Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[IV – A Relação Poesia-História]

 

3. Laura e o Mito Imperial

  3.1  A construção da figura de Laura

  3.2  A Laura de Tagarro

iv - Conclusões prévias

 


]  3.2 A Laura de Tagarro [ 

       No que respeita às significações atribuíveis à figura de Laura na obra de Tagarro, estas são múltiplas e controversas. Mas, mais do que  uma "amada" encontrada aos 12 anos, e não sendo manifestamente a "dona" poética do autor, torna-se evidente que esta Laura, dando continuidade nacional à personificação da Verdade/Justiça/Beleza de Petrarca, terá que ser lida ainda enquanto substituta da Astreia virgiliana cujo regresso ao mundo marcará o início da Idade de Ouro.

      Em Laura de Anfriso só esporadicamente a heroína é referida, e mais raramente ainda toma a palavra. Na Ode 8 do livro I, Vénus procede à sua descrição, enquanto alta lusitana-ninfa-noiva de Anfriso, e a sua beleza em geral que respeita todos os cânones da mulher loira como já referido, revela-se superior à da deusa, portanto, "mais que (romanamente) divina". Este momento é acompanhado, em margem, por notas que apontam para comentários a duas frases: «Species corporis simulacrum est mentis» insinuando, portanto, que a descrição física poderá ser apenas metáfora de uma entidade espiritual e «Pulchritudo, & Virtus Reges Facit» associando a Beleza e Virtude à realeza. Alguns dos versos seguintes desafiam a interpretação:

Mappas de fermosura

   Ao Angelico rostro o mundo deue;

   Quanto a virtude appura:

   Tanto ensinar se atreue

   Por globos de esmeralda em cristal breue

                              (vv.86-90)

Seguidamente, Laura envergonha-se com os elogios de Vénus, e a sua reacção é acompanhada em nota pelo livro II da Eneida onde se foram buscar os versos descrevendo o rubor de Lavínia [1]. A deusa convida, então, Laura a aceitar «...o jugo brando/ Nesta idade dourada,» (vv.112-13), mas a união com Anfriso não se concretiza, como já  foi dito, por inconstância daquele.

      Na Ode 2 do livro II, a divindade de Laura é alargada pela comparação com outras duas figuras mitológicas. Laura escuta os conselhos de sua mãe Leoniza, tal como Tália escutou Mnemósine e Diana escutou Latona. Laura e sua mãe são equiparadas em beleza, congregando, em si, as qualidades das outras figuras femininas invocadas. É agora a natureza que se dá por vencida perante tanta formosura:

E alli como corrida

   Escassamente os olhos leuantaua,

   Dandose por vencida

   E mais bella ficaua,

   Quando seu vencimento confessaua.

                              (vv.26-30)

Ao confessar-se vencida pela beleza de Laura – que é obra sua – a natureza está a constatar o aumento do seu encanto próprio, o que permitirá a extrapolação Laura=Primavera/Alma do Mundo:

a matéria, fundamento de todos os corpos inferiores, é por si disforme e mãe de toda a disformidade neles; mas, enformada em todas as suas partes por participação do mundo espiritual, se torna bela, de tal modo que as formas irradiadas nela pelo Intelecto divino e pela ALMA DO MUNDO, ou seja, pelo mundo espiritual e pelo celeste, são aquelas que lhe tiram a fealdade e conferem a beleza. [2].

      Mas a personagem de Anfriso também tem como seus "substitutos” elementos do campo do natural, seja o álamo, seja o rio. Assim, o álamo que aparece na ode seguinte terá que ser entendido como uma personificação do pastor. Tal como a árvore tem as letras do nome de Laura gravadas na sua casca, também o pastor tem o "senhal", a imagem daquela gravada no seu peito. Laura é a "sombra" da Ideia que penetrou pelos olhos do amado e ocupou o seu espaço interior, transformando-o ao roubar-lhe a sua essência:

Com a sua beleza, a imagem daquela pessoa amada aviva na mente do amante aquela Beleza divina que está latente na mesma alma e dá-lhe actualidade do mesmo modo como lha daria a própria Beleza divina exemplar; de forma que ela só se torna divina e a sua beleza se desenvolve e se torna tanto maior, quanto a divina é maior que a humana, e por isso o amor dela se torna tão intenso, ardente e eficiente, que rouba os sentidos, a fantasia e a mente toda, como o faria a própria Beleza divina se recolhesse em si em contemplação a alma humana. [3]

É também a alma do mundo que transvaza a partir das suas manifestações materiais. Paralelamente, por estes dois motivos, pode afirmar-se que Laura é mais um dos nomes uma das sombras nominais de Anfriso que o narrador multiplica ao longo do texto. Na Ode 5 do mesmo livro, Anfriso – agora como rio – e após um período de cativeiro em "carcer de regello", e as suas águas:

   Quando em parte quebradas

   Dos pés da honesta Laura erão tocadas

 

Laura con seo passeo magestoso,

   De prezo, vos tornaua venturozo.

   Oh rio de cristal,

   Que pisado da planta imperial

   Tão sublime vos vejo

   Que vos inuejão Ganges, Douro, & Tejo

                        (vv.17-24)

O rio, Anfriso é "acordado"/aquecido pelo tocar dos pés de Laura/Astreia, cujas "plantas" marcam as fronteiras – ou os "mappas" da ode anterior – do império. Estas pegadas peregrinas despertam a inveja do "Sol" (Filipe?):

Ficauão as pisadas peregrinas

  Impressas sobre as tarjas cristallinas

   Pera que o mundo as veja:

   Mas ah que o mesmo sol arde de inueja,

   Vendo ventura tantea

   De hum Rio que sobre elle se aleuanta.

                              (vv.37-42)

O receio do sol, perante o rio, apresenta-se como uma formulação, evidentemente alegórica, que parece esconder acontecimentos reais de carácter político. Reforça-se a suposição de que Anfriso/D.Duarte, de algum modo teria aspirações a restaurar a independência e logo, o Império por um acto de sublevação e tomada de poder, contra o qual se terá insurgido, ou o rei espanhol, ou mesmo o seu próprio irmão, D. Teodósio.

      Na Ode 10 do livro IV, encontra-se uma nova descrição – do aspecto físico, gestos e movimentos – de Laura-ninfa que, sob a égide de Virgílio, se passeia nos bosques de Diana. O poema contém uma digressão constituída por uma breve cena em que esta caça uma fera. Tanto a fera, como o álamo bendizem a sua condição de vítimas:

Os alemos soberbos, & fermozos,

   Que são aluo dos tiros venturozos,

   Com nobre presumpção

   Na seta estão beijando aquella mão,

   Que ou he neve animada.

   Ou do marfim mais puro foy formada.

                              (vv. 37-42)

Continua o louvor da caçadora que termina com ecos camonianos: «A todos quanto vê todos cativa,/ Settas tirando a molhos:/ Porém as que mais rendem são dos olhos.» (vv.46-49).  Aqui em nota encontra-se Ovídio, Tibúlio e Propércio, mas também Ezequiel 28 [4], Crisóstomo sobre a Epístola de S. Paulo aos Efésios [5] o livro 10 de Egisipo, Flávio Josefo [6], e Artemidoro [7]. Enquanto Diana, Laura é acusada de desprezar os pastores «A quem dura, & cruel matou de amores.» (vv. 54). Na estrofe seguinte dá-se uma associação entre a ninfa/Diana e a caça, sendo agora a imagem feminina associada à da fera: «Os pastores seguindo/ A esta fêra, que delles se vai rindo.» (vv. 59-60); a esta associação que reencena o mito de Diana e Actéon, refere-se em nota a Bucólica 2, supõe-se que de Virgílio ("Alexis"?). O poema vai terminar com um lamento de um narrador: «Quem ordenou tão áspera ventura?/ Que nacesse de hum parto a fermosura com a dura esquivança?/.../ Que vamos sempre a caça do impossivel.» (vv. 60-62 e 65), que traz por nota lateral a Arcádia de Lope de Vega, a que se segue uma moralização, um pedido à sua alma para que busque outro bem mais acessível, «Bem verdadeiro, eterno e singular,/ formosura infinita,/ Com cujo sangue, ó alma, andais escrita.» (vv.69-71). Propõe-se, aqui, a par da identificação de Laura com Diana [8], uma mudança de objecto de culto, uma ainda não nomeada transferência da deusa pagã, para a figura de Cristo, com o seguinte argumento:

Deixai que ande bebendo seus enganos

   Quem não vio inda santos desenganos.

   Porem vos que abristes

   Os olhos, com que mil miserias vistes,

   Buscai be(n)s de mais dura;

   Despresai a caduca fermosura.

                              (vv. 72-78)

A estes versos finais correspondem citações sobre a fugacidade dos bens do mundo, atribuídas a Crisóstomo, sobre a solidão do Pelicano em Sto. Agostinho, e sobre o Salmo 101 [9].

      Laura-ninfa-Diana é, posteriormente, relacionada com Cila e apresentada como motivo de naufrágio de Anfriso (livro V, Ode 1), tão inimiga quanto a fortuna-Caribdis no reter dos bens predestinados ao pastor. Na Ode 3 do mesmo livro é a ninfa que se recusará «casar» com Anfriso, e declara-se apaixonada por Cristo:

Desengana-te Anfriso, me dizia

   Que esposo mortal

   Não há de entrar em minha companhia:

   Só viuo namorada

   Da belleza superna, & increada.

                              (vv.21-25)

A par desta estrofe encontra-se uma nota que refere: «Cognita divina Pulchritudine humanam intelligimus seditatem», acompanhada pela nomeação de padres da Igreja sobre a revelação do Apocalipse, e o Cântico dos Cânticos. Após ser identificada com Astreia e com Diana, Laura aparece aqui como figuração de uma Ideia neo-platónica (pela revelação), mas cristianizada, pois o objecto do seu amor é agora Cristo crucificado.

      Laura coloca-se, deste modo, fora do alcance humano e, se personificação da Ideia Imperial, prepara a sua transferência para o momento do Juízo Final do Novo Testamento.

      A confirmação de que Laura não é uma entidade de carne e osso encontra-se na Ode seguinte, a sétima deste livro, em que, numa glosa da Ilíada e do catálogo de mulheres de Hesíodo se condenam todas as mulheres em geral como destruidoras de Monarquias, sendo usada como exemplar a tragédia de Tróia desencadeada por Helena [10]:

   Nem sô tem assolado

   Monarchia Troyana;

   Senão tambem a Ibera, e a Romana.

 

Oh feros basiliscos!

   Aspides, brandos Sphynges venenosas!

   Que causais tantos riscos

   Tragedias tão custosas

   As altas Monarchias gloriosas.

                              (vv.78-85)

Esta moral que o narrador retira do acontecimento épico é apoiada por uma lista de notas marginais que, supõe-se, referem todos os comentários misóginos, passando pelos autores clássicos e Padres da Igreja.

      As Odes 3 e 4 do livro VI são novamente dedicadas à descrição de Laura. Na primeira é comparada à rosa – mas também a Aurora, Diana, Palas – de acordo com o motivo da efemeridade da beleza, assunto que é desenvolvido na segunda. O autor desta comparação – e do canto – é Eros, que usa o argumento da efemeridade da beleza humana para convencer a personagem a casar com Cristo (apelidado de «Pedra divina» na Ode 1 deste livro), e tomar a Cruz como trono:

Porque duvidas, alma soberana?

   Render-te aquella vida mais que humana,

   Que já  por ti morreo?

   Eu que sou a maior força do Ceo

   Serei em teu fauor;

   E te tirarei Laura esse temor.

                              (vv.55-60)

Eros desempenha aqui a sua função neo-platónica de pneuma universal e seguidamente vai reiterar esse seu ofício de elo de ligação entre todas as coisas, usando as suas armas tradicionais e pagãs, o arco e a seta, para ferir Laura de amores pelo seu «Divino Esposo». Mais uma vez, as notas referem textos religiosos.

      Pelo retomar do tema da rosa, a Ode 5 deste livro terá de ser lida em conjunto com as anteriores, embora Laura não seja aqui referida. A rosa, apresentando características emblemáticas (ou herméticas) – «Purpureos obeliscos/ Fechada rosa estais representando;» (vv.1-2) – é elogiada como «Imperatriz» e «Aurora», numa personificação que leva a pensar, por momentos, que se trata de uma alegoria a mascarar o louvor a uma pessoa de facto. O poema termina de novo com a questão da efemeridade da beleza e da passagem do tempo. É este um dos poemas a que faltam dois fólios, pelo que se seguiu a edição do séc. XVIII. Nos que existem aparece apenas uma nota marginal no fol. 124v., mencionando o elogio da rosa feito pela própria Vénus, narrado por Libânio. No fol. 127, por entre autores sagrados, surgem Horácio [11], Ronsard [12] Marino [13], Mena [14], Torcato [15].

      A semelhança do que acontece com Anfriso – que vai "morrendo" sucessivamente – também Laura é, por três vezes, ameaçada de morte. Primeiro, no livro IV, Ode 4, por doença quando é ressuscitada pelo canto de Anfriso. Este lamento sobre a figura feminina serve de pretexto a um comentário sobre a brevidade do tempo e a efemeridade da beleza.

      Depois, na última Ode do livro V, agora Laura é ameaçada por um monstro. O poema começa com a descrição de uma serpente/dragão que se propõe atacá-la quando adormecida. Mas a personagem acaba por ser defendida pela própria Morte, que lhe serve de guarda:

Contra esta prenda rica,

   Que de meus próprios dentes já  larguei,

   Vens tu, ó serpe iníqua?

   Atropelando a ley.

   Que eu mesma pus que a Laura perdoei?

                              (vv. 46-50)

É então a Morte que fulmina o dragão o qual, ao cair, acorda Laura. E a Morte/Libitina dirige-se-lhe falando-lhe das três vidas que lhe concedera: a primeira, a natural; a segunda, resultante de a ter poupado a uma doença; e esta terceira, em que a salvara do dragão. Estes salvamentos foram ordenados por Cristo: «Aquella Magestade/ Que a mi já se rendeo na Cruz sagrada,» (vv.91-92). E a morte aconselha Laura a empregar a sua (terceira ou tripla) vida: «Onde ella se restaura,/ Naquela cruz formosa,/ Do piloto Jesus nau gloriosa.» (vv. 106-10). Laura chora de amor: «E quando imagina/ quanto JESUS a ama:/ JESUS esposo meu, sospira e chama:» (vv.113-115). O poeta escolheu a curiosa imagem de uma Morte que funciona como "alcoviteira" de Cristo na conversão de Laura. A tripla fuga à morte – ou recuperação da vida por Laura – insere-se no pólo oposto às triplas exéquias de Anfriso no seu caminho de acesso ao desengano. A parte final do poema é também toda ela toda acompanhada de notas marginais de carácter religioso.

      Marca-se, assim, o percurso de acesso ao divino, que vem a ser pormenorizado no final do sexto livro de Odes. Na Ode 6, Laura toma o hábito e entra no convento. Este acto, definido pela própria como um auto-sacrifício, é acompanhado de um comportamento ascético e por auto-punições talvez excessivas, ou pouco ortodoxas:

Rasgaua a carne tenra, & delicada

   Com diciplina fera:

   O duro leito de cortiças era:

   O pobreza estremada!

   Chaue dos altos Ceos,

   Que tanto agradas ao eterno Deos!

                              (vv. 31-36)

Apesar do leito duro, com uma pedra por almofada, Laura ainda interrompe o seu sono nocturno para fazer orações, com consequências igualmente pouco vulgares:

   Aos Ceos fazendo Guerra

   Pois dis seu mesmo Autor,

   Que hua Alma lhe tirou balas de amor.

                        (vv. 52-54)

Deus/Cristo apresenta-se na posição do amado, seduzido pela figura feminina:

O amor divino é a inclinação da sua belíssima Sapiência para a sua imagem, isto é, para o universo por Ele produzido, com retorno deste à união com a sua suma Beleza; e a sua deleitação está na perfeita união da sua imagem com Ele próprio, e do universo seu produzido, com o Produtor. Por isso diz David: "Deleita-se o Senhor nos seus efeitos", pois naquela união da criatura com o Criador consiste não só o deleite e a salvação da criatura (como diz David: "Deleitar-nos-emos no sumo princípio da nossa salvação"), como também consiste naquela união o deleite divino relativo pela felicidade do seu efeito. [16].

Uma segunda consequência da prece é uma insinuada união extática entre Laura e Cristo, também ela pouco ortodoxa (embora as notas mencionem esponsais espirituais com Cristo):

Ah! quem se vira: & nisto heis que soltava

   Duas largas correntes

   Dos saudosos olhos descontentes;

   E quando em si tornava,

   Tanto que vio a luz:

   Suspirou docemente por Iesus.

                              (vv. 91-96).

      Na ode seguinte – uma das mais conhecidas deste autor – o êxtase aparece explícito no seu final. O poema é todo ele constituído por uma "ecphrasis" – tendo em conta o modelo do "Escudo de Aquiles” – na medida em que se descreve uma obra de arte, bem como o momento e o processo da sua fabricação. Os primeiros versos introduzem a personagem:

Ornamentos de tella singulares

   Laura fazendo está pera os altares;

   Iâ moue em campo de ouro

   A mão, que era de graças hum tesouro;

   Tão propria nas pinturas,

   Que as aruores tem voz, alma as figuras:

                              (vv.1-6)

O acto de bordar, eminentemente feminino, associa-se às artes de poesia e pintura na sua qualidade de "poiesis"/criação, para descrever outros e sucessivos actos de criação – um refazer do cosmos e da história. Nestas condições, o "eu"-narrador assume, de modo não evidente e escamoteado, uma (tripla) posição de demiurgo, que a nível de superfície é atribuída à personagem feminina [17]. Os versos seguintes são, assim, dedicados à descrição dos elementos "pintados"/bordados por Laura-Penélope, que correspondem a um percurso que passa da génese à queda e promessa de salvação. A bordadora começa pela Santíssima Trindade, passando ao Cosmos, ao Paraíso, com as respectiva árvore, Adão e a serpente, a que se seguem Daniel e suas profecias, Jacob, David, Joaquim e Maria, depois a anunciação do anjo e o nascimento em Belém.

      Na edição de 1627 faltam, seguidamente, os fólios 131/131v. e 132/132 v. a que correspondem os versos 79-171. Nestes, continua-se a descrição do presépio, a que se segue uma estrofe contra os judeus:

   Tu só és infiel,

   Que o não conheces, improbo Israel

 

Canalha infame, que ha tão longos dias

   Esperas cega, e triste outro Messias:

   Quem vira renovado

   O theatro de Tito em fogo armado:

   Que se as cruzes faltarem,

   Não faltem fogos para te acabarem.

                              (vv. 85-90)

Esta estrofe surge um pouco deslocada pela violência e diferença de tom, permitindo talvez a hipótese de um acrescento posterior à escrita do poema – pelo seu autor ou outrém. Ou então, devido à sua temática, procurará cristianizar – ou salvaguardar-se de – uma faceta de messianismo judaico que também inspira o mito Imperial [18].

      Laura borda, então, as personagens do presépio, os anjos, os pastores, chegando a usar os seus cabelos para «As faxas do Minino» (vv.105) e com lágrimas de emoção lamenta-o:

Luz de minha alma, Sol Omnipotente!

   Vós que fostes gerado eternamente

   Do mar da divindade,

   Com o qual sois o mesmo em unidade,

   Alli sem Mãi nasceis,

   E aqui sem pai na terra apareceis.

                              (vv. 110-114)

Este lamento levanta o problema de heresia relativamente à origem humana ou divina de Cristo [19]. Continua Laura cobrindo o menino com seus cabelos – numa antecipação do gesto de Maria­Madalena [20] fazendo-lhe «prisões» (vv.138), que dão lugar a um comentário do narrador:

Que feridas, meu Deos, tão gloriosas,

  Vos farão vestiduras tão formosas,

  Se outra hora confessastes,

  Quando por zelozias namorastes,

  Que vossa doce escrava

  Com um só cabelo vos acutelava!

                              (vv.139-144)

Este comentário pode ser entendido de duas maneiras: ou o destinatário é Anfriso, e então, como antigo enamorado de Laura, agora estará com "ciúmes" de Deus; ou o destinatário é o próprio Deus, e este confessar da sua "paixão" por Laura que, vislumbrada através  de «zelosias» adquire de novo implicações heréticas, agora de carácter  gnóstico [21].

      O bordado continua, até que Laura descansa a sua mão e, agora adormecendo, entra de novo em êxtase [22]. Laura transfigura-se atingindo, portanto, numa dimensão idêntica à de seu par, o «esposo divino»:

Alli em doce somno, peregrino

  Goza de seu Esposo alto, e divino,

  O qual alçando a mão

  Esconjuraua as filhas de Syaõ

                              (vv.166-68)

Na estrofe final o narrador aconselha: «Gozai Laura gozai vossos amores» (vv.172), aos quais correspondem um reflorescimento primaveril da natureza. A par desta estrofe final encontra-se em nota à margem a reprodução de um excerto do Êxodo 24 [23], e do Cântico  2 [24].

            Este último poema sobre Laura congrega os elementos sagrados e profanos, das tradições clássica, judaico-cristã, e mesmo herética, dando-lhe  a dimensão de hipóstase feminina que ultrapassa o modelo petrarquista.

[] H.B.[]


[1] Virgílio: «En entendant les paroles de sa mère, Lavinie a inondé de larmes ses joues brulantes; une vive rougeur a mis son feu sur son visage et l'a parcouru d'une bouffée chaude. Comme un artisan qui altère d'une pourpre sanglante l'ivoire de l'Inde ou, comme les lis blancs, mêlès à beaucoup de roses, en reflètent les tons rouges, ainsi se colorait le visage de la jeune fille.» Eneide, Op. Cit., p.258. Imagem que Virgílio recuperou de Homero (Ilíada, IV,­v.141), e que também foi utilizada por Horácio ("Ode III", 5,­28.).

[2] Leão Hebreu, Op. Cit. , III, p. 288.

[3] Ibid., III, p.350.

[4] Entre a profecia contra o rei de Tiro, e contra Sídon, apresenta uma lamentação contra o rei de Tiro que parafraseia a queda do homem e expulsão de um paraíso "mineralizado” e barroco: «13 Estavas no Éden, jardim de Deus; toda a pedra preciosa era a tua cobertura, a sardónia, o topázio, o diamante, a turquesa, o onix, o jaspe, a safira, o carbúnculo, a esmeralda e o ouro: a obra dos teus tambores e dos teus pífaros estava em ti; no dia em que foste criado, foram preparados.» e mais adiante: «17 Elevou-se o teu coração, por causa da tua formosura, corrompeste a tua sabedoria, por causa do teu resplandor; por terra te lancei, diante dos reis te pus, para que olhem para ti.».

[5] Têm por tema a predestinação, a salvação, o converter de Paulo, a irmandade entre gentios e cristãos na unidade da fé, os deveres domésticos.

[6] A Antiguidade Romana.

[7] Livro 2 sobre a interpretação dos sonhos.

[8] Leão Hebreu: «O Sol é a imagem do intelecto divino, do qual depende o entendimento; e a Lua é a imagem da ALMA DO MUNDO, da qual toda a alma procede.», Op. Cit., p.161.

[9] Em que David promete sinceridade a Deus e opor-se aos ímpios: «7 O que usa de engano não ficará dentro da minha casa: o que profere mentiras não estará firme perante os meus olhos; 8 Pela manhã destruirei todos os ímpios da terra, para desarreigar da cidade do Senhor todos os que praticam a iniquidade.».

[10] Mas sob a figura de Helena já  mais que uma vez mencionada esconde-se uma outra hipóstase feminina, a companheira de Simão o Mago ou personificação da Ennoia gnóstica: «Simon's Helena was also called Selene  (Moon), which suggests the mythological derivation of the figure from the ancient moon goddess.» Hans Jonas, Op. Cit., p.108.

[11] Livro I, odes 2 e 3.

[12] Livro 3 ode 12, e livro 4 ode 32.

[13] «ad Ergasti suspiria.» est. 31.

[14] Tratado sobre a virtude.

[15] Canto 16.

[16] Leão Hebreu, Op. Cit. , III, p.343.

[17] Esta capacidade de criar feminina – tendo em conta os aspectos misóginos de odes anteriores bem como os desenvolvimentos seguintes – traz consigo implicações de carácter gnóstico, mais particularmente na versão de Simão o Mago: «...the hypostatized and personified female figure of the Epinoia (or, alternatively, Ennoia), who has absorbed into herself the generative power of the Father, is the subject of the further divine history, which has been set in motion by the first act of reflection. This history is one of creation or a series of creations, and the specific gnostic feature of the process is that it is one of progressive deterioration (alienation) in which the Epinoia, the bearer of the creative powers separated from their source, loses control over her own creations and more and more falls victim to their self-assertive forces. It is with the fall, suffering, degradation, and eventual redemption of this female hypostasis of the divine that the older reports on Simon are alone concernedHans Jonas, Op. Cit., p.106.

[18] Tal como, por exemplo, este aparece nas Trovas do quase contemporâneo Bandarra.

[19] Particularmente o "Nestorianismo" em que defendendo a existência de duas pessoas em Cristo - a divina e humana - Maria é considerada como apenas mãe do Cristo-homem.

[20] Para V. M. Aguiar e Silva, Mª. Madalena é um dos temas que mais aparece associado ao desengano, como metáfora do arrependimento e contrição: «...representa a crise do espírito que conduz do engano para o desengano, quando o homem descobre que a sua vida tem sido uma teia de erros e compreende, alanceado pelo remorso das faltas cometidas, que deve abandonar tudo o que o prende ao mundo e refugiar-se em Deus.» in Maneirismo e Barroco ..., p.316. E acrescenta mais adiante: «A personalidade de Santa Maria Madalena e os episódios evangélicos e hagiologias com ela ocorridos e relacionados representam, paradigmaticamente para a sensibilidade maneirista, o desengano, a contrição, a penitência...» Ibid., p.317. Sobre este tema, veja-se imagens e sombras de santa maria madalena na literatura e arte portuguesas - a construção de uma personagem: simbolismos e metamorfoses (helena barbas - fev.2003) em http://www.fcsh.unl.pt/docentes/hbarbas/tese.htm .

[21] De facto, o termo "zelozias" tem o duplo sentido de "ciúme" e "postigo", "tabuinhas" como cortina, o véu que separa a divina Sofia de Deus na Hypostase dos Arcontes, a versão valentiniana tardia daquela posição filosófica.

[22] Hans Jonas: «The mystical gnosis theou – direct beholding of the divine reality – is itself an earnest os the consumation to come. It is transcendence become immanent; and although prepared for by human acts of self modification which induce the proper disposition, the event itself is one of divine activity and grace. It is thus as much "being known" by God as "knowing" him, and in this ultimate mutuality the "gnosis" is beyond the terms of "knowledge" properly speaking. As beholding of a supreme object it may be said to be theoretical – hence "knowledge" or "cognition"; as being absorbed in, and transfigured by, the presence of the object it may be said to be pratical – hence "apotheosis" or "rebirth".», Op. Cit., p.285.

[23] «24.10 E viram o Deus de Israel, e debaixo dos seus pés havia como uma pedra de safira, e como o parecer do céu na sua claridade; 24.11 Porém ele não estendeu a sua mão sobre os escolhidos dos filhos de Israel; mas viram a Deus, e comeram e beberam.»

[24] «2.1 Eu sou a rosa de Saron, o lírio dos vales./.../ 12.12 Aparecem as flores na terra, o tempo de cantar chega, e a voz da rola ouve-se em nossa terra:»

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