Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[ III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 4. O Caminho para o desengano

    4.1  O desengano e a escrita

    4.2  Os “Santos Desenganos” em Laura de Anfriso

iii - Conclusões prévias

 


]  4.1 O desengano e a escrita [

      Recordando o esquema sobre as formulações de Padrón, pode verificar-se que só no segundo momento – o presente – a escrita é possível. Aqui fica implícita a relação entre a poesia e a alma, o espaço da emoção amorosa. No presente, as personagens contam umas às outras (ou ao leitor) os seus desenganos passados: a prosa corresponde à descrição de paisagens, à localização e narração dos acontecimentos do passado (normalmente começam com a chegada de um pastor(a) que conta as suas desventuras e, por sistema, terminam com o canto, e/ou "saída de cena" das personagens); a poesia – que é sempre acompanhada de música – repete, de algum modo, o tema da narrativa, tornando-o exemplar [1] e "presentificando-o". Assim, relativamente aos dois primeiros momentos – passado e presente – a sua demarcação pode ainda ser estabelecida a nível de variantes do discurso:

...dir-se-ia que nos comentários e análises do Amor e nas descrições paisagísticas se realiza a prosificação do que é intensa e liricamente sentido; por seu turno, nas composições em verso e sobretudo nas Éclogas, encontram-se dramatizados estados de alma e situações de tensão amorosa. [2]

A ”dramatização” – que torna muitas obras do género pastoril "representáveis” – terá aqui a ver com o transformar em acção presente os acontecimentos do passado (incrustando o primeiro momento de engano no segundo), numa re-vivência que é catarse, e logo exorcismo, purificação e "cura". No que respeita ao 3º. estado, o da filosofia, da razão/Minerva, ou do espírito, este é apresentado como correspondente ao futuro, e daqui decorrem duas hipóteses: ou, por ser "futuro", esse estado não é nunca alcançado (atingido, o futuro torna-se presente); ou o homem terá abdicado de todos os seus desejos. Esta última instância desencadeia uma situação também paradoxal: o poeta escreve, e o acto de escrita, quanto mais não seja porque é desejo de comunicar, é prova de que ainda não atingiu o desengano/indiferença; isto leva a que na maioria dos textos os autores admitam que o desengano esteja ainda por alcançar: atesta-o o facto de continuarem a escrever. Como alternativa, apresentam-se duas hipóteses: o recorrer à alegoria [3], ao sonho [4]; ou elevar a poesia ao estatuto da filosofia e considerá-la como tendo origem no ”entendimento", na razão e não na emoção amorosa [5] e neste caso, o amor deixa de ser emoção para se tornar ideologia de novo, como em Rodrigues Lobo:

Lereno, que é o herói da trilogia pastoral, passa muito tempo a cantar, quase sempre desenganado. (...) Quando a pedido de outros pastores, canta a sua sabedoria amarga, exprime-se, sobretudo (...) pelo sentimento agudo da efemeridade da existência e da perfídia da Ventura. Algumas das suas cantigas têm carácter didáctico‚ como se o poeta quizesse pregar o desengano que a experiência da vida lhe ensinou. [6]

Se o desengano "se prega" não é um sentimento, mas uma moral, uma ética, um dogma ou uma filosofia.

      Esta problemática da transformação discursiva é inicialmente sentida como inadequação pelos próprios filósofos. Ficino, em luta com a linguagem para dar ao amor da sabedoria e da divindade uma expressão condigna, acaba por recorrer à poética profana do seu tempo:

A linguagem pode exprimir ingenuamente o "tremedum" ou a "Maiestas", ou o "mysterium fascinans" com termos pedidos de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual profana do homem. Mas esta terminologia analógica deve-se justamente à incapacidade humana de exprimir o "ganz andere": a linguagem fica reduzida a sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem com termos pedidos de empréstimo a esta mesma experiência natural. [7]

      Também Giordano Bruno escreve em verso os seus emblemas De gli Eroici Furore [8] recorrendo, por vezes, à linguagem da mística (é contemporâneo de Stª. Teresa d'Ávila e S. João da Cruz) embora a sua seja uma obra puramente metafísica. Os problemas linguísticos que enfrenta são, no entanto, opostos aos de Ficino. Bruno confronta-se com o uso degradado da linguagem do amor platonizante: os seus signos estão esvaziados de sentido e tornaram-se um mero artifício na estratégia erótica e retórica do amor profano, baseado numa idealização puramente verbal da mulher [9]. Acrescente-se que o mesmo se passa posteriormente com alguns poetas metafísicos ingleses.

      Talvez por este motivo, Bruno vai pôr em causa as formulações de Dante e Petrarca, condenando abertamente o segundo por considerar que a sua obra é o resultado da contemplação obsessional de um objecto indigno (reivindica para a esfera do consciente puro os problemas do inconsciente, segundo ele, indevidamente exaltados pelo poeta), e mais veladamente o primeiro por, na sua utilização de Beatriz enquanto encarnação da Ideia, não ter separado os aspectos sagrados dos profanos. Bruno resolve a incompatibilidade entre o espiritual a devoção que eleva o amante e o mantém casto e o material a fixação do amor sobre um objecto terreno, que excita o desejo optando por uma concepção puramente espiritual do amor, e a sua teoria corresponde a uma compilação de teses que já  orientavam a prática de escrita dos autores do período.

            Existem, portanto, semelhanças que aproximam o amor heróico do amor de origem cortês. Ambos têm como objecto o Um divino, o absoluto, único e inacessível – a Ideia neo-platónica – do qual, porém, não se desviam apesar da certeza de nunca conseguir o êxito. Ambos se comprazem no sofrimento implícito nessa situação. Porém, o amor heróico é clarividente – a imagem fantástica é reconhecida como tal e activo – o sujeito não só controla como manipula o seu próprio aparelho fantástico/emocional. Têm ainda em comum a aspiração à morte [10], que em Bruno surge com a peculiaridade de ser uma etapa entre o estado anterior ao amor (a contemplação da espécie divina através da sua representação sensível, o momento em que se instaura o desejo) e o estado subsequente ao amor (o momento em que o "eu” se aliena e perde consciência de si). Tem ainda em comum o recorrer ao discurso da poesia e o hipostasiar da figura da mulher – Ideia, Verdade, Deus.

[] H.B.[]


[1] Sobre a Primavera de Rodrigues Lobo, diz Mª. de Lurdes Belchior: «O essencial, a atitude e os sentimentos de Nise, está expresso no verso; na prosa que se segue, esboça-se um episódio que confirma ou amplifica o que os versos continham. Neste caso, a prosa é, por assim dizer, a exemplificação da doutrina contida nas endechas.», Op.Cit., p. 122. Este processo é igualmente detectável em Eloy de Sá Sotto Maior e Fernão Alvares do Oriente, entre outros.

[2] Ibid., p. 124.

[3] Segundo Mª. de Lurdes Belchior: «No caso do Desenganado, o verso continua a servir de veículo, sobretudo à comunicação dos sentimentos e à sua expressão. Mas dir-se-ia que o autor, levado pelo gosto crescente do conceptismo e alegorização, se alonga em histórias que têm por personagens figuras como O Entendimento, a Paciência, a Razão, o Sofrimento, a Honra, o Primor, etc.,» Op. Cit., p.122. Pode acrescentar-se que este processo é igualmente detectável, por exemplo, em Eloy de Sá Sotto Maior e Fernão Alvares do Oriente.

[4] Como o faz Padrón, e entre nós, Henrique da Mota e alguns poetas do Cancioneiro Geral, seguindo o exemplo da Hypnerotomaquia de Francesco Colonna.

[5] Como o dirá mais tarde, Fernão Alvares do Oriente: «isto a certa ventagem respondeu Amâncio que às outras artes faz a poesia, que, como é obra puramente do entendimento, não há quem nele doutrem se queira reconhecer por preferidoin Lusitânia Transformada, Op. Cit. p.119.

[6] M. L. Belchior, Op.Cit., p.121.

[7] Mircea Eliade: «Le langage peut exprimer naivement le "tremendum", ou la "maiestas", ou le "mysterium fascinans" par des termes empruntés au domaine naturel où à la vie spirituelle profane de l'homme. Mais cette terminologie analogique est due justement à l'incapacité humaine d'exprimer le "ganz andere": le langage est réduit à sugérer tout ce qui dépasse l'expérience naturelle de l'homme par des termes empruntés à celle-ci même.» Le Sacré et le Profane, Gallimard, Paris, 1965, p.14.

[8] Consultado na edição francesa: Des Fureurs Heroiques, Soc. d'Éditions "Les Belles-Lettres", Paris, 1954.

[9] Este desgaste semântico é reconhecido pelos próprios poetas que utilizam aquela estratégia, sejam estrangeiros, como Sir Philip Sidney – em Astrophel et Stella  Aubier, Éditions Montaigne, Paris, s/d.(bilingue) ­-, ou portugueses, como Baltazar Estaço, por exemplo: «... a sua poesia, como toda a poesia ao divino da época, aceita, quando não intensifica, as engenhosidades e requintes formais da poesia profana. Coisa semelhante ocorre como petrarquismo: Baltazar Estaço condena e ridiculariza os tópicos da tradição poética petrarquista, mas nos seus poemas, tal como acontece aliás com outros poetas ao divino e com os poetas místicos espanhóis da segunda metade do século XVI, utilizou abundantemente vários elementos característicos da poética petrarquista, em particular a antítese e o paradoxo. Quer dizer, a poesia ao divino, embora anti-petrarquista por intenção doutrinal, acaba por ser solidária da tradição formal petrarquista.» V. M. Aguiar e Silva, Op. Cit., pp. 309-10.

[10] Neste sentido, é interessante a temática deste "Triunfo de la Muerte" de D. Francisco de ­Portugal: «Con las flechas de Amor se armo la muerte/ Aun más religiosa que atreuida/ El deshacer, en venerar convierte/ Toda respecto alli, nada homicida,/ Priuilegio immortal, se unio de suerte/ Con la primera la segunda vida/ Que lo mortal passando a lo divino/ Beato é ben chi nasce a tal distino.» in Arte de Galanteria, fol. 9.

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