Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[ III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 4. O Caminho para o desengano

    4.1  O desengano e a escrita

    4.2  Os “Santos Desenganos” em Laura de Anfriso

iii - Conclusões prévias

 


]  4. O caminho para o desengano [

      É já  um lugar comum da crítica radicar a temática amorosa na tradição cortês que, nos primórdios da nossa produção literária, poderá corresponder a uma primeira fase das manifestações da herança neo-platónica.

      O amor cortês – invenção dos trovadores – surge como uma recusa desdenhosa de limitar o amor à simples satisfação do instinto sexual. É a partir desta concepção que se desenvolvem as teorias (e práticas) do eros ocidental, enquanto sublimação ou espiritualização do impulso elementar. Elaboradas no decurso do renascimento dos séculos XII e XIII (a "rinascitá" italiana) atingem a sua glória com o "Dolce Stil Nuovo" para rapidamente degenerarem em maneirismo. Os seus representantes, os "Fedele D'Amore" ocidentais, vão caracterizar-se pela sua vocação para o sofrimento (endura) e desejo de absoluto. Constroem todo um ritual amoroso em que está implícito, não só a ocultação do amor e do seu objecto, como também a necessidade de afastamento dos amantes (o obstáculo que instaura e alimenta a paixão, em Dennis de Rougemont [1]) de modo a suspender indefinidamente a satisfação do desejo.

      Eros assume formas patológicas: é o sindroma do Amor «hereos» ou «heroycos» [2], parente chegado da melancolia «nigra» e «canina». Manifesta-se por insónia, anorexia, e um estado de apatia geral, a que se contrapõe o brilho do olhar. Os sintomas estão ainda presentes em Diogo Bernardes:

Não sei que remedio tenha, não sei que

Conselho tome em tanta pena & dor,

Trago na fronte escrito o meu amor,

Vos não o vedes, todo o mundo o vê:

 

Infinita belleza, & pouca fé‚

Nos olhos tristes, na perdida cor,

Não vedes vós o fero, & viuo ardor

Que por vós sinto longe, ou perto estê? [3]

É pelo olhar que se comunica a infecção: a imagem do/a amado/a penetra no espírito pelos olhos e, através do nervo óptico, comunica com o espírito sensível (o pneuma) que forma o senso comum.

      A patologia erótica do amor cortês surge valorizada positivamente. É resultado de uma vontade deformante que força uma inversão de valores no que respeita ao conceito de doença: o mal amoroso é a verdadeira saúde da alma e do corpo, porque constitui a receita de uma experiência espiritual suprema.

      Em Siervo Libre de Amor, uma novela-tratado sobre o amor em prosa e verso, escrito entre 1430-41, Juan Rodrigues del Padrón resume os três capítulos que correspondem aos três momentos do caminho para o "desengano":

O seguinte tratado vai partido em três partes principais, segundo três diversos tempos que em si contém, figurados por três caminhos e três árvores consagradas que se referem a três partes do homem, a saber: ao coração e al livre arvítrio e ao entendimento, e a três vários pensamentos daqueles. A primeira parte prossegue o tempo que bem amou e foi amado; figurado pela verde murta, plantada na espaçosa via que dizem ser a de bem amar, por onde seguiu o coração no tempo em que bem amava. A segunda refere-se ao tempo em que bem amou e não foi amado; figurado pela árvore do paraíso [álamo branco ou árvore pópulo] plantado na via descendente que é a do desespero, por onde quis seguir o desesperado livre arbítrio. A terceira, e final, trata do tempo em que não se amó nem se foi amado; figurado pela verde oliva, plantada na muito agreste e angustiada senda, que o servo entendimento bem quisera seguir, por onde seguiu, depois de livre, em companhia da discrição. [...] pela qual seguem muito poucos, por ser a mais fácil de falhar e mais grave de seguir. [4]

      Nesta longa citação descreve-se o triplo caminho de acesso ao desengano, associando-se, a cada etapa, um tempo, um órgão do corpo humano, uma forma de pensamento, uma árvore, e também uma divindade da mitologia greco-latina:

1º. Momento

2º. Momento

3º. Momento

(engano)

(engano)

(desengano)

Amor correspondido

Amor não correspondido

Não amor

Coração

Livre Arbítrio

Entendimento

Passado

Presente

Futuro

Via larga

Via descendente

Via agreste

Murta

Álamo branco

Oliveira

Vénus

Hércules/Diana

Minerva

 

A via descendente – uma peregrinação cujo início é marcado por uma mudança de roupa – é também equiparada a uma "descida aos infernos" [5] e relacionada com o pópulo branco de Hércules no canto VIII da Eneida, vv.276 [6]. No prefácio a este autor, António Prieto [7] salienta como fontes de maior influência a Fiammetta de Boccacio, as Metamorfoses  de Ovídio e o "Trionfo de las donas" de Petrarca. Tanto pelas fontes, como pela esquematização que recorda os palcos de correspondências da tradição hermética e também pela temática, esta hipotética versão inicial do caminho para o desengano poderá, de imediato, ser equiparada ao percurso neo-platónico para atingir o estado de morte-na-vida [8] que tem a sua origem nos pressupostos do amor cortês tal como veiculados por Dante e Petrarca.

      O esquema atrás elaborado, a partir da teorização de Padrón, mantém-se relativamente correcto em paralelo com a evolução do conceito de desengano, especialmente se se considerar a imagética recorrente para cada um: o primeiro momento (nível do corpo e da prosa?), relacionado com os "enganos" de amor, está ligado à figura da Primavera; o segundo (nível da alma/pneuma e da poesia/drama?), relacionado com os "enganos" de fortuna [9], associa-se ao Verão, demarca-se por uma mudança de estado passagem de cavaleiro a pastor, mudança de terras, trajo, ou nome sendo tradicionalmente determinado pela presença da figura feminina de Diana; o terceiro momento (nível do espírito do silêncio [10], ou da escrita alegórico/filosófica?), que corresponderá a uma situação de indiferença, a ataraxia do sábio estóico, em paralelo com uma desmascaração que se pode resumir no revelar do segredo individual sempre associada à morte, à passagem do amor profano ao divino, e à substituição (ou fusão) de Diana por Deus/Cristo [11].

     Desde o Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, são numerosos os autores portugueses a debruçarem-se sobre o tema:

Poeta do desengano é Bernardim Ribeiro. E Camões e Pero Andrade de Caminha, Frei Agostinho da Cruz, D. Francisco Manuel de Melo, os poetas da Fénix Renascida, etc., todos cantam o desengano – desengano amoroso ou desengano da vida e dos bens da Fortuna. António da Fonseca Soares (Frei António das Chagas), Pe. Manuel Bernardes e outros pregam, pedagogicamente, o desengano, para que o homem se defenda das coisas efémeras. O desengano é, nalguns casos, saboreado: "quem quiser ledo viver/ saiba-se desesperar" (D. João Manuel, in Cancioneiro Geral , tomo II, p.31). [12]

e cada abordagem individual, que se apresenta mais ou menos cifrada, deixa transparecer os mesmos pressupostos. Na Lusitânia Transformada diz Célia ao seu amado Pradélio, que a julgava morta:

E Eu viva estou, amigo me replicou sorrindo-se que tu morto estás ainda nessa morte, que a miséria humana injustamente tem por vida... e não mostres nesse teu pranto enveja da minha sorte, pola glória desta vida que possuo, em que não tem o tempo e a fortuna jurisdição algüa, por estar já  livre da prisão escura, em que me teve aquela tirania que vós outros chamais vida. [13]

A articulação dos textos, seja escamoteada ou não, é sempre tripartida, e como exemplo mais evidente recorda-se a novela pastoril de Francisco Rodrigues Lobo:

A articulação lógica dos três painéis do tríptico (de Francisco Rodrigues Lobo) parece ser clara: É Primavera, ou a Revelação. A segunda, a Peregrinação ou percurso para o conhecimento. Quanto à terceira, Desenganado, o título em língua portuguesa exige, sem dúvida, uma reflexão semântica Desenganado‚ é em linguagem corrente – e actual –, o desencantado, aquele que perdeu as ilusões, o desiludido. Contudo, uma vez mais, o jogo do segredo, da ambiguidade, desta vez polissémica, intervém. que desenganado é isto‚ aquele que já não vive enganado (trompé) é, em suma, aquele que se libertou do engano e da mentira e entrou, finalmente, na posse da Verdade. Eis, portanto, segundo creio, a descodificação global do tríptico. Primavera – o primeiro painel – ou a assunção da mentira universal, representada na beleza enganadora das flores e da sua efémera transitoriedade. A Peregrinação – o segundo painel – ou a exploração do Universo, esse transcendente "correr mundo" que faz parte dos arquétipos da aventura humana. Percurso difícil de iniciação que leva, finalmente, à posse definitiva e triunfante da Verdade: o Graal. [14]

E a articulação tripartida desencadeia a associação com um outro percurso, o de Adão como símbolo do homem em geral do paraíso, à queda [15] e à salvação. Percurso que – embora não pela ordem que aqui se apresenta – António Cirurgião relaciona com a "via mística":

É uma viagem penosa, mas triunfante, desde o inferno da ilusão e do purgatório do desengano ao paraíso do amor divino. No fundo talvez pudéssemos dizer, mantidas as devidas proporções, que se trata da jornada que os místicos dizem fazer as almas a caminho da união com Deus: via purgativa, via iluminativa e via unitiva. A primeira poderíamos representá-la por aqueles poemas em que os pastores choram os males do passado; a segunda, pelos poemas em que se põem em contraste as "sem razões do mundo­ sacrílego" com as grandezas do Criador; a terceira via seria representada pelo último poema, em que os pastores, despojados de tudo quanto é mundano, já  se encontram em união íntima com Deus: "E vós, pastores, que no peito entrada/ Destes ao Rey celeste, homem divino."

Aqui temos nós a poesia bucólica restaurada à sua pureza primitiva: os pastores da Lusitânia Transformada, como os pastores do Evangelho de São Lucas (II, 15-20), encaminham-se para o presépio para adorar e louvar o Deus menino. Vistas bem as coisas, no final da novela, assistimos à abjuração total do pastoralismo pagão de Teócrito, Virgílio e discípulos. [16]

Resta acrescentar que esta informação não está totalmente correcta no que respeita à recusa do paganismo, uma vez que o Natal vai ser celebrado no bosque de Diana – o que implica mais uma síntese do que conversão religiosa:

...lhe deu por alvitre que estava mui perto do bosque de Diana que buscava, para o qual ela também estava de caminho com os mais pastores naturais e comarcãos, para celebrarem em a presença das sagradas ninfas a solenidade do dia seguinte. [17]

Mas atingir o desengano é sinónimo de salvação, e também de revelação, de encontro com o divino, só possível através do êxtase.

      E é o êxtase amoroso/espiritual que está na base das reformulações do amor cortês levadas a cabo pelos filósofos de Florença. Da polémica entre Ficino e Pico della Mirandola sobre as traduções de Platão (nomeadamente de O Banquete) e sobre o cotejar de poemas de Guido Cavalcanti (o autor da Primavera), vai nascer uma nova teorização que pode ser entendida como uma segunda fase no evoluir deste processo.

       Ficino usa a palavra "furor" para definir a possessão platónica. A agitação violenta do ser, a que Leão Hebreu vai chamar «desenfreamento»: «...o desenfreamento não é próprio do amor lascivo, mas‚ característica comum a todo o amor eficaz e grande, seja ele honesto ou desonesto; [...] Quem pode afirmar que nos amores honestos se não acham desejos maravilhosos e desenfreados? Qual o amor mais honesto que o divino? Qual mais inflamado e desenfreado? Nem sequer se governa pela razão...» [18]. O estado excessivo que ultrapassa a razão e aliena o homem ecoando Bernardim Ribeiro, diz Vasco Mouzinho de Castelbranco: «Desconhecido de si mesmo na mudança/ Quando a vezes a mi, por mi pergunto/ Quem fui responde que me não conhece...»[19].

         No entanto, Ficino considera que, quando ligado ao amor, o excesso acaba por ser conhecimento, porque é conversão e iluminação divina, e Deus o seu princípio e fim. O estado platónico é semanticamente valorizado, e passa a ser aplicado aos estados superiores da alma. Por sua vez, a alma está ligada ao corpo por:

... um corpo muito fino, quase não-corpo e quase já alma; ou quase não alma e quase já corpo. Na sua composição há um mínimo de natureza terrestre, um pouco mais de natureza aquática, ainda mais da natureza aérea. Mas o máximo pertence à natureza do fogo estelar. [20]

Este fogo, que se manifesta através do olhar e "arde sem se ver", é o grande agente da fascinação, e o maior componente da substância única que põe os seres em relação mútua. Segundo Leão Hebreu:

Porque o mundo e as suas coisas tem tanto amor, quanto todo ele está unido e enlaçado com todas as suas coisas à guisa de membro de um indivíduo; de outro modo, a divisão seria causa da sua total perdição; e como não há nada que faça unir o universo com todas as suas diversas coisas, a não ser o amor, segue-se que o amor ‚ causa do ser do mundo e de todas as suas coisas. [21]

Trata-se pois do pneuma universal a que Ficino chamou "eros": «A paternidade da equação eros=magia, cujos termos são sem dúvida reversíveis, pertence a Ficino» [22]. Deste modo, se eros é o elemento que assegura a colaboração entre as forças do universo, e se o amor é a força que assegura a cadeia ininterrupta dos seres, então o mago e o amante agem de modo idêntico. Ambos operam sobre o mesmo campo (pneuma [23]), lançando a sua rede para atrair a si determinado objecto. Enquanto o mago procura controlar coisas, indivíduos, a sociedade, anjos ou demónios, o amante procura controlar o aparelho pneumático do ser amado. Os processos são idênticos e o objectivo o mesmo, ligar ou vencer o(s) outro(s), estabelecer vínculos.

      Na sua reformulação do "amor hereos", Ficino vai considerar que o ser amado tem um papel secundário, e que o verdadeiro objecto de eros é o fantasma, a "sombra", a imagem do(a) amado(a) que ocupa todo o espírito do amante, para aí se transformar em sujeito, ficando aquele desprovido de si próprio o amador que se transformou na coisa amada, por virtude do muito imaginar, ou Segundo Leão Hebreu:

Em suma, digo-te que, embora atrás tivéssemos definido o amor em geral, a própria definição do perfeito amor do homem e da mulher é a conversão do amado, com desejo de que se converta o amado no amante, E quando tal amor é igual em cada uma das duas partes, define-se como conversão de um amante noutro." [24]

Como solução para a perda de identidade, existe a hipótese de que o amado, aceitando o amor, ceda ao amante o seu espaço interior (o seu pneuma), para que este possa existir: o 1º. momento no caminho para o desengano [25]. Caso não exista reciprocidade, caso o amante não seja correspondido 2º. momento do caminho para o desengano o amador reduz-se à sua não existência, à morte na vida, como o Pérsio de Bernardim Ribeiro:

Mal pode ser esquecida

a cousa mui desejada;

lembrança n'alma empremida

não pode ser apartada

se se não aparta a vida.

 

Em quanto me vires vivo,

não me verás descansar,

pregunto-te, Fauno amigo,

como pode repousar

quem traz a morte consigo?

 

Ou ainda e sempre Camões: 

Morrendo estou na vida, e em morte vivo;

Vejo sem olhos e sem língua falo

E juntamente passo glória e pena  [26].

        Pico della Mirandola, a partir deste processo de alienação que condena por intersubjectivo, vai formular a morte de amor como experiência mística pura, a partir da recuperação da «mors osculi» ou «morte di bacio». O amante‚ símbolo da alma, a amada ‚ a inteligência, e o seu beijo a união extática. A «morte di bacio» será uma extinção corporal acompanhada de um êxtase intelectual: «A «morte di bacio», contemplação plena das inteligências angélicas, é um arrebatamento ao céu, uma «vacatio» durante a qual o corpo fica em estado de catalepsia[27]

      É o impulso que leva à fusão extática amante/amado, base provável das teorias dos "Fedele d'Amore", que vai ser retomado como ideia básica do "furor heróico" de Giordano Bruno. A sua teoria sobre o amor é também a formulação de um método para alcançar o conhecimento. Bruno representará, ­então, uma última fase da tradição neo-platónica neste período – discípulo de Nicolau de Cusa e de Copérnico, ataca Aristóteles com base no Timeu, mas invoca mais a tradição pitagórica do que a platónica propriamente dita.

      O furor – que em Ficino é aliado à teoria dos humores e apresenta graus diversos – surge em Bruno como um impulso único de um coração cheio de amor que evoca tanto o dom da poesia como o êxtase. Cognomina-o de heróico porque o seu objecto é supra-natural, e o homem capaz de tal amor terá de ser um herói. Este herói é a personagem humana que pode manipular, pela sua vontade, os fantasmas que se instauram no seu interior (a imagem do objecto amado), é aquele que controla o seu mecanismo fantástico e através desse processo que contém tanto de arte de memória quanto de magia consegue elevar-se ao conhecimento do mundo inteligível. Mas é também aquele que tudo aprende sobre o amor, para aprender­a não amar . No "Triunfo de Amor" de D. Francisco de Portugal, diz-se:

Negada toda el alma a los sentidos

De atributos humanos respetada,

Que venciendose a si dexo vencidos

Al imperio de affectos destinada

Las lisonjas de Amor, rayos temidos,

Que tan bella dià pisa adornada

Vencida vanidad, despojo rico,

No con altre arme, que col'cor pudico. [28]

          Será oportuno referir aqui a adequação das figuras de Ícaro e Dédalo, aqueles que se alcançam em directo à Ideia: mas enquanto o filho, tal como a borboleta em torno da chama, queima as suas asas e se precipita no mar por imprudência atingindo a morte (ou um desengano ficiniano?); Dédalo que Tagarro transforma em figura principal do mito, ou funde com seu filho na formulação «Icaro Dedaleio» (livro II, Ode 9, vv.66) é aquele que não só se liberta do labirinto, como regressa à terra depois de um vôo bem controlado (metáfora do desengano bruniano?).  Bruno resume, então, a um único os três caminhos para o desengano, mantendo a representação do terceiro momento: aquele em que não se ama, nem se é amado.

            O encontro com a Verdade, a Ideia, ou Deus, desencadeia, assim, uma experiência paradoxal: é triunfante e definitivo porque fica registado na memória do indivíduo‚ é efémero e nunca final, porque, sendo alcançado através do êxtase a saída de si próprio se perde no momento em que a alma retorna ao corpo, como reconhece Leão Hebreu:

bem verdade que nesta vida não é tão fácil alcançar essa beatitude (copulação com Deus); e mesmo quando se pudesse, não é assim tão fácil permanecer sempre nela. Isto porque, enquanto vivemos, o nosso intelecto está de certo modo vinculado à matéria deste nosso frágil corpo. Por este motivo, alguém que chegou a tal copulação nesta vida, não permanecia sempre nela em virtude da ligação com o corpo: pelo contrário, depois da copulação divina, tornava a reconhecer as coisas corpóreas como dantes; [29]

Um problema filosófico que Camões também equacionou em poesia [30]. Impossível de coabitar na materialidade e de se sujeitar ao tempo, a saída de si torna-se um instante de revelação que, no entanto, vai marcar e transformar, definitivamente, o indivíduo – e logo, o seu discurso.

[] H.B.[]


[1] Dennis de Rougemont, O Amor e O Ocidente, Morais, Lisboa, 1989.

[2] I. P. Couliano, Éros et Magie à la Renaissance, Flammarion, Paris, 1984, p. 81.

[3] Diogo Bernardes, "Soneto XVI", Rimas Várias, Flores do Lima, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa, 1985, p. 64.

[4] Juan Rodriguez del Padrón: «El siguiente tratado es despartydo en tres partes principales, según tres diversos tiempos que en si contiene, figurados por tres caminos y tres arbores consagrados, que se refieren a tres partes del omne, es a saber: al coraçon y al libre alvedrio y al entendimiento, e a tres varios pensamientos de aquellos. La primera parte prosigue el tiempo que bién amó y fué amado; fygurado por el verde arrayhan, plantado en la espaçiosa via que dizen de bien amar, por do siguió el coraçon en el tiempo que bien amava. La segunda refiere el tiempo que bien amó y fué desamado; fygurando por el árbor de parayso, plantado en la deçiente via qu(e) es la desperaçión, por do quisiera seguir el desesperante libre alvedrio. La tercera, y final, trata el tiempo que nó amó ni fué amado; figurado por la verde oliva, plantada en la muy agra e angosta senda, que el siervo entendimiento bien quisiera seguir, por donde seguió, después de libre, en compañia de la discreçión. [...] por la qual syguen muy pocos, por ser la más ligera de fallyr y más grave de seguirin Siervo libre de Amor, Castalia, Madrid, 1980, p.65-66.

[5] A partir da definição de descida aos infernos de Mircea Eliade: «Se retirer dans une cachette ou descendre dans une chambre souterraine équivaut, rituellement et symbolliquement, à une “Katabasis”, à un “descensus ad inferus” entrepris en vue d'une initiation.“ in De Zalmoxis a Genghis-Khan, Payot, Paris, 1970, p.35. Diz-nos Mª. Leonor C. Buescu: «...descer aos infernos, possibilitará uma ruptura com a existência comum com vista a uma regeneração, constitui afinal uma experiência – e um rito – capaz de conduzir à fundação de um novo modo de ser. O tema da catábase como descida ou, simplesmente, como percurso em busca das raízes do ser para que tudo  possa recomeçar, é um tema aliado com o da catarse, enquanto purificação através do aniquilamento dum passado que é necessário regenerar e sobre o qual actuam, contraditoriamente, esquecimento e anamnese.», "O Regresso ao Ramalhete” in Ensaios de Literatura e Cultura Portuguesa, Editorial Presença, Lisboa, 1985, p. 104.

[6] Refere-se o passo ao altar erigido em honra do herói para celebrar – em 12 de Agosto – a recuperação dos bois roubados por Cacus: «... en commémoration d'un si grand exploit, ceignez votre chevelure de feuillage; invoquez, la coupe à la main, notre dieu commun et versez le vin avec empressement.” A peine avait-il dit que le peuplier bicolore, cher a Hércule, voila sa chevelure de son ombrage, et noua ses feuilles autour de sa tête, et que la coupe sacrée lui emplit la mainin L'Eneide, Flammarion, Paris,­1965, p.179.

[7] António Prieto, Op.Cit., p.11-18.

[8] Esta perspectiva filosófica da subida da Alma até‚ ao divino tem a sua contrapartida no gnosticismo, enquanto percurso interno de transformação individual: ”Historically there is an even more far reaching aspect to the ascent doctrines than their literal meaning. In a later stage of ”gnostic" development (though no longer passing under the name of Gnosticism) the external topology of the ascent through the spheres, with the successive divesting of the soul of its wordly  envelopments and the regaining of its original acosmic nature, could be ”internalized” and find its analogue in a psychological technique of inner transformations by which the self, while still in the body, might attain the Absolute as an immanent, if temporary, condition: an ascending scale of mental states replaces the stations of the mythical itinerary:» Hans Jonas, The Gnostic Religion, Beacon Press, Boston, 1963, p.165.

[9] Amor e Fortuna aparecem de par em Sá de Miranda: «Amor e Fortuna são/ dous deuses que os antigos/ ambos os pintaram cegos;/ ambos não seguem rezão;/ ambos aos mores amigos/ dão mores desassossegos;/ ambos são sem piedade;/ ambos não lhe tomais tino/ do querer ou não querer;/ ambos não falam verdade:/ Amor é cego minino,/ Fortuna é cega mulher.» in Obras Completas, I, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1976,­p.62; e também em Camões: «Depois que quis Amor que eu só passasse/ Quanto mal já  por muitos repartiu,/ Entregou-me à Fortuna, porque viu/ Que não tinha mais mal que em mim mostrasse... » in Líricas, Op.Cit., p.198.

[10] Bem mais tarde, num romântico inglês Wordsworth também o silêncio (ou a incapacidade de escrever) se associa à mente filosófica: ”Though nothing can bring back the hour/ Of splendour in the grass, of glory in the flower;/  We will grieve not, rather find/ Strenght in what remains behind;/ In the primal sympathy/ Which having been must ever be;/ In the soothing thoughts that spring/ Out of human suffering;/ In the faith that looks through death,/ In years that bring the philosophic mind.», "Intimations of Immortality From Recollections of Early Childhood - An Ode", in The Penguin Book of English Romantic Verse, Penguin Books, Harmondswoth, 1978, p.138.

[11] Para Mª. de Lurdes Belchior: «O fatalismo atribuído às leis da ventura, que predestinam a vida, não parece muito conforme com a doutrina ortodoxa da liberdade do homem. Poetas houve que, conscientes da dificuldade de conciliar o poder do Destino ou da Fortuna com o livre arbítrio, os "cristianizaram".» Op. cit., p.66.

[12] Ibid., p.42.

[13] Fernão Álvares do Oriente, Lusitânia Transformada, Op. Cit., p. 303.

[14] Mª. Leonor C. Buescu, "A Dialéctica do segredo pastoril..." Op. Cit.,  p.97-8.

[15] Em António Cirurgião a queda é associada ao pecado de amor: «... só há uma saída possível para aquelas personagens da Lusitânia Transformada que alguma vez foram vítimas desse pecado: encontrar a salvação pelo desengano.», Op. Cit., p. 266. Igualmente Hans Jonas se pronuncia sobre o problema da ”queda", mas onde o seu sentido é alargado ao cosmos: «the soul or spirit, a part of the first Life or of the Light, fell into the world or into the body. This is one of the fundamental symbols of Gnosticism: a pre-cosmic fall of part of the divine principle underlies the genesis of the world and human existence in the majority of gnostic systems.», Op. Cit., p.62.

[16] António Cirurgião, Op. Cit. , p.273.

[17] Fernão Álvares do Oriente, Op. Cit., p.442.

[18] Leão Hebreu, Op. Cit. , I, p.48.

[19] Vasco Mouzinho de Castelbranco, "Soneto XXX", in Discurso Sobre a Vida e Morte de Santa Isabel... , Off. de Manuel Lyra, Lisboa, 1590, fol.74v.

[20] I. P. Couliano: «...un corps trés tenu, presque non-corps et presque déjà âme; ou presque non-âme et presque déjà corps. Dans sa composition il y a un minimum de nature terrestre, un peu plus de nature aquatique, encore plus de nature aèrienne. Mais le maximum appartient à la nature du feu stélaireOp. Cit., p.14.

[21] Leão Hebreu, Op. Cit. , II, p.147.

[22] I. P. Couliano: «La paternité de l'équation éros=magie, dont les termes sont sans doute renversables, appartient à Ficin.», Op.­Cit., 1984, p.125.

[23] Camões: «Bem vês que por Amor se move tudo,/ E não há quem de Amor se veja isento;/ O animal mais simples, baixo e rudo,/ O de mais alevantado pensamento; Até debaixo d'água o peixe mudo/ Lá  tem de Amor também seu movimento;», "Écloga V", in Líricas, p.305.

[24] Leão Hebreu, Op. Cit. , I, p.45.

[25] Camões: «Se da alma e do corpo tens a palma,/ E do corpo sem alma não tens dó,/ Há dó do corpo só, que está sem alma,/ Pois sem alma não vive o corpo só,» “Écloga V”, in Líricas, p. 309.

[26] Bernardim Ribeiro, "Écloga I" in Obras Completas, vol. II, p. 15. Camões, "Sextina", in Líricas, p.375.

[27] I. P. Couliano: «La morte di bacio, contemplation plenière des intelligences angéliques, est un ravissement au ciel, une "vacatio" pendant laquelle le corps reste en état de catalepsie.» Op. Cit., p.89.

[28] D. Francisco de Portugal, "Triunfo de Amor", in Arte de Galanteria, Op.Cit., fol.9.

[29] Leão Hebreu,Op. Cit., I, p.42.

[30] Camões: «Mas tu, ó terra de glória,/ Se eu nunca vi tua essência,/ Como me lembras na ausência?/ Não me lembras na ­memória,/ Senão na reminiscência.// Que a alma é tábua rasa,/ Que, com a escrita doutrina/ Celeste, tanto imagina,/ Que voa da própria casa/ E sobe à pátria divina.// Não‚ logo a saudade/ Das terras onde nasceu/ A carne, mas é do Céu,/ Daquela santa cidade/ Donde esta alma descendeu,», "Babel e Sião" in Líricas, p.96.

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