Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

[IV – A Relação Poesia-História]

 

 2. O(s) Mecenas

    2.1  O(s) Mecenas na obra

       2.1.1  Nas éclogas

       2.1.2  Nas Odes

    2.2  Anfriso como personagem histórica

 


]  2.1.2 Nas Odes [ 

      Nos livros de Odes a preponderância é dada à personagem masculina de Anfriso, de quem o narrador se afirma, em simultâneo, confidente e secretário. Assim, na sua maioria, a temática destes versos só esporadicamente menciona de modo claro(s) o(s) Bragança(s), optando por referências de carácter simbólico ou emblemático. Por exemplo, a Ode 6 do livro I tem por tema o casamento da vide com o álamo, e desenvolve a mistura destes elementos em termos heráldicos. A mulher, de origem castelhana, contribui com as suas armas (vide) para o enriquecimento e protecção do marido (serpente/álamo). Poder-se-ia ver aqui uma alusão ao casamento de D. Duarte (o primeiro, em Fevereiro de 1596, o segundo, em cerca de 1620), tanto mais que a serpente é o timbre dos Braganças [1]; e na Ode 8 do mesmo livro Amor recomenda a Anfriso que apresse o casamento – o qual, como já se disse, não se chega a efectuar – com uma alta Lusitana [2]. Também D. Teodósio casou (em Junho de 1603) com uma espanhola, D. Ana Velasco, filha do Condestável de Castela [3].

      Na Ode 10 do mesmo livro a temática é de novo política, mas mascarada pelos nomes da Antiguidade. O assunto é a inveja tida a Aquiles por Alexandre – que «Já de Filipe Rei se desprezava» – dado o primeiro ter sido cantado por Homero. O narrador, por sua vez, fala da inveja de Homero porque o seu herói – Anfriso – é superior aos da Grécia e Macedónia. A Fortuna nega outro Homero com receio de que se rissem dela, porque Anfriso parou a sua roda – um feito superior aos da Antiguidade [4].

      No segundo Livro de Odes elabora-se, camufladamente, o tema imperial – como adiante se desenvolverá. Na Ode 5, o sol inveja um rio, que o suplanta no amor de Laura, e por tal ataca-o, tecendo-lhe prisões de prata. Parece aqui referir-se de outro modo às «prisões de rosas» já anteriormente mencionadas. Na Ode 8 glosa-se o motivo das abelhas, de Virgílio: estas veneram o seu rei, levam-no em ombros – o trono é feito pelos corpos dos vassalos, que lhe obedecem até à morte. Umas são lavradoras, outras «soldados» que põem «o freio às vespas». Na Ode 9 o tema é de novo a­ escrita enganosa, mas agora relativamente ao narratário, e por razões políticas salvaguardadas por metáforas religiosas:

Oh em inueja tanta

   Abjuradas rapinas!

   De Theologia santa!

   Tornai ô peregrinas

   Por lei do postlimino ao grãde Aquinas:

 

Mas enquanto não vedes

   Vosso Pay verdadeiro:

   Entre as toscas paredes

   Deste vil catiueiro

   Demos a Phebo insenso lisongeiro

                              (vv.36-45)

Os roubos feitos por inveja à Teologia, são abjurados, e o narrador aconselha a que regressem às suas origens (S. Tomás de Aquino) ao abrigo da lei romana do «postliminium»: discutida por Cícero, esta salvaguarda a reintegração nos seus direitos de cada cidadão romano que tivesse sido feito prisioneiro (durante a paz ou a guerra), e que fosse posto em liberdade, ou logravasse evadir-se, a partir do momento em que re-entrasse nos confins do estado. Insinua-se a posição difícil do Mecenas, e aconselha-se a mentira, o «insenso lisonjeiro», ao falso governante.

         O narrador afirma ainda pretender igualar os comentadores de Polifemo de Gongora, ou seja, associar-se aos partidários de Lope de Vega. Mas a principal questão colocada por esta ode tem também muito a ver com o problema "social" da escrita "mecenática" e da história: só se contam e cantam acontecimentos importantes, só sobrevivem os nomes ligados ao êxito. No entanto, o "eu" não desanima e considera que o futuro verá o sucesso dos seus poemas atingir os vários cantos do globo, e o seu nome tornar-se conhecido internacionalmente por cantar as grandezas de Anfriso (D. Duarte), sucessor de Febo (Filipe).

      A Ode 2 do livro III refere uma prisão, real ou metafórica, de Anfriso ou do narrador. No cárcere, o "eu" olha a Lua (Proserpina/Diana) cujas fases reflectem o seu destino:

Ay que penas, que dores!

   Pois vejo retratado

   Em vossos resplandores

   Hum eminente estado,

   Quando de altos Liceos fuy sospirado!

 

 Ay vencimento leue!

   Ay glorias inconstantes!

   Dialecticas de neue!

   Esperanças errantes

   Pera subir Anões: mingoando Atlantes:

                        (vv.16-25)

Na sua comparação com a Lua – na qual descobre um quinto­Estado, um estado essencial, superior aos governados pela matéria – o "eu" diferencia-se por não recuperar os bens perdidos com o "minguar": as suas glórias diminuíram para sempre, ficando apenas as lembranças: «Que o ouro de Tolosa apresentarão». A este segue-se um verso:

Quantos stellionato

   Contra my cometerão

   Verão neste contrato

   Que honrinhas não me alterão:

   Inda que ser do mundo o rei me derão.

                              (vv.76-80)

De acordo com os dicionários, "estelionato" é a fraude de quem "cede, vende, ou obriga uma coisa, ocultando que esta já estava cedida, vendida ou obrigada a outrém". Aqui, o objecto do roubo, segundo as notas marginais, é uma "coroa" ou "diadema". Recorde-se que, segundo D. Francisco Manuel de Melo, em determinada altura, D. Teodósio teria pretendido ceder o título a seu irmão.

      As últimas odes – já  atrás abordadas – têm por tema o desterro de Anfriso, o lamentar-se por «ser estrellado» ou astrologicamente predestinado, e a interpelação à Fortuna, que é acusada de não cumprir o seu percurso usual: como já se referiu, de o ter feito rei antes de o ter sido.

      A Ode 5 do Livro V é o elogio fúnebre de um dos Braganças que «alumiava a lusitana gente», mas cujo nome não é mencionado. A morte não só corta a vida do indivíduo como da própria corte. E a personagem é considerada de nobreza antiga:

   Grandeza sublimada

   Que o cetro mereceo da redondesa!

   Esta he a nobreza?

   Onde altos resplandores se juntarão

   De tantos Reis famosos que a gerarão!

   A qual de Reis nacendo,

   E estaua Reis ao mundo prometendo?

 

Esta he a Magestade?

   Que com o aceno o reino meneaua?

   Esta era a que abrandaua

   As lagrimas da nossa saudade

                              (v.39-49)

Não é possível afirmar se se trata de homem ou mulher, embora pela comparação com as «estrelas» a interpretação possa tender para o segundo caso. Como hipótese mais provável coloca-se a de o poema referir a morte de D. Ana Velasco, em 1607 (a promessa de reis implica uma certa juventude da personagem, por outro lado, existiam já  três herdeiros possíveis: D. João, D. Duarte e D. Alexandre; esta «promessa» pode igualmente referir-se ao passado, pois D. Ana é também uma descendente da Casa de Bragança, prima em 3º. grau de seu marido, D. Teodósio, e no 4º. grau de consanguinidade.), ou de D. Catarina, em 1614 (se se tiver em conta o «aceno» com que «meneava» o reino). No caso de se tratar de uma figura masculina, a única possibilidade é a de ser D. Fernando Alvares de Toledo, Marquez de Jarandilha e de Oropesa, filho de D. Duarte de Frechilha, que morre em 1624 todavia, não faz muito sentido, dado a referência à possibilidade de herança real. Como última alternativa, fica apenas D. Duarte, o mecenas – o que implicaria um certo malabarismo com os textos pois, como já  se disse, aquele morre exactamente no ano de publicação (1627) – e ainda porque, embora o tema dos cantos seguintes seja(m) o(s) seu(s) epitáfio(s), Anfriso continua a cantar. D. Teodósio, e seus descendentes directos, ficam naturalmente excluídos por estarem ainda vivos muito depois da edição do texto.

      As últimas estrofes do poema que encerra o último livro de Odes são dedicadas ao leitor, e pretendem explicar – tornando ainda mais misterioso – o que para trás ficou dito. Os últimos versos confirmam que Anfriso não é associável ao autor-narrador, e apoiam a hipótese de que o primeiro se trata de uma personagem sob a qual se esconde a figura de D. Duarte de Bragança. Deste modo, a questão de os versos terem sido escritos «sob grilhões» parece mais uma metáfora relativa a uma censura, imposta ou levada a cabo pelo próprio, dado a intenção nacionalista que pervade o seu poema. Também as duas estrofes seguintes são intrigantes:

Não me moue ambição de eterna fama,

   Nem coroa fatal da ingrata rama,

   Outra obra mais alta,

   Onde Lyra, Ou Scoto, a pena exalta,

   Pudera ser escrita:

   Mas porcos não presarão a Margarita.

 

Fermosa Margarita em vazo de ouro

   Das graças em geral viuo thesouro

   A hum claro ajuntamento

   Pudera ser estrella, & ornamento;

   Quem a entende, a deseja:

   Em que o preço lhe tire a alheia inueja.

                              (vv.169-80)

É esta a única menção a Margarida, pelo que terá sido aqui que se inspirou Teófilo para criar o seu romance. No entanto, este nome poderá ser apenas um sinónimo de pérola: a obra é uma pérola que não deve ser "deitada a porcos" mais uma referência clássica, agora a uma fábula de Esopo (cuja moral reforça a ideia de despojamento do Mecenas), que vai ser reformulada por Fedro [5]. Sendo esta hipótese correcta, parece reiterar-se aqui o problema da necessidade de sobrevivência pela escrita, e a sujeição ao estatuto mecenático. Também, o estilo da afirmação implícita revela a alta consideração em que o poeta se tem – a si, ou ao seu tema; ou ainda mais uma referência gnóstica, se se tiver em conta a simbologia associada à pérola para aquela filosofia [6] (que reitera a faceta simbólica e metafórica da figura de Laura, como adiante se discutirá).

      No caso ainda de se tratar de uma pessoa, e tendo em conta que Tagarro vive do mecenato – ou escreve para o "poder" – sugerem-se duas possibilidades. Ou esta é a rainha Margarida, mulher de Filipe II (III de Portugal) a quem Lope de Vega dedica um poema: "A La Muerte de La Reina Nuestra Señora" [7] que faleceu no Escorial em 3 de Outubro de 1611 (e portanto, o poema seria anterior a essa data). Ou é Margarida de Sabóia, a Duquesa de Mântua. Outro problema surge desta hipótese, já  que a Duquesa só ocupa o cargo de regente de Portugal no início de 1635. Assim, em primeiro lugar impõe-se o facto de o último livro de Odes ter sido publicado depois de 1628 e "cozido" ao resto do volume; além disso, deixaria de se poder considerar o testamento encontrado como sendo o de Tagarro, que estaria ainda vivo naquela data; ou ainda, em alternativa, o poema seria dirigido a Margarida de Sabóia antes de ela ocupar aquele cargo político, e neste último caso, não poderia ter sido escrito em Portugal, pois a duquesa não se encontrava neste país.

            Mas sob uma perspectiva simbólica ou filosófica, a pérola será tanto a metáfora para a alma caída na matéria, a ratificação de que as personagens principais da obra se ocultam sob um nome secreto: o mecenas sob a denominação de Anfriso, e sob a de Laura, uma alegoria da Ideia, ou da divina Sofia.

[] H.B.[]


[1] Hernani Cidade, Op. Cit., p.258.

[2] Uma possibilidade de que D. Duarte tenha pretendido casar, pela segunda vez, em Portugal, sem ter conseguido autorização do rei?

[3] E segundo Caetano de Sousa, só após muitas instâncias de D. Catarina, que via a descendência da dinastia entravada pelo rei espanhol. Igualmente, Filipe impediu que D. Teodósio casasse com uma portuguesa, com receio de uma recuperação do trono.

[4] Este tópico, oriundo do Renascimento, está relacionado com a querela dos Antigos e Modernos.

[5] Esopo: "The Cock and the Jewel": «A cock, scratching for food for himself and his hens, found a precious stone and exclaimed: "If your owner had found thee, and not I, he would have taken thee up, and have set thee in thy first estate; but I have found thee for no purpose. I would rather have one barleycorn than all the jewels in the world.", in Aesop George Fyler Townsend (ed.), 1880. Esta fábula é reformulada por Fedro, que transforma a joia em pérola: "Pvlluvs ad Margaritam": «A cockerel on a dunghill, while looking for something to eat, found a pearl. "What a fine thing you are", said he, "to be lying in so improper a place! If only someone who coveted your value had seen this sight you would long ago have been restored to your original splendour. But my finding you since I'm much more interested in food than in pearls – is of no possible use either to you or to me.”// This tale is for those who do not appreciate me.», Livro 3.12, vv.1-8, p.279.

[6] O hino da pérola encontra-se nos apócrifos Actos do Apóstolo S. Tomás: «In the glossary of gnostic symbolism, "pearl" is one of the standing metaphors for the "soul" in the supranatural sense... Yet it is more of a secret name ... and it stands in a category by itself by singling out one particular aspect, or metaphysical condition, of that transcendent principle... The "pearl" is essentially the "lost" pearl, and is to be retrieved.», Hans Jonas, Op.Cit., p. 125; e acrescenta mais adiante: «The "Hymn of the Pearl" did not relate how the Pearl got into the power of the Darkness. Simon Magus did so,...with regard to the divine Ennoia or Sophia, which in his system corresponds to the Pearl of the Hymn.", p.130.

[7] Lope de Vega, Rimas Sacras, apud. Obras Poéticas, Editorial Planeta, Barcelona, 1983, p.406.

[]