Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[IV – A Relação Poesia-História]

 

 2. O(s) Mecenas

    2.1  O(s) Mecenas na obra

       2.1.1  Nas éclogas

       2.1.2  Nas Odes

    2.2  Anfriso como personagem histórica

 


]  2.1.1 Nas Éclogas [ 

      A primeira écloga é também dirigida a um D. Duarte. O narratário é invocado como representante de uma futura «dourada idade» (vv.7-9), e mais adiante, um dos pastores lamenta-se perante o seu rebanho:

   Oh gado doce e brando!

   Buscai de oje em diante outro pastor:

   Que eu deixando estes montes,

   Por fartar minha dor

   Vou buscar outros climas, & e orizontes,

                              (vv.72-78)

que talvez pudesse ser lida como uma referência às viagens ou partida do Marquês de Frechilha para Espanha. Como já  se referiu, o D. Duarte filho de D. Teodósio, só sai pela primeira vez de Portugal em 1634, portanto sete anos depois da publicação do texto.

      Por sua vez, a Écloga II é dedicada ao «Excellentíssimo Príncipe/ o Senhor D. Theodosio Du/que de Bragança indo a Lisboa/ na vinda del Rei». Esta é a polémica viagem de Filipe III, II de Portugal, cuja visita começa em 22 de Abril de 1619, vindo a entrar oficialmente em Lisboa a 29 de Junho, e a atravessar a fronteira de regresso a 23 de Outubro do mesmo ano. D. Teodósio vai recebê-lo a Elvas, regressa a Vila Viçosa, e só mais tarde parte para Lisboa, de barco. A écloga refere-se à primeira fase da viagem iniciada em 27 de Abril de 1619 [1].

      O texto estabelece uma curiosa divisão territorial:

Quando vos auzentastes do terreno

   De vossa amada pátria venturosa

   E as praias fostes ver do Tejo ameno:

                              (vv.37-39)

Insinuando que a pátria é Vila Viçosa, e logo, o resto do reino "estrangeiro" refere ainda as consequências que a partida do Duque tem sobre a natureza e seus habitantes representados pelos pastores Salício e Frondoso. O narrador propõe-se reproduzir os cantos daqueles, que testemunhou, dedicando-os não apenas a D. Teodósio, mas também a D. Duarte, seu filho:

Ouui DVARTE Principe esforçado,

   Verdadeiro penhor do grande Atlante

   E costumaiuos já  a ser inuocado.

                              (vv.79-81)

Esta passagem – acompanhada por uma referência marginal à écloga messiânica de Virgílio – pode ser um dos momentos que estará na origem de algumas das confusões entre tio e sobrinho. O narrador dirige-se a D. Teodósio II e seu filho, – D. Duarte de Guimarães, que na altura terá cerca de 14 anos, e logo, poderá não estar habituado a grandes louvores – como narratários de um texto que celebra a sua deslocação. Mas o narrador revela não ter saído de Vila Viçosa, ou seja, não faz parte da comitiva da viagem, mas sim dos que ficam à espera do regresso, falando, portanto, para um destinatário imediato que também ele não terá partido. Deste modo, parece pertinente a afirmação de que a Écloga se destina, de facto, a D. Duarte de Frechilha, e que, retoricamente, toma por tema a viagem dos familiares daquele.

      Há assim um "concurso" entre pastores, repreendendo D. Teodósio pelas mágoas que deixou com a saída de Vila Viçosa. O encontro histórico é sucessivamente referido: «Pastor que vas buscando outro Pastor/ Que lá do Maçanares veo ao Tejo» (vv.97-98); o que, a par do espanto dos «Zagais de Madrid» pela qualidade do Duque: «Vendo os que de Xarama se abalarão,/ Que se trazem Pastor, Pastor acharão.» (vv.167-68), pretende estabelecer um paralelismo de hierarquias (e fazer uma pequena provocação) entre D. Teodósio e Filipe II (III).

      Nos versos seguintes lança-se a hipótese de uma permanência definitiva do Duque na capital:

   Ay temo que te queira em suas praias

   Por segundo Pastor a grande Aldea;

   Mas inda que o deseje tu não queiras:

   Vemte vemte Pastor a estas ribeiras.

                              (vv.173-76)

De facto, Filipe II prometera a D. Catarina de Bragança nomear D. Teodósio como Condestável (o décimo-quinto) do Reino, o que vem a cumprir sem, no entanto, lhe conceder o exercício do cargo [2]. A Duquesa espera que a situação se altere após a retirada do Arquiduque Alberto, o que não se vem a verificar: Filipe nomeia cinco governadores – entre eles Miguel de Moura –, o que desencadeia o protesto de D. Catarina datado de 29 de Julho de 1593. D. Teodósio II acaba por desempenhar o cargo, como é tradição na sua família, mas apenas nominalmente, até à sua morte em 29 de Novembro de 1630.

      A terceira écloga é novamente dedicada a D. Teodósio, e apresenta como título: ”SOBRE A ENTRADA DO/ Duque em Lisboa levando comsigo o/ Duque de Barcellos». Corresponde à partida de Vila Viçosa em 11 de Maio de 1619 – segunda fase da viagem – com destino às Cortes de Lisboa, para jurar o príncipe D. Filipe, futuro Filipe III, em que o Duque vem também acompanhado de D. Francisco de Mello. D. João tem cerca de 15 anos de idade. O Duque apresenta-se de luto nas cortes, e o Duque de Barcelos vestido de verde e ouro, o que parece provocar alguma celeuma. Diz ainda Caetano de Sousa [3], que o Duque embarca em Aldeia Galega (actual Montijo) num bergantim verde com letras de ouro dizendo: «Manus Domini non est abbreviata», como alusão particular, a que «a gente dava diferentes sentidos, e o duque reservava para si a própria significação».

      D. Teodósio está de luto pela morte de sua mulher, D. Ana Velasco (1607) e de sua mãe, D. Catarina (1614). E a écloga – mais um concurso entre dois pastores, Lico e Nisardo – começa pelo louvor à Duquesa-mãe e sua linhagem. O narrador refere, seguidamente – como atrás se descreveu – os concursos das próprias Musas em louvor do «Duque merecedor de largo Império» (vv. 315).

      A Écloga IV é dedicada a D. Duarte agora, e pela primeira vez, apelidado de «Marquez de Frechilha». É esta a écloga que apresenta o complexo jogo com o ponto de vista, a que se associam sucessivas analepses, originando uma estrutura circular que, em última instância, atribui a Anfriso a autoria do canto. Embora não seja claro de imediato, o "eu" de enunciado é a personagem do pastor Anfriso – «Assim cantava o desterrado Anfriso» – cujo canto é relatado pela personagem de Sileno: «Então cantava aquelle Paraiso,/ Que Portugal gozou tão breves annos;» (vv.­234-35). Os  versos iniciais tornam-se, portanto, numa analepse sobre o passado do pastor, actualmente desterrado da vida em sociedade, pastor que já  cantara nas praias do Tejo como igualmente se refere na écloga I. Tendo em conta a referência a um passado paradisíaco do país evidentemente o período pré-filipino e pressupondo-se que o desterro terá que ver com uma estadia prévia do(s) Bragança(s) na corte de Lisboa ou de Madrid, esta personagem só poder ser o primeiro D. Duarte, uma vez que o segundo só nasce em 1604 (já durante a ocupação filipina). Está explícito o desterro, e implícito que D. Duarte está despojado de hierarquias e bens na «aldeia» (o seu sobrinho já nasceu "despojado").

     Após o louvor de todos os descendentes de Bragança, o Sileno refere D. Teodósio (de novo enquanto o herói de Alcácer-Quibir) e dirige-se a seu irmão, o destinatário, D. Duarte:

Então cantou senhor o nome vosso

   Dizendo glorias tais, tantos louuores,

   Que apenas com chorar contallos posso.

 

DVARTE, disse, gloria dos senhores,

   Que já  corte fizeste na minha Aldea,

   Quando de vós gosauam meus Pastores.

 

Alli Éuora clara se recrea

   Porque da vista vossa está gosando;

   Mas ay que lhe ameaça a noite fea!

 

Ay que está Mançanaires enuejando,

   Ditosos campos meus, vossa ventura!

   Ay que ja tanto bem nos vay roubando.

 

Ficou a triste Aldea em treva escura

   Quando vos ausentais, Príncipe raro:

                            (vv. 406-418).

Neste momento lamenta-se a partida de D. Duarte para a corte de Espanha, requisitado por Filipe (vv. 433). O narrador identifica-se como pertencendo ao mesmo espaço que o seu mecenas, Évora, afirmação que poderá estar na base da ideia que Manuel da Veiga seria daquela cidade. Por sua vez, o destino de Duarte, cantado por Sileno, é idêntico ao de Anfriso. Ainda, ao referir o já  ter «feito corte», confirma o Marquês de Frechilha como destinatário maioritário do texto.

      Esta partida de D. Duarte desencadeia as lamentações de toda a natureza, e do próprio Sileno-narrador:

Mas atê que outra ves eu vos não veja

   Nestas verdes campinas, nestes prados;

   Padecerá  Madrid a minha inueja.

 

Eboreos campos bemauenturados,

   Nunca desespereis desta bonança,

   Que eis de ser de DVARTE inda pisados.

                              (vv. 435-440)

que reitera uma partida para Madrid, e a importância da presença deste D. Duarte (o tio) em Évora. O tema do canto vai agora ser a descendência de D. Teodósio (vv.450-51), D. João, Duque de Barcelos e futuro D. João IV, «digno de régios senhorios» (vv. 458), e depois, principalmente D. Duarte agora o sobrinho que a nota em margem dá como predilecto, talvez porque afilhado da avó, D. Catarina e do destinatário [4], em quem «Nuno lhe está nos olhos espirando» (vv. 467). E o Sileno continua prometendo-lhe um canto e profetizando-lhe o futuro:

Principe, disse, excelso vossas glorias

   Hade cantar hum cisne em nossos dias;

   Que eclipse dos Virgilios as memorias.

 

Mas delle alcanção minhas profecias

   Que tem por partezinha a grão sciência,

   Que illustrou noutro tempo Monarchias.

                              (vv. 468-73)

Tendo em conta as afirmações anteriores sobre o Duque de Frechilha, e estes versos que se referem a um «pastorzinho» ­- portanto o segundo D. Duarte não havendo esclarecimento a seguir sobre o destinatário, põe-se a hipótese de, dada a identidade de nomes, haver uma tentativa para englobar os dois Duartes, colocando-os na mesma situação de auditores igualmente vítimas de invejas. Esta identidade de situações – que posteriormente é identidade de viagens e destinos favorece e alimenta a assimilação entre mecenas.

      Tanto mais que, no final, a partida de Anfriso-Duarte se revela como fuga: «De ti, de ti fugindo, ó campo ingrato,/ Para livre se ver de tantos danos,/ Não por buscar riquezas nem contrato.» (vv.498-500). As notas – que referem comentários aos Salmos 9 [5], Livro de Reis 2 [6], Amós 7 [7] e a Epístola aos Romanos  12 [8] insinuam, a nível das éclogas, que D. Duarte teria sido acusado de uma qualquer tentativa de tomada do poder. O canto do Sileno continua, propondo honras reais (vv. 521), e menciona a expectativa de Toledo. Sendo este um dos títulos da primeira mulher de D. Duarte de Frechilha (e de seus filhos: Toledo y Portugal), neste momento não existem dúvidas quanto ao mecenas destinatário destes textos.

      Um narrador extra-diegético põe termo à fala de Sileno oferecendo-se para uma futura epopeia, e pede aceitação ­para os seus versos:

Recebei entre tanto brandamente

   Com animo Real, egregio peito

   A humildade Senhor do meu presente.

 

Também o pouco he a principes acceito

   Mas vede neste pouco retratado

   De hua larga vontade hum grãde effeito.

                              (vv. 551-56)

Reiterando-se aqui a "realeza" do Marquês de Frechilha, apelidado de "príncipe", insinuando-se a sua intenção – ou desejo – de vir a tomar o poder, anulam-se as hipóteses anteriores de distinção entre os destinatários por questões de título ou estatuto social. Ainda, estes versos entram em oposição com a anterior promessa, mesmo retórica, de um canto futuro, por outro «cisne», feita a D. Duarte-sobrinho na écloga III.

[] H.B.[]


[1] António Caetano de Sousa, Op. Cit., Vol.VI, p.257-62.

[2] Ibid., Vol.IV, p. 191; e Vol.VI, p. 382.

[3] Ibid., Vol.VI, p.265.

[4] Ibid., p.325.

[5] Acção de graças por um grande livramento: «9.1 Eu te louvarei, Senhor, de todo o meu coração, contarei todas as tuas maravilhas; 3 Porquanto os meus inimigos retrocederam e caíram; e pereceram diante da tua face. 4 Pois tu tens sustentado o meu direito e a minha causa; tu te assentaste no tribunal julgando justamente

[6] Naboth recusa vender a sua vinha a Ahab: «13 – Então vieram dois homens, filhos de Belial, e­ puseram-se defronte dele; e os homens, filhos de Belial, testemunharam contra ele, contra Naboth, perante o povo, dizendo: Naboth blasfemou contra Deus e contra o Rei. E o levaram fora da cidade e o apedrejaram com pedras e morreu.»

[7] A visão locusta do fogo e do prumo: «12 Depois Amazia disse a Amós: Vai-te ó vidente, foge para a terra de Judá, e ali come o pão e ali profetiza; 14 E respondeu Amós, e disse a Amazia: Eu não era profeta, nem filho de profeta, mas boieiro e cultivador de sicómoros. 15 Mas o Senhor me tirou de após o gado, e o Senhor me disse: Vai e profetiza ao meu povo de Israel.»

[8] «12.1 Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, Santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. 12.3 Porque pela graça que me é dada, digo a cada um de entre vós, que não saiba mais do que convém saber, mas que saiba com temperança, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um.»

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