Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[ III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 4. O Caminho para o desengano

    4.1  O desengano e a escrita

    4.2  Os “Santos Desenganos” em Laura de Anfriso

iii - Conclusões prévias

 


]  4.2 Os "Santos Desenganos" em Laura de Anfriso [

      Sendo metáfora do êxtase que é, simultaneamente, revelação de todo o conhecimento e encontro com o divino, o Desengano adquire uma conotação sagrada e pode ser apelidado de Santo Desengano. Laura de Anfriso é apresentada como uma «santa tragédia». A referência ao sagrado repete-se mais adiante:

Não são isto Canções de Amor profano

   Mas são hüas escadas verdadeiras

   Pera poder subir ao desengano.

                               (E.D. vv. 272-74)

A obra define-se como um código – um manual filosófico – a seguir para alcançar o estado em que não se ama, nem se é amado.

      O facto de o termo aparecer no plural – os «Santos Desenganos» – indicia que, em Tagarro, o processo não é único, e o desengano não se alcança de uma vez por todas [1], mas sim, por etapas, a diversos níveis, por "secções". Há, seguramente, um relativizar de todo o percurso, que é, de algum modo, reduzido à sua dimensão mais humana [2]. Tanto mais humano quanto, no final, se admite ter falhado [3], não se ter atingido os objectivos propostos.

      Embora igualmente mencionado na epístola e éclogas, é nos livros de Odes – como acima se referiu – que melhor se esquematiza o percurso em direcção ao desengano.

      A primeira Ode (livro I) apresenta, até‚ aos vv. 130, como "eu" de enunciação o pastor Anfriso, o que só vem a ser revelado no v.131 por um narrador que toma à sua responsabilidade os versos restantes até ao final. Anfriso dirige-se aos seus pensamentos que voaram demasiado alto, trazendo-lhe dissabores, louvando os discretos que se escondem da fama: «Oh como vive bem quem bem se esconde!» (vv. 11), apoiando este verso com uma citação de Ovídio; os motivos são a experiência de «amor e fortuna» (vv. 18). Pede então ao amor/menino que o poupe com suas setas:

   Mas elle perfiaua,

   E hum chuueiro de bronze aos ares daua.

 

Logo me vy perdido por aquella,

   Que foi do mundo gloria;

                   (vv. 29-32)

Descreve seguidamente os problemas que lhe são provocados pela deusa fortuna, e pela inveja:

Eis que hum monstro de formas mil deseja

Tragaruos; eilo abrindo

   Sulfureas bocas de danada inueja,

   Monstro, a quem a fortuna

   Deu, com nenhü saber, lingoa importuna.

                              (vv. 57-60)

cujos efeitos são reforçados pelas referências das notas aos comentários de Mateus, 3 [4], Job, 39 [5], o capítulo 9 do Apocalipse [6] que é associado a Plínio, e novamente Job, 16 [7]. A isto acrescenta-se a inconstância da amada:

   O praser falso, a esperança breue;

   Foy de vidro a firmesa

   Daquella, que era exemplo de bellesa:

 

  Oh de fortuna, & Amor duros cutellos!

                              (vv. 73-6)

em que a nota refere o comentário de S. Jerónimo ao Salmo 115 [8], e David face a Saul (Samuel, I, 18) [9]. Aconselha depois sua alma a que fuja a tais tiranos, e dirija o seu olhar para o Céu – a nota indica a «fuga saeculi» de Sto. Ambrósio, cap. 4. a primeira fonte de amor que ensina "santos desenganos" (vv. 85), enumerando seguidamente os motivos para seus desgostos:

Esquiuança de alheia fermosura;

   Gostos nunca alcançados,

   Tristes carrancas de fortuna escura,

   Escassa, & infanda sorte,

   Me háo de fazer achar da Cruz o norte.

                              (vv. 91-95)

Esta enumeração traz consigo implícita a dificuldade de substituir os amores terrenos pelos divinos, que também pode ser interpretada como uma dúvida teológica. É o canto do «mal dos pensamentos», topos que, funcionando como uma tomada de consciência da efemeridade das coisas terrenas, vai permitir o acesso ao divino: «Que então mais vos ireis a Deos unindo.» (vv. 100). A estes versos corresponde uma longa nota em que se nomeiam os comentários de S. Ruperto sobre Jacob e Labão [10], Sto. Agostinho sobre Isaías, 26 [11], Teof(rasto ?) sobre Marcos 8 [12] S. João Nazianzo sobre o Salmo 21 [13], a homilia de S. João Crisóstomo sobre Mateus 10 [14],S. Jerónimo sobre Provérbios 26 [15], e S.Idiora (sic) lib. 2 De amore Dei, cap.5. que resumem situações de "traição", seja ela "positiva" ou negativa. Dedica então os cantos aos mortais, dando a sua história como exemplo: «De um santo desengano alta vitória» (vv. 105), dedicatória acompanhada de mais uma série de referências, bíblicas: Job 18 [16],  Ezequiel 12 [17], Salmos 140 [18] e Provérbios 7 [19]; de comentários dos padres da Igreja: S. Tomas, S. Gregório, S. Ambrósio, S. Jerónimo; do Novo Testamento: Epístola aos Demetr. (?); e da Antiguidade: da Antiguidade Romana de (Flávio?) José, livro 11, cap. 3 , cantos que são tanto mais suaves quanto maior o sofrimento. E as dores vão ser tornadas públicas no «teatro do mundo» (vv.112), embora os temas não sejam «materias de cothurno», mas insolências de amor e invejas que, repetidas, mais levam ao desengano [20] encontra-se já, por um lado, a intenção moralizadora do narrador, e por outro a ligação do discurso de Anfriso ao drama, tanto mais que, nos versos seguintes o "eu" de enunciado atribui o canto ao pastor:

Assi cantaua o peregrino Anfriso,

   Por ver se em tais memórias

   Acha do desengano o paraíso,

   Assi o vay buscando,

   Com a lyra seus passos animando.

                              (vv.131-35)

Começa uma segunda parte em que Anfriso diz partir em busca do desengano, que é apresentado como estado «paradisíaco», sem sofrimento.

          Pode então afirmar-se que o primeiro momento do poema se institui como uma zona teórico-didática (onde o narrador toma à sua responsabilidade o papel desempenhado pelo discurso em prosa das novelas pastoris) em que se apresentam os diversos motivos do engano, à qual se vai contrapor uma segunda zona "prática" exemplificada na personagem de Anfriso. A estrofe seguinte, novamente atribuída ao pastor, é um pouco misteriosa:

Não tece histórias não, prompto Aristarco [21]

   Se o título te alteraõ:

   De Italia, & Portugal consulta o arco:

   Se em fim lho das por erros:

   Orelhas leua para muitos perros.

                              (vv.136-40)

Pela primeira vez, nas Odes, se afirma o mistério que envolve a escrita. Tendo em conta que o texto tem por título Laura de Anfriso, que o pastor se queixa da inconstância da sua amada, e que a Laura tradicional é a de Petrarca, parece possível afirmar que se fornece aqui uma pista para a interpretação do sentido da personagem feminina. Mais ainda, avisa-se o leitor contra a possibilidade de "erro" nessa interpretação – reiterada pela referência a Aristarco –, instando a que busque a verdadeira imagem de Laura, e não apenas a superficial ou alegórica.

      Nas duas últimas estrofes, que dão origem a uma terceira parte, emerge de novo o narrador – assumindo este agora o discurso do filosofo desenganado – para fazer um comentário, que transforma todo o poema numa digressão. O narrador pronuncia-se primeiro sobre o canto de Anfriso, salientando a sua intenção de «divertir a lembrança» (vv.­143), e depois sobre a própria personagem (de quem assim, de novo, se demarca), chamando-a de «retabulo de penas doloroso» (vv.145). Laura aparece como um motivo de sofrimento, mas alternativo: «Outras vezes de Laura magoado» –reiterando a ideia exposta ao longo do poema que o sofrimento é (mais) de fortuna e amores (em versos que ecoam o soneto de Camões). A distância do narrador face à personagem torna-se explícita quando aquele se afirma como confidente de Anfriso e, simultaneamente, como «tradutor» dos cantos, com intenção expressa de enganar o leitor:

   Eu q(ue) as rimas lhe ouui, no vulgo errado

   As deixo publicadas,

   Na estampa da memoria eternizadas.

                              (vv.148-50)

O narrador distancia-se da sua personagem, e este afastamento vem a revelar-se como fundamental para o evoluir do tema do desengano, pois em poemas subsequentes perde a subalternidade hierárquica de «secretário», assumindo uma posição crítica (grandemente apoiada pelas notas) face ao comportamento e ideais de Anfriso.

      Ainda neste livro, o relacionamento entre Laura e Anfriso só vai ser retomado na Ode 8, sob o tema do «pensamento» de Anfriso que julga ter esquecido Laura, mas que, por lapso, regista o seu nome a meio dos seus trabalhos de escrita. Também este poema se divide em três partes, sendo a segunda uma dupla digressão. Dá-se então a palavra a Eros menino que se gaba, diante de Vénus, de ter ferido Anfriso e abalado a sua impassibilidade perante o amor. Eros solicita sua mãe para que apresse o casamento do pastor com uma alta Lusitana, filha de um «excellente que ilustrou Portugal com nome ingente». Desenvolve-se uma segunda digressão (por encaixe) narrando a visita de Vénus à noiva a ninfa Laura –, na praia onde «Doris com o Tejo é misturada». Vénus descreve Laura – que preenche todos os requisitos da imagem feminina petrarquista, ou da Ideia neo-platónica, como se atesta relativamente às notas marginais (e adiante se desenvolverá): Laura é mais bela do que a própria deusa, que confessa adorá-la e morrer (ou ter morrido) por ela. Esta "morte" e subalternização de Vénus (a deusa que rege o 1º. momento do caminho para o desengano), traz consigo implícita a promoção de Laura à posição da figura feminina que rege o 2º. momento: Laura é, aqui, Diana.

      É ainda Vénus que descreve a Laura o espaço de Anfriso – que a espera como sua senhora – prometendo-lhe um «himeneu sagrado». A estas descrições segue-se um momento de dramaticidade em que, "ausente" o narrador, se presentificam duas posições (a de Laura e Anfriso) distanciadas uma da outra, e que gradualmente se aproximam:

Ia vem Anfriso amante

   No meo de hum sublime ajuntamento

   Altiuo e tyriunfante,

   Dando feria ao tormento,

   Em que trazia atado o sofrimento.

 

Ia a pompa gloriosa,

   E os couches de ouro fino marchetados

   Ante a porta famosa

   Estão Laura parados,

   Ia para vos leuar apparelhados

                              (vv. 121-30)

A personagem de Vénus funciona aqui como uma observadora omnisciente que vê, em simultâneo, os dois espaços. Há, portanto, uma tentativa de sabotagem da linearidade do discurso pela combinação do advérbio "já" com o jogo de tempos verbais.

      Na primeira estrofe deste exemplo encontra-se a formulação «Já vem... dando». O advérbio "já" (vv.1), que agrava a intensificação do sentido de presente do verbo em "vem", escamoteia a função do gerúndio "dando" (vv.4), que refere a acção posterior e inacabada. O verbo "vir", que é auxiliar, apresenta-se inicialmente como principal, só depois sendo reconhecido como secundário. Cria-se, assim, um valor afectivo de "aceleração" do movimento que se desenvolve gradualmente rumo ao local em que o sujeito (Vénus) se encontra.

      Na segunda estrofe o processo repete-se criando um efeito inverso: «Já ... estão... parados». O aspecto conclusivo do processo verbal criado pelo particípio "parados", transforma-se em estatismo por interferência do auxiliar "estão" (voz passiva de estado), e o advérbio "já" intensifica a sua duração até ao presente, insinuando a demora.

      Em ambos os casos os verbos auxiliares são usados no presente do indicativo – enunciam um facto actual, que ocorre no momento em que se fala, ou desencadeiam um presente histórico. Este aspecto, reforçado pelo advérbio, impõe-se ao particípio da segunda estrofe que por si só não indica se a acção é passada, presente ou futura. Assim, o particípio passado tem tendência para se associar ao tempo verbal da estrofe anterior, transformando-a na oração principal e, ao secundarizar-se, dá origem a uma relação de simultaneidade entre os dois acontecimentos. Este complexo jogo verbal pode ser detectado noutros poemas. A Ode termina com a intervenção do narrador, que relata a cena de despedida entre Vénus e Laura, e comenta, na última estrofe, a desistência do casamento por parte de Anfriso: «Ai que os gostos de Anfriso são de vento». (Um comentário que pode ser irónico, tendo em conta o sentido primeiro do vocábulo Laura, como se verá no ponto III.3.1).

      Na terceira Ode do segundo livro é nos apresentado um "eu" de enunciação que, pelo tema, se pode considerar ser a personagem de Anfriso. O "eu" escreve o nome de Laura num álamo e, à semelhança do que acontece em Crisfal [22], as letras crescem com a própria árvore. As letras são consideradas como «signos» da alma que ultrapassam os da astrologia na sua capacidade de vir a eternizar Anfriso. A alma de Anfriso é, portanto, idêntica – ou está nas mesmas circunstâncias de – a própria árvore, que se reflecte no rio, para ver o nome que em si tem gravado. Neste momento invoca-se como metáfora o mito de Narciso, e em nota refere-se Ovídio, nas Metamorfoses. O poema continua narrando o comportamento do rio, que não mais quer passar para melhor reflectir o nome de Laura [23], considerando que este momento só foi suplantado pelo da presença física da própria [24]. Com o tempo aumentam as letras, e com elas, tanto a fortuna do álamo, como a inveja das águas.

      Tendo em conta a nota sobre Narciso acima referida, pode afirmar-se que, por detrás dela, de novo se esconde a posição crítica do narrador [25]. Os versos dizem:

Ah como vos contemplo

   Que mouido do ar sonoroso, & brando,

   Sois  de Narciso exemplo:

   Pois para a agoa olhando,

   Vos estais de vós mesmo namorando.

                              (vv.31-35)

      Anfriso enamora-se da sua própria imagem, que é Laura: o amador "é" a coisa amada, perdeu o seu espaço vital que está ocupado pela "sombra" feminina [26], e o amor de Anfriso revela-se, assim, como uma situação de ignorância e ilusão "enganosas" [27]. O narrador coloca-se na posição do filósofo, ou do "mago" de Giordano Bruno: é aquele que conseguiu controlar o seu próprio "aparelho pneumático", e devido a esta sua posição de lucidez devido a ter alcançado o ”desengano” é-lhe possível reconhecer a situação "hierarquicamente" inferior de Anfriso o qual, neste momento, está ainda na segunda fase do processo, segue o caminho de quem ama e não é amado, encontra-se no estado de alienação ficiniano.

      As Odes 6 e 7 deste livro terão de ser lidas em conjunto, pois oferecem-se como ameaça e concretização de uma recaída nos enganos. Um "eu" de enunciação interpela os seus "pensamentos" aconselhando-os a que não cedam à tentação:

Olhai o que fazeis:

   Não vos torne a açoutar o Amor tirano

   Em seus laços cruéis:

   Deixai tão graue dano,

   Olhai que apostatais do desengano.

                              (vv.6-10)

O "eu" está ameaçado de um segundo "engano amoroso" pelo recordar do primeiro ao qual correspondeu um belo canto sobre Laura, cuja qualidade órfica é descrita numa pequena digressão. Por sua vez, o desengano é apresentado como uma ideologia, ou uma religião devido ao termo "apostatar". O poema termina incitando os "pensamentos" à razão. Mas a memória do passado torna-se uma ameaça ao presente, ameaça que se concretiza no poema seguinte:

Tudo se me trocou fado, & ventura,

   Ficando só comigo a sorte escura

   Pera cujo tormento

   Era mister de bronze o sofrimento;

   Bem que a golpes tão duros,

   Nem Mausoléos de bronze estão seguros.

                              (vv. 19-24)

A tentação não resistiu uma alma/mausoléu de bronze, já que os sofrimentos que experimenta lhe são superiores. A personagem é, assim, "acordada" para a vida, para novas dores, mas consegue recuperar o seu estado de indiferença anterior, vencendo o «sofrimento sobre a natureza» (vv.25) e exibindo-se como exemplo a seguir: «Todos quantos souberam de tristeza/ Venhão ver minhas dores,» (vv.26-27).

      Foi então "vencido" o engano amoroso, e começa o caminho para o desengano de fortuna (político). Na Ode 10 do livro II o canto de Anfriso insurge-se contra a cobiça que está a destruir o império português – o topos já vicentino dos "fumos da Índia". É esta Ode que, por oposição, recorda "O Mostrengo" de Pessoa. O homem comum é horacianamente comparado ao marinheiro numa tormenta, cujo barco "virgiliano" (ou camoneano) luta contra os elementos em fúria altas rochas, mar irado. A sua pequenez é reiterada pelo facto de estes elementos serem controlados por Deus. Daqui parte para o tema dos Descobrimentos, que são ousadia humana, atrevimento e desatino. Anfriso sente os mares estreitos, e a monarquia escamosa canta «...em figura/ Paradigmas de Célio em coua escura.» Constrói-se uma analogia entre a prisão de Célio, ausente há muito, e Anfriso:

Rethorico sentir, lingoagem muda,

   Os compassos mortais da algema ruda

   Em compendio retrata:

   Ate que no instrumento a voz dezata,

   Prophetica harmonia

   Echo vivo de Celio parecia.

                              (vv.67-72)

A profética harmonia do canto de Anfriso torna-o eco de Célio. Sob este último nome – que reaparece noutros momentos ­-  as notas insinuam que poderá também esconder-se a figura­de D. Sebastião [28]. O poema termina com o comentário do narrador à reacção de Anfriso perante um canto conjunto de Proteu e Laura: o primeiro diverte-o, a segunda magoa-o.

      No livro seguinte (III) apenas as odes 7 e 10 se reportam a Anfriso. Na primeira o pastor dirige-se às ninfas do Tejo, informando-nos que já foi poeta desse rio. Solicita-lhes que o oiçam e julguem o canto das suas exéquias:

Dizei, donde aprendestes,

   Alma minha, hum sofrer de tanta dura?

   Ah quam mal escolhestes!

   Que mal que tanto dura,

   Cedo vos ha de por na sepultura.

                        (vv.21-25)

Nesta estrofe, a repetição da palavra «dura» em rima, salienta o seu duplo significado de tempo (duração) e qualidade (dureza/endura) do sofrimento. Como sua metáfora e digressão evoca-se o tema do fascínio da borboleta pela luz (da alma/"psique" pela Ideia) [29] que se enleva e morre na luz da vela acesa, onde também se evidencia o comprazimento no sofrer:

Porem este costume

   Alma so no sofrer vos tras quieta;

   Bem como fas no lume

   A simples borboleta

   Que até não se queimar anda inquieta!

                              (vv. 31-34)

para a seguir se comparar esse sofrimento aos suplícios de Tântalo e Tício indiciando, portanto, um processo reiterativo de mortes sucessivas [30]. Com o canto, as ninfas  deixam o riso, trocam as verdes telas, por «...roupas negras, roxas e amarellas» [31]. Estes versos adquirem um sentido emblemático, se lidos em função da Ode seguinte (livro II, Ode 8). Sob a égide da "fonte resplandecente" de Horácio que vai ser usada como metáfora para a sua alma – o "eu" descreve uma paisagem paradisíaca e primaveril, onde se destaca o «freixo verde» [32].

      Na última Ode deste livro (10), Anfriso interpela as «perpetuas saudades» que não o abandonam, e define-se como «desterrado» e «desesperado». Ao descrever os seus sofrimentos, lamenta-se:

Oh duros rudimentos!

   Crime de concussão multiplicado

   Em vis entendimentos,

   Balas me tem tirado

   Vede que culpa foy? ser estrelado.

            (vv.16-20)

O termo «concussão» ultrapassa o seu sentido de ”violência", pois em nota afirma-se a glosa de tratados políticos sobre o assunto (Inocêncio e Cornélio [33]), alargando-se ao crime por traição e abuso de poder. A par do último verso desta estrofe, a referência a «concussão» ultrapassa o simples desgosto amoroso e vem reforçar a hipótese, que se discute adiante, de que Anfriso/D. Duarte terá sido perseguido por tentativa de recuperação do trono para Portugal, ou por abuso de poder. O último verso desta estrofe é um dos que, na edição do século XVIII, apresenta uma pontuação diferente que lhe altera o sentido: «Vede que culpa foi ser estrellado!». Enquanto no primeiro caso o ser «estrelado» ou astrologicamente predestinado se oferece como o motivo que desencadeia os sofrimentos/«concussão», no segundo é o próprio sofrimento que já  está  pré-determinado pelas estrelas. Sujeito ao fatalismo astrológico, Anfriso aparece aqui, já  não como figura individual, mas como representante de uma nação, de um povo – explícito nos vv. 31-2: «Assi me lamentaua/ O pouo todo, que meu mal sentia;». O povo associa-se ao seu sofrimento – numa continuidade própria à relação entre governante e governado –, reiterando, pois, a perspectiva política.

      Por fim toma a palavra o narrador que desenvolve um comentário sobre os versos anteriores:

Assi cantava Anfriso

   Metamorphosis de honra exercitando:

   Quem he flor, he Narciso;

   Não vay Almas dobrando

   Mas sombras Nominais multiplicando.

 

Não sofre o altiuo peito

   As pinturas que admitte há verde estado

   Por não perder conceito

   Heliodoro [34] honrado

   Entra em diuersos nomes disfraçado.

 

Affeão hum generoso

   As disculpas de Augusto [35] em otra idade.

   Por hum disfarse honroso 

   Não dourar a verdade,

   Perde o Sorga tiâra, & dignidade.

                        (vv. 41-55)

Aqui o narrador reafirma o mistério em que envolve a sua escrita, e confessa o uso de "disfarces" para encobrir a personagem de Anfriso. Pela referência a Heliodoro, "filho de Teodósio da raça do sol" e pelas «mentiras» de Augusto(/Filipe?), não apenas parece pretender-se uma referência a acontecimentos históricos contemporâneos, como também uma associação ao mito imperial (tema que se desenvolverá no ponto quarto).

      No poema seguinte (livro IV, Ode 1) desenvolve-se o tema astrológico, que pode pretender clarificar a culpa de «ser estrelado» dos versos acima. Este tema é associado ao motivo da nau como metáfora do Estado. E mais uma vez sob a égide de Horácio, estrelas e céu reflectem-se no mar dando origem a um «céu mentido». Esta contemplação narcísica do próprio universo desencadeia uma interpelação às águas por parte do narrador:

Vós nestas falsas, & apparentes flores,

   Vos nestes mentirosos resplandores,

   Sustentais vossas glorias,

   Ay daquelle que em tragicas memorias

   Viue lembrado do estado antigo

   Pera ter mõr tormento, & mor castigo

                              (vv.19-24)

que, a seguir, estabelece uma comparação altamente complexa consigo próprio, e com o estado amoroso. Por um lado, o reflexo cósmico implica uma concepção platónica do universo, em que o mundo inferior se apresenta como cópia degradada do modelo celeste ideal. Por outro, o considerar esse reflexo como "mentiroso", associado à reminiscência do "estado antigo", traz implicações religiosas pouco ortodoxas (apontando para um gnosticismo). Se lido à luz das referências de carácter político anteriormente mencionadas, o "eu" (ou Anfriso/D.Duarte de Frechilha, duplo gemelar de Fileno/Célio/D. Sebastião) recorda o tempo pré-filipino da independência e da grandeza da casa de Bragança. Uma terceira interpretação, sob a faceta do desengano, aponta para o momento de satisfação amorosa. A esta complexidade acrescenta-se a possibilidade de um duplo destinatário  (dois "vós") onde um vive da mentira/aparência de realeza dada pelo mundo material, e outro, que é essencialmente rei/espelho do resplendor divino [36]. Este segundo "vós", de essência divina, recorda-se do "Estado antigo" em que foi igualmente espelho «De dous olhos fermosos». O processo de "reflexão" termina porque sendo o "eu" de vidro, as invejas o fazem quebrar-se:

Qual o espelho terso, & cristallino

   Posto nas mãos laciuas de um minino,

   Que vendoo reluzente,

   No chão cahir, o deixa facilmente,

   E depois rindose, & mouendo os braços,

   Se esta vendo contente nos pedaços.

 

Tal eu, fuy noutro tempo espelho viuo,

   Nas mãos me trouxe o minino altiuo:

   E com nouos rigores

   Vendo de minha luz tais resplandores,

   Me foy de pura inueja desfazendo:

   E agora em meus pedaços se anda vendo.

 

Eu me alegro minino deshumano

   De me tratares com tão feo engano;

   A vida mudarey;

   E enfim desenganado viuirey:

   Que de amor, e fortuna altos fauores,

   São vidro fragil, falsos resplandores.

                              (vv.67-84)

Este menino «deshumano» (supra- ou infra-humano), porque «lascivo», pode identificar-se com Eros. Eros, que preside tanto à libertação dos "reflexos" amorosos, como, enquanto "mensageiro pneumático", dos de fortuna – que aqui são claramente políticos –, confirma o alargamento do sentido do conceito de desengano.

      Assim, Anfriso, ao atingir o "desengano" político, que se adiciona ao "amoroso", terá cumprido as duas últimas etapas do processo. Esta ideia é atestada pelas odes 3 e 4 deste mesmo livro. Primeiro, na glosa do encontro entre Dido e Eneias já atrás referida que, exemplificando a morte de amor, associa a figura de Eros (aqui personificando Ascânio, e logo com dupla face) à questão política:

Oh Deos fero, & tirano!

   Oh mentiroso, falso, & lisongeiro!

   Que com settas & enganos

   Ia brando, já guerreiro,

   Poes nossa vida em catiueiro.

 

Os cetros, as coroas,

   Os corações de imperio, & magestade,

   Tudo cruel magoas;

   Ay que toda a vontade,

   De tuas almas sente a potestade

                              (vv.81-90)

A duplicidade de Eros é reforçada pela pluralidade das "suas almas" e a faceta política reiterada pelas notas, que referem A Cidade de Deus de Sto. Agostinho. A Ode termina com uma fala do narrador donde este retira por moral ser «bem aventurado» o que não ama.

       Na Ode 4 Anfriso chora a morte de Laura:

   Ay olhos quao azinha!

   Vos deu olhado o têpo, & a sorte escura!

   Pois que vos chego a ver na sepultura

   Em vossa Primauera

   Sem vos poder dar vida: ah quê pudera!

 

Que he isto breves glorias?

   Como assi vos passais tão de corrida?

   Que cometeo tal vida!

   Pera em sy ver tragedias tão notorias.

   Oh Ingratas memorias!

   Oh como me trareis atormentado?

   Quando por maior magoa for lembrado

   De Laura esclarecida,

   Que vejo em cinza quasi convertida.

                              (vv.19-27)

No entanto, o comentário final do narrador revela que este canto teve por efeito retardar a Morte, e de algum modo "ressuscitar" Laura. A qualidade órfica de Anfriso é reiterada na Ode seguinte (livro IV, Ode 5) que tem por tema as (2ªs.) exéquias do pastor, e apresenta, nas últimas cinco estrofes, o seu segundo epitáfio:

Nesta lagem sombria

   Descança hum sem ventura peregrino;

   O qual quando viuia

   Por força do destino

   Com crueldade sobeja

   Foy alvo de furor, preza de inueja.

                              (vv.55-60)

A esta estrofe corresponde uma nota que indica os comentários dos Padres da Igreja ao Salmo 119 [37]. Nestas duas últimas odes assiste-se, então, à segunda morte das personagens de Laura e Anfriso, morte fictícia ou simbólica, já  que Laura "ressuscita" e Anfriso não pára de cantar.

      A Ode seguinte continua com o tema da morte, associado à ideia de libertação, pelo que dever  ser lida junto com as anteriores. Aqui, o "eu" de enunciação distancia-se novamente de Anfriso – e também de Laura – usando as dores das personagens como termo de comparação para as suas:

Cantor de branca neue

   q em quãto o Rey dos rios vay passando,

   Largais ao vento leue

   O contraponto brando

   Vossas próprias exéquias celebrando.

 

Quanta inueja vos tenho!

   Pois morrendo acabais a triste vida,

   Que eu cansado sostenho

   Tão penosa, & tão comprida:

   Quando has de vir ó doce despedida?

                              (vv.1-10)

O "eu" considera as suas dores maiores ainda que as da personagem, e pede à morte que venha definitivamente, dizendo:

Mas vindo em meu socorro

   Vem morte tão cuberta, & escondida,

   Que não sinta eu que morro;

   Por gloria tão subida

   Me não tornar de nouo a dar a vida.

                              (vv.35-40)

Pode novamente associar-se este discurso ao do narrador que, na sua perspectiva didáctica e teórica, pretender demonstrar que já  terá atingido o estado bruniano de morte-na-vida. Curiosamente, poderá ser despertado desse estado pela própria morte – o "sentir que morro" – que desencadeia um paradoxo: o "sentir" a morte, é ainda, de alguma maneira "sentir", e logo, estar "vivo" sabotando-se, deste modo, a possibilidade de verificação ou confirmação material da indiferença própria do desengano.

      O paradoxo esboçado desenvolve-se na Ode seguinte (livro IV, Ode 7) que tem aquele conceito por tema:

Ah venturosos annos!

   Como vos alõgais de hü se(m) ve(n)tura!

   Mostrandome os enganos,

   Que minha sorte dura

   Por dobrar meus tormêtos me procura.

                              (vv.1-5)

A este lamento segue-se um apelo à morte, para que liberte o "eu" do "desterro" que é a vida de tormentos [38]. Mas a própria aspiração à morte é uma forma de desejo, pelo que também deverá ser abandonada: «Choua, choua­o tormento» (v.23). Os sofrimentos são definidos como «holocaustos» da alma que conseguem tornar os sentidos exaustos, pelo que o sofrimento é bem-vindo e desejado em maior quantidade como prenda da fortuna:

Mas ay que digo & choro?

   Cobiçoso de achar tempos infaustos?

   Fortuna que te adoro?

   Se os sentidos exaustos

   Tenho por fazer dalma os holocaustos?

                              (vv.36-40)

De salientar o alargamento do conceito de "cobiça" que aqui parece cobrir o campo semântico do desejo [39]. Uniformizam-se, deste modo, sob o primeiro vocábulo, todas as manifestações do segundo, da ambição, inveja, avidez, avareza à paixão amorosa. Assim, implicitamente, a "cobiça", fonte de todos os males do mundo e ponto de partida para o caminho de encontro ao desengano, apresenta, igualmente, dois níveis de gradação.

      Retoma-se, no livro IV, Ode 9, o problema da­ predestinação que se revela como política. Introduzido pelo narrador, Anfriso lamenta-se e discorre sobre as evoluções da roda da fortuna e a sua instabilidade:

Ay, diz, Fortuna varia, & sementida!

   Que tão mal me trataste!

   Pois que me derrubaste

   Daquelle alto estado,

   A que tu não me tinhas leuantado.

 

Se tua roda fatal me sublimasse

   Nunca eu me queixara

   Quando me derribara:

   Que he esta tua empresa,

   Derribar a quem poes na mõr alteza

                              (vv.1-20)

O "alto estado" é esclarecido pela digressão dos versos seguintes, que invocam as figuras de grandes governantes. Implícito fica que Anfriso culpa a fortuna por ser rei deposto antes de coroado [40]. Aceitaria descer, se tivesse subido, pois esse seria o percurso normal da fortuna, que determina o destino dos homens. Como exemplo, menciona «Reys, & Emperadores excellentes» (v.30) personificados em César, apelidado de «Monarca do mundo esclarecido». E refere-se que, apesar de toda a sua coragem e sabedoria, o seu êxito resulta dos poderes da fortuna e não de glória pessoal. Também os seus sucessores Pompeu e Damocles – seus «palincestros de sangue» – foram regidos pela roda da deusa. Neste momento as notas referem Curtius, Plutarco, Claudiano, mas principalmente Séneca. Alarga-se, depois, o exemplo dos imperadores/reis às suas próprias línguas, que igualmente pereceram por obra da fortuna:

As lingoas de rubins Grega, & Romana

   Que nectar desparzião

   Ay que de ti tremião!

   No basilico empenho

   q(ue) por algõs lhe deste o mesmo engenho

                              (vv. 76-80)

Anfriso «desmaia» – sai de si – e chora, e o seu choro revela-se como uma outra forma de canto pois as lágrimas são «vozes da alma» (e Anfriso um rio).

      Na primeira Ode do livro V, desenvolve-se ainda o tema da fortuna inimiga, mas agora associada ao desamor de Laura. Anfriso comenta o desengano, começando por comparar a sua vida a um barco:

Como sois combatida!

   Rota barquinha, & mal afortunada

   De minha triste vida!

   I  dos mares tragada:

   I  com duro furor aos Ceos leuada,

                              (vv.1-5)

Esta estrofe é acompanhada por uma citação de Job [41]. Nos versos seguintes, a imagética evolui a partir de duplicações: a rota barquinha já sofreu «naufrágios a pares». Laura – a rocha dura, com alma de bronze/diamante e de «anjo a figura» –, compraz-se com o sofrimento do pastor. Equiparada a Cila, ameaça-o e à sua nau, de parelha com Fortuna/Caribdis. Entretanto, apesar de a sua rota ter sido trocada pela mudança de fortuna, consegue chegar a bom porto – o desengano:

Chegai a este edifício

   Onde o alto desengano venerado;

   Faseilhe sacrificio

   Do vestido molhado,

   Em que se vio Anfrifo amortalhado

 

Deos te salue excellencia

   De triunfantes, santo desengano,

   Filho da nobre ausência

   Morte do amor tyrano,

   Anchora dos que fogem do Oceano.

                              (vv.61-70)

Estas duas estrofes são acompanhadas em nota por uma referência aos primeiros versos do livro VI da Eneida (onde se narra a descida aos infernos do herói) a chegada a Cumes, a ancoragem dos navios, e a visita de Eneias ao templo de Apolo [42], templo, hipoteticamente, construido por Dédalo quando da sua "aterragem" [43]. À sua chegada, o náufrago Anfriso repete os gestos de Dédalo, consagrando os pedaços das velas e restos da sua barca como ex-votos no templo do desengano [44]. Logo que o vislumbra, Anfriso chora de riso, abraça-se com as colunas, beija a terra fria.

Mas o pastor-náufrago aparece seguidamente de novo na sua barca: ou ainda não atingiu, de facto, o desengano, ou foi adoptada uma estratégia que procura exibir a dificuldade do processo pela sua morosidade. Na Ode 3 (livro V), envia os seus suspiros à não nomeada Laura gradativamente referida como «Áspid fermoso», «fera cruel», e depois «peito Angélico», e diz:

Desenganate Anfriso, me dizia,

   Que esposo mortal

   Não há de entrar em minha companhia:

   Só viuo namorada

   Da belleza superna, & increada.

 

Olha aquella belleza tal, & tanta,

   Que por me dar a vida

   Por mi se pendurou na àruore santa,

   Estendendo seus braços,

   Por darem em casto amor doces abraços.

                              (vv.21-30)

Estas estrofes são acompanhadas, em nota, por uma lista de comentadores [45] às primeiras palavras do Apocalipse: «1 - Revelação de Jesus Cristo, a qual Deus lhe deu, para mostrar as coisas que brevemente devem acontecer; e pelo seu anjo as enviou, e as notificou a João seu servo.». A descrição aparentemente negativizada de Laura (que pela referência à serpente adquire não apenas conotações demoníacas, mas também e de novo gnósticas, de qualquer modo, sempre associadas à passagem de conhecimento) é tornada duplamente positiva pela sua relação "cristianizada" com a Ideia platónica, e pelo reiterar da sua função de reveladora a partir da indicação do Apocalipse. A par desta, aparece uma segunda nota marginal apontando os Cantares de Salomão, que reitera a interpretação acima pelo enriquecimento do sentido a dar ao vocábulo árvore: «8.5 - Quem é esta que sobe do deserto, e vem encostada tão aprazivelmente ao seu amado? Debaixo de uma macieira te despertei, ali esteve tua mãe com dores; ali esteve com dores aquela que te deu à luz.». A «árvore santa» não é apenas a cruz de Cristo, mas igualmente a macieira, aqui símbolo de amor e não de pecado. Laura, de inimiga torna-se conselheira:

Estas palauras: tal força tiuerão,

   Que logo em viuas chamas

   O peito congelado me acenderão;

   Ia troco meu cuidado,

   Ia viuo destes bens desenganado.

 

Aqui ao pé dos troncos da espessura

   O mundo desprezando;

   tenho sede, da eterna fermosura

   Nem outra com verdade

   Se gabarâ de minha liberdade.

                              (vv.31-40)

Apesar de todas as suas declarações sobre o ter atingido o desengano, Anfriso continua ainda na sua barca na Ode seguinte (livro v, Ode 4). Vem como «peregrino» e chega à praia para se aproximar do canto de um pintassilgo. Numa digressão, e na hipótese de o pássaro e ele terem a mesma origem (espaço do álamo) avisa-o para que tema os laços do caçador que equipara às redes do amor [46] e depois aconselha ainda:

Não fieis nessas penas de ouro, & verde

   Nem no canto acordado,

   Porqu eu tambem cantei,

   Ay rigoroso fado!

   Quantos tiros, esta alma tem prouado!

                              (vv. 46-50)

Se se considerar que o verde e ouro são as cores dos duques de Barcelos (os segundos filhos dos Braganças), este verso, que atribui essas cores ao pintassilgo, afirma o pássaro como duplo do "eu", associa o desengano à posição social além de  reiterar a possibilidade de Anfriso ser D. Duarte, e ainda, permitir datar o poema como tendo sido escrito antes de 1610, se não de 1605, hipotéticas datas do nascimento do segundo filho de D. Teodósio II, o segundo Duarte que, por direito, receberá o título de Barcelos e as suas cores. A problemática histórica será­devidamente discutida no próximo ponto.

      Anfriso e o desengano só vêm a ser retomados no sexto e último livro. Na Ode 9, o pastor parece ter alcançado definitivamente o estado a que aspirava, o que é atestado por uma segunda metamorfose:

Troca seda em burel, em prâto o rizo,

  Na altiva Primauvera o grãde Anfriso

  Descalço, & descuberto

  Se mete nas entranhas de hum deserto,

  Onde hua coua pobre

  O penitente corpo a penas cobre.

                              (vv. 1-6)

Discorrendo sobre a falsidade dos homens – acompanhado em margem por longas notas, inicialmente sobre o Apocalipse [47], e Salomão [48] que reiteram a passagem ao divino, e depois sobre Labão, Job, S. João, nomeados no próprio corpo do texto a personagem despede-se das «glorias fingidas» e propõe-se imitar a Cristo, a quem oferece a própria vida:

Mas já que de tão pouco vos pagais,

   Que esta vida tão misera estimais:

   Eu vola dou Senhor,

   Prendeia por refens de nosso amor,

   Que tomalla eu não possa;

   Se ategora foy minha, agora he vossa.

 

Assi chorava Anfriso saudoso,

   Quando o doce IESVS bello, & fermozo

   Com sembrante de riso

   Os olhos pondo nelle, disse, Anfriso!

   Ouvirão os orizontes,

   Responderão Anfriso os altos montes.

                              (vv. 55-60).

O choro de Anfriso foi ouvido, a sua oferta aceite, e ele é "chamado" – recebeu prova de eleição.

      A última Ode (livro VI) apresenta um "eu" em contemplação do Céu que o leva a recordar: «Onde Amor pendurou minha esperança» (vv.6), e a afirmar que esse mesmo céu foi criado em função de si próprio: «Teatros estrellados,/ Que pera meus olhos estais pintados!» (vv.12). A atracção que mostra no presente, leva-o a imaginar e a desejar a sua futura morte. Numa digressão, o "eu" desloca-se em visita aos «campos de ouro & prata» – visita que é metáfora dessa mesma morte, e logo também "êxtase", saída de si próprio. Distancia-se de si, e agora, ao olhar do presente, junta-se a atracção do passado, que lhe serve de contraponto as estrelas são comparadas aos olhos humanos que o haviam seduzido e que surge negativizada Despede-se então da terra e dos seus bens com intenção de ficar no Céu:

A Deos amor da terra, a Deos cuidado,

   Porque me vejo agora enuergonhado

   Daquella prisão dura

   A vista desta noua fermosura;

   A Deos amor terreno,

   Que me roubão os Ceos com o brãdo aceno.

                              (vv.47-48)

A alma e os sentidos vão ser roubados pela música das estrelas cujos «doces accentos/ Lanção prisões aos peitos mais isentos;» (vv.59-60). Numa digressão, descreve-se, seguidamente, o percurso dos próprios astros e planetas, das constelações – com uma evidente carga astrológica – o doce exército que entre si tece a imagem da guerra e ao qual o "eu" aspira pertencer pois:

A noite desta guerra é sabedoria:

   Quando aquella belleza roubadora

   Com mil graças a molhos

   Settas brãdas me tira aos mesmos olhos

                              (vv.84-87)

O espaço da noite, dos planetas e estrelas, teve como seu representante a amada, neste caso Laura, que evidencia afinidades com Helena e a Violante de Camões [49]. O movimento dos astros é ainda descrito como «arrayal» ao qual o "eu" aspira pertencer, não temendo ser ferido, pois nesse caso: «Luz por sangue correra;/ oh fermozo morrer, quem já  morrera.» (vv. 107-8). O êxtase é associado ao conhecimento, e logo, torna-se revelação reiterando as insinuações feitas pelas notas sobre o Apocalipse. O "eu" imagina então a sua morte e as suas exéquias nesse espaço, descrevendo a sua sepultura e epitáfio:

Sobre puro cristal da sepultura

   Estaria entalhada hua escritura;

   E as letras radiantes

   Serião de topazios & diamantes,

   Onde lavrasse o Amor

   Meu breve nome, os pés do vencedor.

 

Neste sepulcro jaz hum venturoso

   Por nome Anfriso, o qual de saudozo

   As estrellas olhando:

   Ellas aos olhos seus forão apontando

   Com setas amorosas,

   E a vida lhe tirarão de enuejosas.

                              (vv. 121-32)

Este é o terceiro epitáfio de Anfriso, que revela ter perdido a vida por ter olhado demasiado as estrelas. O pastor-náufrago-peregrino terá então atingido o terceiro estado do desengano, o espaço da razão/Minerva, da sabedoria associado à revelação. O seu percurso apresentou marcadamente três etapas, a cada mudança de nível correspondendo uma mudança de estado e de roupa.

      Após a "morte" de Anfriso, o poema continua por mais oito estrofes, em que o narrador assume de novo um discurso distanciado relativamente à personagem declara-se "sombra" e "eco" da voz do seu herói. Dirigindo-se ao leitor, pretende explicar o que para trás ficou dito, embora por vezes as suas palavras esclareçam muito pouco:

Do angelico Doutor a flama altiua

   Foi da alma suspensão; q a Febo esquiva;

   Porque honras de Castalia

   Por humildes julguei, ate que Italia

   Formou o riao (sic) brando,

   Coriscos sem trouões dissimulando.

                  (vv.151-156)

Tradicionalmente, o «angélico Doutor» é São Tomás de Aquino, mas aqui pressupor-se que refira Petrarca, o verdadeiro inspirador, não apenas das palavras, mas também das teorias «dissimuladas» [50]. Poderia ainda estar implícita uma ligação outra com Itália um reconhecimento poético – não conseguido na península? Continuando com um hipotético relato sobre o decorrer do seu trabalho, afirmando «outra obra mais alta/.../ Pudera ser escrita» e acrescenta:

Em fim se obras de gloria a luz não virão

   As algemas de bronze o impedirão;

   E então pelos cabellos

   O tempo me levou a honrar a Delos;

   Como não busco gloria

   Não receo que a neguem à minha historia.

                              (vv. 181-86)

Nesta referência a Delos – o santuário de Apolo e ilha central das Cíclades – culmina uma série de alusões àquele deus, dispersas ao longo dos poemas, e que parecem igualmente confirmar o processo de "morte" e renovação sucessivas que as personagens vão sofrendo. Em primeiro lugar, Apolo, irmão de Artemísia/Diana, é também associado ao Sol, e a um seu culto secreto de origem pitagórica [51], e o seu nome secreto significa "aquele que faz morrer". Assim, enquanto Anfriso se apresenta como servidor de Laura/Diana, o narrador revela-se como seguidor de seu irmão Apolo também o patrono dos poetas desempenhando uma função didáctica e orientadora, acompanhando a sua personagem num duplo e paralelo caminho em direcção ao desengano.

      O poema termina insistindo no mistério voluntário em que se envolveu a escrita:

Morda na mal limada consonância

   Quem inchado vier de alta arrogância,

   Mas tu Leitor prudente

   Escarmenta em Anfriso sabiamente

   Não dê contigo o engano

   Em hua confusão de eterno dano.

                              (vv.187-92)

A primeira parte desta Ode – até ao epitáfio – é toda ela acompanhada de notas sobre temas religiosos. Depois aparece apenas uma nota relativa à última estrofe em que se menciona Plauto – instando o sábio a fugir, ou a reconhecer o perigo. Face ao texto, também este perigo adquire um duplo sentido: ou se refere à possibilidade de erro de leitura, ou à de erro de vida. Anfriso é apresentado como um modelo, que pode servir de advertência ou «exemplum» para que o leitor não siga pelo caminho da cobiça, o "engano", que poder  levar à condenação eterna. Também pode ser que o dano eterno tenha a ver com a impossibilidade de salvar a alma a partir do caminho para o desengano – são muitas as conotações herméticas [52] que dele se depreendem, tanto mais que o  verbo "escarmentar" tem o sentido de "castigar", "prevenir” ou "corrigir" - mas também de "desengano".

[] H.B.[]


[1] Também António Cirurgião refere a pluralidade do processo: «... o pastor, consciente das limitações da felicidade terrena, nem um momento se cria a ilusão de que o desengano e o estado de vida que o leva a abraçar, o põem sem mais ao abrigo de toda e qualquer desventura. De modo nenhum: "militia est vita homnis super terram" é, como nos ensina Job (XIV,1), princípio que Fernão Alvares do Oriente conhecia muito bem.» Op. Cit., p.268.

[2] Veja-se em Diogo Bernardes uma posição bem mais firme: «Nouos casos d'Amor, nouos enganos/ Enuoltos em lisonjas conhecidas,/ De bem falsas promessas, escondidas/ Onde do mal se cumprê grandes danos.// Como não tomais já  por desenganos/ Tantos ays, tantas lagrimas perdidas,/ Pois que não basta a vida, nê mil vidas,/ A tantos dias tristes, tantos annos?//...// Andais, comigo enganos, enganados/ E se o quereis ver, cuiday hum dia/ O que se diz dos bem acutillados.», Soneto lxxvii, in Rimas várias, Flores do Lima, p.134.

[3] Como em Camões: «Oh! Como se me alonga de ano em ano/ A peregrinação cansada minha!/ Como se encurta e como ao fim caminha/ Este meu breve e vão discurso humano!/ Vai-se gastando a idade e cresce o dano;/ Perde-se um remédio que inda tinha;/ Se por experiência se adivinha,/ Qualquer grande esperança ‚ grande engano./ Corro após este bem que não se alcança...» in Líricas, p.177.

[4] O aparecimento de S. João, e o baptismo de Jesus;

[5] Continuação de 38: «Deus responde a Job e mostra-lhe a sua grandeza e sabedoria, e pode-se acrescentar, a ignorância dos homens

[6] A abertura do sétimo selo, a quinta Trombeta.

[7] Job acusa os seus amigos de falta de compaixão e misericórdia: «16.10 Abrem a sua boca contra mim; com desprezo me feriram nos queixos e contra mim se ajuntam todos;... 16.13 – Cercam-me os seus frecheiros; atravessa-me os rins, e não me poupa; e o meu­ fel derrama pela terra;»

[8] Exortação a confiar só em Deus: «115.10 Casa de Aarão, confia no Senhor: ele é seu auxílio e seu escudo;»

[9] 18.21 - Saul promete a primeira filha a David, e dá-lhe a segunda, Mical;

[10] Génesis, 29.21 - Labão engana Jacob, "Em vez de Raquel lhe dando Lia", reiterando-se a acima referida traição a David por Saul.

[11] A promessa de libertação, da ruína dos seus inimigos, e canto de louvor pela misericórdia de Deus.

[12] A segunda multiplicação dos pães com os discípulos no barco; A cura de um cego de Betsaida; A confissão de Pedro; e «28.34 ...Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz, e siga-me.».

[13] «21.11 – Porque intentaram o mal contra ti; maquinaram um ardil, mas não prevalecerão; 21.12 – Portanto tu lhes farás voltar as costas, e com as tuas frechas postas nas cordas lhes apontarás ao rosto.»

[14] O chamamento dos doze apóstolos à sua missão; virar pai contra filho, etc.

[15] «26.22 – As palavras do maldizente são como deliciosos bocados, que descem ao íntimo do ventre.»

[16] Bildad acusa Job de presunção e impaciência: «18.2 – Até quando usareis de artifícios em vez de palavras? Considerai bem e então falaremos.»

[17] «12.12 – E o príncipe que está no meio deles, levará aos ombros e às escuras os trastes, e sairá; a parede escavarão para os tirarem por ela: o seu rosto cobrirá para que com seus olhos não veja a terra. 12.13 Também estenderei a minha rede sobre ele, e será apanhado no meu laço: e o levarei a Babilónia, à terra dos Caldeus, mas não a ver é ainda que ali morrerá.» símbolo do cativeiro da dispersão e profecia contra os falsos profetas, bem como da impossibilidade de alcançar a terra prometida.

[18] Pedido de libertação de inimigos potentes e injustos: «140.5 – Os soberbos armaram-me laços e cordas; estenderam a rede à beira do caminho: armaram-me laços corrediços.»

[19] Uma mulher casada seduz um jovem na ausência do marido: «7.22 – E ele segue-a logo, como boi que vai ao matadouro, e como louco ao castigo das prisões; 7.23 – Até que a frecha lhe atravesse o fígado como a ave que se apressa para o laço, e não sabe que ele está ali contra a sua vida

[20] O mesmo está presente em Diogo Bernardes: «Aqui de largos males breue historia/ Lede vos desamados amadores,/ Que pera dar allivio  em vossas dores/ Das minhas quis deixar esta memória/ Escreui não por fama, nem por glória/ De quatros versos são merecedores,/ Mas por mostrar o mal dos meus amores/ A quem nelles de mim teue victoria...» Op.Cit.,p. 43.

[21] Parece referir-se ao Aristarco de Samotrácia, bibliotecário de Alexandria (entre 181-171 d.C.) e não ao astrónomo de Samos, defensor da teoria heliocêntrica. O primeiro, filólogo, gramático e crítico de Homero é apresentado na Arte Poética de Horácio (vv.450) como modelo do exegeta e do crítico. Recusa a interpretação alegórica, e defende uma leitura consistente com a restante obra de cada poeta.

[22] Ou em Rodrigues Lobo,"Primavera" - Flor 4ª., Poesias, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1968, p.88.

[23] As letras associadas à alma de Anfriso (ocupada pela imagem de Laura), bem como o nome/essência daquela, transformam o reflexo no rio numa reprodução da Ideia.

[24] Encontra-se uma situação menos elaborada em Diogo Bernardes: «Nas agoas de hüa fonte um dia olhaua/ O seu rosto Marillia, doutras cheo,/ Entregue a mil sospeitas d'hum receo,/ Qu'Amor em seus amores lh'ordenaua.// Mansas agoas (dizia) mal cuidaua/ Em tão ledo começo, & ledo meio,/ Que visse hü fim tão triste, & tão alheo/ Do bem, que do meu bem ver esperava...», Soneto xxxxix, Op. Cit., p. 106.

[25] Que igualmente pode conter em si implicações gnósticas: «The Narcissus motif, however, gives merely a particular turn to a mythological idea of much wider currency in gnostic thought, whose original meaning had nothing to do with the greek legend: the idea that either the cosmogonic process or the sinking of the Soul, or generally the downward movement of a divine principle, was initiated by the reflection of the Upper Light in the Darkness below. If we analyze the Poimandres version carefully, we see that it adroitly combines three different ideas: that of the Darkness becoming enamored of the Light and getting possession of a part of it; that of the Light's becoming enamored of the Darkness and voluntarily sinking into it; that of radiation, reflection or image of the Light projected into the Darkness below and there held fast.» Hans Jonas, Op. Cit., p.161.

[26] Em Ovídio, Metamorfoses 3, Narciso: «S'éprend d'un reflet sans consistence, il prend pour un corps ce qui n'est qu'une ombre», Op. Cit., p.100. A ideia repete-se em Diogo Bernardes: «Vendo Narcifo em hüa fonte clara/ A fombra só da própria fermofura,/ De fi vencido (Amor quis por ventura/ Vingar as Nimfas qu'elle defprezara.)// Todo enleuado na belleza rara/ Que feu peito abrafou em chama pura,...», Op. Cit., Soneto cxxviii, Op. Cit., p.193.

[27] Ovídio: «Que voi-t-il donc? Il l'ignore; mais ce qu'il voit l'embrase, et la même erreur qui abuse ses yeux excite leur convoitise», Ibid., p.102; e mais adiante: «Credule enfant, a quoi bon ces vains efforts pour saisir une fugitive apparence? L'object de ton désir n'existe pas.», Ibid., p.103.

[28] Isaías, sobre a ruína e restauração de Tiro: «23.1 Peso de Tiro. Uivai, navios de Tarsis, porque está assolada, a ponto de não haver nela casa nenhuma, e de ninguém mais entrar nela: desde a terra de Quintim lhes foi isto revelado. 15 E sucederá, naquele dia, que Tiro será posta em esquecimento, por setenta anos, conforme os dias de um rei: mas no fim de setenta anos, Tiro será como a canção de uma prostituta. 17 – Porque será no fim de setenta anos que o Senhor visitará Tiro, e ela tornará à sua ganância de prostituta, e terá comércio com todos os reinos que há sobre a face da terra

[29] Este tema da Antiguidade adquire as proporções de lugar-comum no Maneirismo e especialmente no Barroco, após o seu uso por Petrarca e divulgação através do Livro de Emblemas de Andrea Alciati (1531), retomado por Camillo Camilli no seu livro Imprese illustri (1586). Segundo Frances Yates, este ultimo autor, interpreta-o de acordo com a intenção de Petrarca: «Petrarca, says Camilli, meant by this image of the buterfly and the flame that he died in his mistress's presence, but nevertheless felt such sweetness in this that he preferred it to to remaining alive in her absence. But in this emblem or device the flame means science for which the bearer of the device renounces all pleasure and eats up his life, yet feels a secret delight in doing this.», "The Emblematic Conceit in Giordano Bruno's De Gli Eroici Furori and in the Elizabethan Sonnet Sequences" in Lull and Bruno, Collected Essays, I, Routledge & Kegan Paul, London & Boston, 1982, p.187. O tema é igualmente abordado por Camões: «Qual tem a borboleta por costume,/ que enlevada na luz da acesa vela/ Dando vai voltas mil, até que nela/ Se queima agora, agora se consume/ Tal eu correndo vou ao vivo lume/ Desses olhos gentis, Aónia bela/...“ in Líricas, p. 237.

[30] As mortes no plural são um processo que se descobre igualmente nos outros poetas do período.

[31] Em Camões e Diogo Bernardes, o roxo aparece associado à figura de Vénus.

[32] Também em Fernão Alvares do Oriente estes motivos se associam: «A doce primavera/ Não alegra esses álamos amenos/ Quando um aceno teu me faz contente,/ Nem maltratado menos/ Estou de tua condição austera/ Que o freixo que queimou o raio ardenteOp. Cit., p. 33.

[33] Este, apresentado como «ex senatus consulto», deverá tratar-se de Gaius Cornelios, questor de Pompeu, amigo e colega de Gabinio (67 A.C.), que foi a julgamento acusado de «maiestas» e defendido por Cícero com êxito. «Maiestas minuta» trata-se de crime por traição e abuso de poder: «Its prime purpose was to curb the dangerous initiative of proconsuls by making it a crime for them to take an army outside their provinces except under instruction of the government in Romein The Oxford Classical Dictionary, p.641. De um modo geral, esta lei pretende conter possíveis sublevações, mas abarca igualmente o não cumprimento de leis ou instruções emanadas pelo governo.

[34]  O romancista grego Heliodoro (f.220-50 d.C.), auto apelidava-se «filho de Teodósio da raça do Sol». A sua Etiópica, editada em 1534, influenciou Scaliger, Tasso, Calderon e Cervantes.

[35] Referência às sucessivas prorrogações e extensão de poder com que o Imperador foi solidificando a sua posição?

[36] Esta duplicidade de destinatários reais poderia ainda alimentar as suspeitas de que o "Lecenceado" Manuel da Veiga fosse ele também um "disfarce", e sustentar a hipótese remota, e que uma leitura mais pormenorizada afasta, de que o verdadeiro autor da Laura de Anfriso tivesse sido D.Duarte. O processo não seria novo se se considerar o "Tomé de Burguillos" de Lope de Vega, amigo daquele.

[37] Este Salmo apresenta-se dividido em grupos de oito versículos, cada grupo sendo encabeçado por uma letra do alfabeto hebraico, e começa: «Aleph 1 Bem-aventurados os que trilham caminhos rectos, e andam na lei do Senhor.» etc.

[38] Esta ideia da vida como morte está violentamente explícita em Camões: «Quando vim da materna sepultura/ De novo ao Mundo, logo me fizeram/ Estrelas infelizes obrigado;» "Canções" in Líricas, p.471.

[39] Leão Hebreu: «aqueles homens, cuja vontade se orienta para o amor do útil, tem diversos e infinitos desejos, e quando cessa um pela aquisição, outro sobrevém, maior e mais sôfrego, de tal modo que nunca saciam a sua vontade de semelhantes desejos, pois quanto mais possuem mais desejam, assemelhando-se àqueles que procuram matar a sede com água salgada, a qual, quanto mais a bebem, tanto maior é a sede que neles produz. Este desejo de coisas úteis chama-se ‘ambição’ ou então ‘cobiça’.” Op. Cit. , I, p.13.

[40] À semelhança de O Indesejado de Jorge de Sena. Diz D. António: « Sim, quando nasci,/ já era rei, mesmo que nunca o fosse,/ ou fosse ganha essa batalha de Africa/ e o mundo renascesse noutro império./ Já era rei, o rei que ainda não sou,/ o rei que posso nunca vir a ser,/ o rei que não mereço ou... Santo Deus ! / lugar para o Destino, se el'quisesse/ vir, bruscamente, repousar em mim.» (acto II, p.85) ou mais adiante: « Todos... E nunca saberão quem fui./ Nasci antes dos outros, morro depois deles,/ como se Deus se esquecesse que viver é tempo, e que, entre ver o mundo e perdê-lo sempre,/ não basta o brilho ansioso de uma coroa distante.../ A verdadeira, a c'roa do meu povo,/ rolou de mãos alheias sem passar por mim, sem de leve ao menos me pousar na testa!/ O peso que senti não era o dela,/ não era do Destino a irmanar-me à Terra,/ mas a montar-me... azémola dos Fados!.../ Gerações de arminho ainda julguei que fosse,/ pesando-me nos ombros como ardor do Império!» (acto IV, p. 151), Paisagem Editora, Porto, s/d.

[41] Job descreve o estado miserável em que caiu: «30.12 A direita se levantam os moços; empurram os meus pés, e preparam contra mim os seus caminhos de destruição

[42] Virgílio: «Cependant le pieux Enée gagne les contreforts où régne la haute statue d'Apollon et la retraite écartée de la Sibylle hérissée, antre monstrueux, où le prophète de Delos lui souffle sa grande âme et sa grande volonté, et lui découvre l'avenir. Déjà ils pénètrent dans les sous-bois sacrés de Trivie et sous ses lambris d'or.», L'Éneide, Op.Cit., p. 131.

[43] «Dédale, d'aprés la légende, fuyant le royaume de Minos et ayant osé se confier au ciel sur ses ailes rapides, cingla par une route inaccoutumée vers les Ourses glaciales, et aterrit enfin, avec légéreté, sur le bastion de Chalcis. A peine arrivé sur cette terre, il te consacra, Phébus, la rémige de ses ailes et te dressa un énorme temple.», Ibid. p.131.

[44] Recordando, mais uma vez, Camões: «Amor, c'o a esperança já  perdida,/ Teu soberano templo visitei/ Por sinal do naufrágio que passei,/ Em lugar dos vestidos pus a vida/...» in Líricas, Op.Cit., p. 171.

[45] Ricardo de Santo Victor, Beda, Joaquim e Gregório.

[46] Em mais um eco de Camões: «Está o lascivo e doce passarinho,/ Co'o biquinho as penas ordenando,/ O verso sem medida, alegre e brando,/ Espedindo no rústico raminho./ O cruel caçador, que do caminho/ Se vem calado e manso, desviando,/ Na pronta vista a seta endireitando,/ Lhe dá no Estígio lago eterno ninho...», in Líricas, Op.Cit., p. 153.

[47] A visão do trono da majestade divina; os vinte e quatro anciãos e os quatro animais: «4.10 Os vinte e quatro anciãos prostravam-se diante do que estava assentado sobre o trono, e adoravam o que vive para todo o sempre; e lançavam as suas coroas diante do trono dizendo: 11 Digno‚ só, Senhor, de receber gloria e honra, e poder; porque tu criaste todas as coisas, e por tua vontade são e foram criadas.»

[48] Cântico: «5.2 - Eu dormia mas o meu coração velava: eis a voz do meu amado, que estava batendo:»

[49] Camões, Líricas, Op.Cit., p.10.

[50] Lugar comum reconhecido por D. Francisco de Portugal: «En Italia acaso se encontró la fina galanteria, a su modo, en la Corte de Orbino, y al nuestro, en los sentimientos del Petrarca, que con tanta pureza los acredita, que no faltó quién se atrevoesse a platonizar grandes mysterios debaxo del nombre de Madama Laura, pero en aquellas Cortes, más lugar tenien clérigos que justiciososin Arte de Galanteria, Op.Cit., p.42.

[51] F. Buffière: «Sur le plan littéraire ou philosophique, on peut dire, en gros, que cette equation Apollon=Soleil a été vulgarisée dans le monde grec par les Stoïciens, et notamment par Cléanthe: et Cléanthe l'a prise lui même aux Pythagoriciens./ Euripide, dans une tragédie dont nous n'avons que fragments, Phaéton, fait allusion à cette identité de l'astre et du dieu, en la presentant comme une doctrine connue seulement de quelques initiés. Devant le cadavre de son fils, la mére de Phaéton, Clymène, lance au ciel cette apostrophe: “Soleil au splendide éclat, comme tu ­m'as perdue,/ moi et lui: c'est avec raison que parmi les mortels tu est appelé Apollon (celui qui fait mourir)/ par celui-là qui connait les noms secrets des divinités, Les Mythes d'Homère, Soc. d'Édition "Les Belles-Lettres", Paris, 1973, p. 188.

[52] Nomeadamente cátaras, como reconhece António Cirurgião: «Quase se diria que existe como que uma visão cátara da vida na Lusitânia Transformada, sobretudo se estiver em conta também que todos os pastores, alguma vez enamorados, se vêm a desiludir do amor, em virtude dos males que causa, e a refugiar-se no seio da natureza, em harmoniosas repúblicas arcádicas, onde o Mito da Idade de Ouro se transforma em realidade.», "Prefácio" a Lusitânia Transformada, Op.Cit., p. xxxviii.

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