. O século do César passará a ser considerado como o exemplo supremo de um mundo unido e em paz, e o imperador consagrado como modelo de ordem e justiça: uma personificação de Astreia (tanto mais que, na sua reelaboração do calendário romano, Augusto deixa o seu nome ligado ao sexto mês, o da Virgem). No entanto, a sua glória máxima, para os cristãos, reside no facto de Cristo ter consentido nascer num império sob o domínio romano, regido pelo maior dos césares.

      A Eneida de Virgílio adquire, então, a categoria de poema semi-sagrado, glorificando historicamente o nascimento do Salvador. Virgílio advém o poeta da Idade de Ouro, antecipada na sua Écloga IV. A virgem Astreia – ou a Justiça – torna-se identificável com Maria, e a criança, o filho da Virgem, com Cristo apolíneo. Encontra-se, pois, um embrião do que virá a ser a síntese renascentista, pelo confluir da tradição clássica com a profetização judaica na realidade cristã do início da era. A noção de passado modelar, edénico, é fundida pela tradição com a noção de império universal – o reino áureo de Saturno –, cujo arquétipo é simbolizado pelos impérios reais conhecidos: o de Augusto, sucessor de Alexandre e exemplo mais próximo – transformando dois temas, aparentemente contraditórios, num único.

      A linguagem pastoral da écloga virgiliana vai ser aproximada da de Isaías e dos Cantares de Salomão, a sua profecia da de Daniel, adquirindo o seu lugar no vocabulário místico cristão. Retomada por Stº. Agostinho, serve de inspiração à ideia da Jerusalém Celeste, a Cidade de Deus que se contrapõe (e transparece através de) a cidade dos homens, e atravessa toda a sua concepção da história.

       A distinção agostiniana vai servir de base ao pensamento místico associado ao milenarismo. A Idade Média alimenta a aproximação de Maria com Astreia, e o Advento de Cristo com o clímax da História. Estas noções não só exacerbam o culto mariano, exaltado nas formulações franciscanas, como também vão fundamentar a teorização mística e filosófica sobre o regresso da Idade de Ouro – ou do Império do Espírito Santo – que informa as concepções de Joaquim de Flora.[7]

      A ideia do regresso de Astreia – a Justiça – desenvolve-se em paralelo e como sinónimo do aparecimento do Rei-do-Mundo, ganhando novo ímpeto com cada uma das sucessivas renovações imperiais: Constantino, Carlos Magno, Frederico II Hoenstauffen (filho e continuador dos projectos de Frederico Barbarrossa). O mito mantém-se como preocupação dos espíritos reais em pleno século XVI, dentro e fora da Europa. Solimão o Magnífico (1520-60), Ivan III (1462-1505), Ivan IV, o Terrível (1538-84), Isabel I de Inglaterra – que se auto-apelida Imperatriz do Mundo e desenvolve a sua propaganda pessoal sob a imagem de Astreia-Diana – são alguns dos nomes que aspiram ao título de "Imperator". Porém, os grandes candidatos ao império são Carlos V de Espanha e Francisco I de França, concorrentes e rivais do nosso rei D. Manuel, na eleição de 1519, que o Papa Leão X vende ao monarca espanhol.

      Mas o conceito de Império sofre uma alteração radical antes ainda da época dos descobrimentos. O momento de ruptura parece instalar-se entre Dante e Petrarca, e é marcado pelo fim do feudalismo, pela afirmação e fixação de fronteiras nacionais. Embora ainda associada a um espaço geográfico, a ideia de Império é limitada pelo absolutismo régio e adquire conotações mais culturais e ideológicas que propriamente políticas.

        A primeira formulação teórica deve-se a Dante que, na sua Monarquia, desenvolve a ideia desligada de nacionalismos. Por hierarquias e analogias entre homem e sociedade, poder divino e real, recupera a Justiça de Virgílio como ordem máxima do império:

      Além disso o mundo está perfeitamente ordenado quando­ nele reina a justiça em toda a plenitude. Virgílio, desejando celebrar o século que nascia, cantava nas Bucólicas:

      Já a Virgem regressa; regressam os tempos de Saturno.

      A Virgem era a Justiça a que também se chamava Astreia. A justiça plena só existe com o Monarca. Para a excelente ­ordenação do mundo é necessária, portanto, a monarquia ou­ Império. [8]

      Este texto baseia-se numa lei de amor ideal manifesta a nível do temporal, mas dela departe uma outra hierarquia analógica, de carácter espiritual – associável às teorizações de Joaquim de Flora sobre a Cidade de Deus de Sto. Agostinho –, que explicita na Divina Comédia. Dante preocupa-se, assim, não apenas com os aspectos prático e realista da função governativa, mas também com o seu contraponto espiritual, que tem o grau mais elevado em Deus, de que o príncipe é manifestação humana.

      Também Petrarca se preocupa com as questões imperiais nos seus dois aspectos. Não refuta a teoria medieval do Império, mas a sua perspectiva é diferente. O conhecimento que possui da civilização clássica leva-o a entender a Idade­Média como um tempo de obscurantismo – uma Idade de Ferro – que resultou da destruição provocada pelas invasões bárbaras. A noção de descontinuidade cultural associa-se a ideia do ciclo de renovações periódicas presente na retórica imperialista:

Que Petrarca não tenha de facto contestado a teoria da traslação do Império, e portanto a sua continuidade, é sugerido pela profecia que ele coloca na boca de Lucio Cipião no seu poema latino Africa (II, vv.288-93). Porém, noutros sítios parece olhar com desprezo algumas das noções mais queridas pelo imperialismo medieval. Para ele, as influências bárbaras que destruíram Roma sobrevivem no Império barbarizado da Idade Média. [9]

Petrarca crê ainda que a fraqueza e desunião da Itália são motivadas pelo abandono da deusa fortuna – de Dante – que não mais é seduzida pela "virtú" do povo romano. Por este motivo se liga, inicialmente, a Cola di Rienzo – que convida a Itália a unir-se sob uma nova Roma, já  que a antiga "Virtú" cívica romana seria, concretamente, recuperada sob a sua chefia. E também se afasta daquele criticando-o, em carta, pelo excesso de ambição de poder. O que o poeta exige de facto é uma renovação mais completa da civilização clássica, a verdadeira missão do humanista do seu tempo.

      A sua devoção pela "humanitas" clássica reúne a disciplina literária e a preocupação espiritual com a alma. Segundo Antonio Prieto:

... implica toda uma inauguração europeia que não tarda a manifestar-se. Aliando-se com o neo-platonismo, a "humanitas" de Petrarca reaparece, por exemplo, em Marcilio Ficino com uma projecção que toca, pictoricamente, a criação da Primavera de Botticelli. (...) Trata-se de uma transformação das cenas profanas sugeridas  pela descrição de Vénus ("Humanitas") de Apuleio, na que intervém a elevação espiritual cristã que Ficino predica epistolarmente a Lorenzo di Pierfrancesco di Medici e que Ficini tinha animado com a dignidade petrarquista. [10]

Poder-se-á, pois, afirmar que se evidencia uma ligação entre o amálgama das figuras de Astreia-Justiça-Diana e a imagem sagrada de Maria como representante cristianizada da deusa Fortuna. Igualmente, sendo Astreia associada ao mito Imperial - que possui duas facetas, a sagrada e profana aquela figura apresenta-se como metáfora ideal, tanto para a "Virtú" romana, como para a "Humanitas", projectando-se na Primavera  de Boticelli (e de Cavalcanti), e dando origem à sua primeira hipóstase neo-platónica em Beatriz. Madona Laura será, então, a sucessora directa daquelas figuras femininas, congregando em si, ainda e também a tradição medieval trovadoresca.

[] H.B.[]


* O tema do Mito Imperial foi desenvolvido e aprofundado no ensaio "Mito Imperial e Sebastianismo em As Profecias do Bandarra de Almeida Garrett", apud. Helena Barbas, Almeida Garrett - O Trovador Moderno, Salamandra, Lisboa, 1994, pp. 137-197.

[1] Francisco Rodrigues Lobo, "Discurso sobre a vida e estilo dos pastores", Op.Cit., p. 70.

[2] Dorothea Wender, Hesiod and Theognis, Penguin Books, Harmondsworth, 1984.

[3] Mª. Helena da Rocha Pereira, Op. Cit., p. 83.

[4] Que foi traduzido do grego para o latim por Cícero.

[5] «Beneath both feet of the Bootes mark the Maiden, who in her hands bears the gleaming Ear of Corn. Whether she be daughter of Astraeus, who men say, was of old father of the stars, or child of other sire, untroubled be her course! But another tale is current among men, how of old she dwelt on earth and met men face to face, nor ever disdained in olden time the tribes of men and women, but mingling with them took her seat, immortal though she was. Her men called her Justice; but she assembling the elders, it might be in the market place or in the wide-wayed streets, uttered her voice, ever urging on them judgements kinder to the people. Not yet in that age had men knowledge of hateful strife, or carping contention, or din of battle, but a simple life they lived. Far from them was the cruel sea and not yet from afar did ships bring their livelihood, but the oxen and the plough and Justice herself, queen of the peoples, giver of things just, abundantly supplied their every need. Even so long as the earth still nurtured the Golden Race, she had her dwelling on earth.» G. R. Mair, Callimachus, Lycophron, Aratus, William Heinemann, Ltd., London, 1960, p.215.

[6] Vítor Buescu, Hesperia, Plátano Editora, Lisboa, 1972, p.242.

[7] Evidentemente relacionadas com o pensamento do Pe. António ­Vieira. Mª. Leonor C. Buescu, "O Padre António Vieira ou a Abolição da Geometria" in Ensaios de Literatura Portuguesa, p.80.

[8] Dante, Monarquia, Guimarães & Cia. Editores, Lisboa, 1984, p. 21.

[9] Frances Yates: «That Petrarch did not actually contest the theory of the translation of the Empire, and therefore its continuity, is sugested by the prophecy which he puts into the mouth of Lucius Scipio in his Latin poem Africa (II, vv.288-93). Yet, elsewhere he seems to view with scorn some of the most cherished notions of medieval imperialism. For him the barbarous influences which had destroyed Rome live on in the barbarized Empire of the Middle Ages.» Astrea - The Imperial Theme in Sixteenth Century, Routledge & Kegan Paul, London and Boston, 1975, p.13-14.

[10] Antonio Prieto: «...implica toda una inauguración europea que no tarda en manifestarse. Aliandose con el neoplatonismo, la "humanitas" de Petrarca reaparece, por exemplo, en Marsilio Ficino con una proyección que toca, pictóricamente, la créación de La Primavera de Boticelli. (...) Se trata de una transformación de las escenas profanas sugeridas por la descripción de Venus ("Humanitas") de Apuleyo, en la que interviene la elevación espiritual cristiana que Ficino predica epistolarmente a Lorenzo di Pierfrancesco di Medici y que Ficino habia animado en la dignidad petrarquesta.» [10] Francesco Petrarca, Cancionero, Editorial Planeta, S.A., Barcelona, 1985, p.xxv.

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