Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 3. Uma análise descritiva

     3.1  Exigência de uma dupla leitura

     3.2  As éclogas

     3.3  A epístola

     3.4  Uma estrutura épica

        3.4.1  O epilion

     3.5  Os livros de Odes

 


]  3.2 As éclogas  [ 

      Na primeira écloga – subordinada, pelas notas, às Bucólicas II, III e VIII de Virgílio – cruzam-se os pastores Anfriso e Alfisibeu, apresentados por um narrador ("eu") diverso e anónimo – que se dirige a um narratário explícito:

O lamentar suave dos Pastores

   Anfriso juntamente, & Alfisibeu

   Cãtarei, seus queixumes imitãdo.

   [...]

   Võs que representando

   Estais, nesse poder nessa excellencia,

   Hua dourada idade

                              (vv.1-9)

A este trecho corresponde, em nota, uma referência à Écloga II de Virgílio [1], donde são retirados os dois últimos versos. Não é, no entanto, mencionado Garcilaso de La Vega [2] de quem se glosam, quase passo a passo, as primeiras estrofes:

   El dulce lamentar de dos pastores

Salício juntamente e Nemoroso,

he de contar, sus quejas imitando

                              (Éclog. I, vv.1-3)

      As duas primeiras estrofes vão funcionar como dedicatória, pois só na terceira se descreve o cenário bucólico e se introduz a personagem de Anfriso. Entre uma e outra aparece uma nova referência ao autor da antiguidade [3].

      Anfriso queixa-se da tirania do amor, e afirma já ter sobre ele obtido a sua vingança:

   Vingado estou: ja veo o doce tempo

   Do meu tão desejado desengano:

   A Deos maligno Amor, cruel tirano.

                              (vv. 37-39)

Uma analepse relata os sofrimentos desse tempo de loucura, em que a sua única consolação era entalhar o nome de Laura nos «alemos sombrios». A perdição corresponde, pois, ao momento em que vê pela primeira vez a sua amada, encontro em que teria cerca de doze anos (vv. 137-38). A par desta estrofe encontra-se de novo a indicação da mesma Écloga III [4], mas que pode também ser de Eclesíastes 8 [5] – a partir das notas, o topos tradicional do amor à primeira vista recebe uma coloração política. Ao sofrimento do pastor corresponde o do rebanho.

       Assim, um "eu" reproduz o canto de despedida do pastor Anfriso, que pendura a sua lira e deixa de cantar e de sofrer pelo amor da serrana Laura, porque atingiu o estado de desengano. A partir dos vv.209 o narrador descreve a reacção de  árvores e montes a esta despedida, e introduz a personagem do seu oponente, Alfisibeu, invocando as Musas como juízes para o concurso que se irá seguir – mais uma vez sob a égide de Virgílio [6]. Aqui a nota reforça a ideia de uma situação de injustiça e adversidade política, ou de impotência temporária da personagem em questão.

      Alfisibeu começa por solicitar a natureza para que oiça a triste história do pastor Fileno, e descreve qualidade órfica do seu canto que, por tal, se identifica com o de Anfriso. Fileno cantara o seu sofrimento durante a noite, o que leva Alfisibeu a associá-la com a morte:

   Oh noite sempiterna!

   Que tu Fileno meu, tão cedo viste;

   Pois que na Primauera de teus annos

   Da morte tão cruel prouaste enganos;

                              (vv.244-247 )

Relata, seguidamente, as exéquias de Fileno, começando pelo coro das Tágides, a cujo choro contrapõe o riso das estrelas pelo roubo de Fileno. Segue-se a descrição do luto da paisagem, do local da pastoreação, depois dos pastores e gado, a que se associam os pássaros. Esta vai pormenorizar-se na enumeração de manifestações invertidas da natureza, construindo uma imagem do "mundo às avessas":

   Em lugar do fermoso trigo nace

   O joyo estéril, a infelice auena.

   Pella violla amena,

   Pellos brancos jasmins, do campo riso,

   Pellas frescas giestas,

   Pello roxo Narciso

   Nacem cardos, & espinhos nas florestas,

                              (vv.304-310)

Após o que Alfisibeu fala da sua própria saudade enquanto companheiro de Fileno, referindo, no elogio fúnebre, os seus temores alimentados por – tradicionais – augúrios que marcaram o dia da morte. Ao lamento segue-se a descrição do espaço celeste ocupado por Fileno, que é reprodução melhorada do terreno. No final constrói-se uma segunda imagem do mundo às avessas, mas agora com um carácter positivo:

   Que maçans os carvalhos estão dando.

   Os alemos florecem com Narciso;

   Os rios correm mel, as fontes leite;

   A tamargueira alambres vai suando.

   La se estão pendurando

   As uvas & corais pellos espinhos;

                              (vv.380-385)

A esta paisagem paradisíaca segue-se a auto-consolação: «Com teu bem nossa magoa acalantamos.» (vv. 396), para se passar à execução das últimas vontades de Fileno – testemunhadas pelos pastores Ricardo, tocador de lira, e Tirreno, tocador de cítara. Determina-se a forma de luto, o local e modo do enterro, e o epitáfio:

Então na sepultura aleuantada,

   Em campo de alabastro branco, & frio,

   Pera testemunhar nossa lembrança;

   Ficará entalhado este Elogio,

   Que ao mundo dirá com vox calada:

   O fermoso Fileno aqui descança.

   Eu fui a esperança,

   Eu sui a glória das campinas bellas

   Conhecido Sileno

   Daqui até às estrellas,

   De ovelhas guardador no prado ameno;

   Deume o fado de inueja a vida breue;

   Este sepulcro cobre a cinza leue.

                              (vv. 417-429)

A Écloga termina com Alfisibeu a assegurar a eternidade da memória de Fileno, garantida pelo paralelismo com os ciclos naturais, e pelo seu próprio choro até ao reencontro.

      São, deste modo, apresentadas duas "mortes", uma simbólica (Anfriso) e outra "de facto" embora não explicada (Fileno), em que a segunda funciona, por ausência, como descrição da primeira. O abandono do amor de Laura, e do canto, por Anfriso (que pode ser também uma situação de injustiça social), equipara-se, assim, ao abandono da vida propriamente dita, por Fileno, tanto mais que estes dois pastores são identificados pela mesma qualidade órfica (e recorde-se que Orfeu é, a par de poeta, um herói civilizacional). Assim, a personagem de Alfisibeu revela-se como um duplo do narrador. Tentando esquematizar:

Narrador

Anfriso

(vs. Laura)

=

Morte (desengano)

Alfisibeu

Fileno

(vs. ? )

 

Morte (perda da vida)

 

Baixo/mundo - negativo

 

Alto/Céu - (positivo)

 

 

 

 

 

 

exéquias

Choro das Tágides

(água/terra)

vs.

Riso das estrelas

(ar/fogo)

 

 

 

 

 

 

morte

Joio por trigo

cardos por flores

vs.

carvalhos dão maçâs

cardos dão uvas

 

execução testamentária

testemunhas:

 

Ricardo/Tirreno

 

Elogio fúnebre

 

 

 

 

      O concurso que, inicialmente, parece ser entre Anfriso e Alfisibeu, revela-se como podendo ser entre o primeiro e Fileno (duplos gemelares?) já que a écloga termina sem que a disputa volte a ser referida, e sem que seja apresentado qualquer vencedor. Pode, então, inferir-se que as duas mortes – e os dois cantos – se equivalem, e que esta paridade é mais importante que o próprio concurso ou o seu resultado. Equivalência que se estende à dignidade social das personagens. Fileno poderá funcionar aqui como pseudónimo de D. Sebastião – igualmente denominado Célio – o que, pelo paralelismo desencadeado, vai implicar Anfriso como seu possível herdeiro.

 

      A segunda écloga – claramente de circunstância, tal como a terceira – é composta por duas partes. Na primeira o narrador descreve o tempo e o espaço pastoris, pretexto para justificar o desejo de qualidade do canto de louvor a D. Teodósio:

Mas quem DVQVE fera tão defcuidado?

   Que o efcufe a humildade do feu canto?

   Que quem deu o que tinha affáz te(m) dado.

                              (vv.25-27)

Solicita a protecção e audiência para os «rudos pastores», e promete concorrer com o próprio Apolo. Começa depois a narração das consequências da partida do Duque que vai receber Filipe II. Tanto a saudação quanto os versos seguintes se subordinam de novo a Virgílio, agora às Geórgicas IV e I. As queixas partem da própria terra, depois dos pastores, passando aos horizontes, e acabando no próprio "eu" derramando as suas lágrimas junto ao rio. Aí vê aproximarem-se outros dois pastores, também chorando:

Eu li nos olhos seus magoas & dores

   Com sospiros ardentes misturadas:

   Porem sempre cuidei que erão de amores.

                              (vv.61-63)

Conclui que choram pela ausência do duque, e propõe-se reproduzir o canto que testemunhou. São então introduzidas as personagens de Frondoso, tocador de cítara, e o seu interlocutor Salício.

      A segunda parte corresponderá ao "concurso", em que alternam as falas dos pastores. Frondoso começa por repreender D. Teodósio pelas mágoas que deixou com a sua partida, continuando Salício com as referências ao encontro histórico entre aquele e Filipe II. Após comparar «a nossa aldeia» a uma mãe chorosa pelo filho ausente (em nota refere-se Horácio), Frondoso, sucessivamente retomado por Salício, refere Ricardo e Anfriso, a «glória dos pastores», que penduraram as suas liras e quebraram as suas coroas em sinal de dor. Os outros pastores esqueceram-se do gado, o qual também partilha do desgosto pela recusa em comer e alimentar as crias. A desolação continua manifestando-se no comportamento das aves, e demais elementos da natureza, encerrando: «E agora tudo he treua escura, & fea:/ Vem pois Sol dar luz a nossa Aldea.» (vv. 159-60). Termina Salício reiterando o pedido de regresso e louvando a melhor qualidade da rústica harmonia sobre os cantos dos cisnes do Tejo.

       Seguem-se os tercetos, em que o narrador relata o final do concurso, e a reacção da natureza, agora não à qualidade, mas ao tema do canto, e à aproximação entre pastores e narrador corresponde o pôr do sol: «E foi o fim­do dia o fim do canto» (vv. 200).

 

      A terceira écloga funciona como complementar da anterior, novamente dedicada a D. Teodósio. As cinco primeiras estrofes referem-se à apresentação dos intervenientes – Nisardo, pescador e Lico, pastor –, as vinte seguintes correspondendo respectivamente, metade ao discurso de Lico, e metade ao de Nisardo, e uma última de conclusão.

      A primeira estrofe descreve uma paisagem bucólica junto ao rio Tejo, e a segunda introduz o concurso entre pastores e pescadores, louvando cada grupo o espaço em que trabalha. O canto é considerado tão harmonioso:

   Que perde facilmente

   O seu preço no monte

   A frauta pastoril do antigo Manto.

   Mouense de puro espanto

   As rochas para a praya;

                              (vv.30-34)

sendo aqui também usadas, novamente, as figuras de Virgílio e de Orfeu como termos de comparação. A qualidade do canto é ainda exaltada pela reacção do «rebanho escamoso» que para o ouvir abandona o mar. No final do concurso, para se decidirem, as aves exigem uma segunda «competência», cujo vencedor será o que melhor louvar o duque. Lico e Nisardo, anunciados como últimos representantes das respectivas classes, dão início à sua disputa.

      O pescador começa por narrar a viagem de barco efectuada por D. Teodósio, que torna mais sagrado ainda o rio Tejo. Jogando com o verde e o ouro das armas do duque de Barcelos (seu filho, que o acompanha), descreve as ofertas das Nereides, que consigo vão trazer o divino Proteu para celebrar a casa de Bragança:

   Pera que discantasse;

   E o Cesar sublimasse,

   Aleuantando a voz ao quinto Ceo,

   Ia na harpa que seria,

   Entoa esta profunda profecia.

                              (vv. 87-91)

Louvando a casa de Bragança e o duque, considera-o digno de história e glória superiores à grega e romana, digno de ultrapassar a fama de Alexandre. A sua grandeza só parará no Céu, quando ocupar o espaço que lhe é devido junto dos planetas e aqui menciona o auxílio de Alcides a Atlante, que já  treme: «...só cuidando/ No grão pezo que então sustentará.» (vv.132-33). Proteu termina o seu canto afirmando-lhe a protecção divina contra os fados cruéis:

   Viua em larga bonança

   Nesta idade dourada;

   Pois por elle já vejo

   Sobre as agoas do Tejo

   Thetis, de puro amor, que afeiçoada

   Ao gesto bello & tenro,

   Deseja de comprallo pera genro.

                              (vv. 137-142)

Após o canto de Proteu as águas do rio retomam o seu curso, enquanto as ninfas choram a ausência «...amorofas/ Detendo o lenho curuo na  ágoa clara!» (vv. 171-72). Nisardo termina solicitando o regresso do duque, e oferecendo-lhe o canto e os pensamentos:

   Só para dar a Lico hum desengano

   [...]

   Que cantão como Orfeos os Pescadores;

   E se eu não venço a Lico,

   A lyra ao desengano sacrifico.

                              (vv.188-195)

      Lico retoma o discurso louvando a mãe de D. Teodósio, D. Catarina, para passar a descrever agora a paisagem vista de terra: as ninfas Napeias acompanham Apolo que canta a D. Teodósio. A estrofe seguinte começa com a fala do próprio Apolo que confessa ter abandonado Tessalia, Esmirna e Itália:

   E venho a vossas terras

   Abrandar os penedos,

   E mouer os rochedos

   Que hão-de cãtar em fim nas altas serras

   As aruores sagradas,

   Com meus doces assentos animadas.

                              (vv. 229-234)

Refere seguidamente o «Tessalico Anfriso» como um rio, que é auditor tão atento quanto as ninfas, do tema do canto. Apolo abandona todos os seus troféus passados, façanhas e templos, que troca pelo serviço do Duque. Refere as suas dádivas a Virgílio e a Homero, a inveja de Alexandre, oferecendo agora:

   A Celio alma de Anfriso

   Mas ay que a tem por rizo!

   E são obriga vosso nome ingente:

   Que a minha doce rima

   A vista do alto Schoto não na estima.

                              (vv. 269-273 )

Dirige-se então ao Duque de Barcelos, saudando-o como retrato de seu pai e superior aos príncipes do mundo: «Alto ramo do tronco Imperial» (vv.279), terminando com uma glosa da Geórgica I (vv. 34-35) indicada em nota. Acaba o canto de Apolo, que dá  lugar à descrição das suas consequências idênticas às da Écloga V de Virgílio [7] – onde a natureza, em coro, entoa: «Viva o grão THEODOSIO de Bragança.» (vv. 299). Retoma Lico a palavra para referir os concursos das próprias Musas em louvor do duque, para oferecer os seus «humildes versos» ao «Duque merecedor de largo Império» (vv. 315), procurando dar a Nisardo um «vitupério» e ameaçando sacrificar o seu instrumento caso perca.

      A última estrofe refere a continuidade da contenda, sem apresentar qualquer decisão sobre o concurso. Pastor e pescador trocam dádivas, e seguem o gado respectivo.

      Esta écloga apresenta uma estrutura simétrica evidente em que, à oposição entre pastor e pescador (Nisardo vs. Lico), se segue a das ninfas (Nereides vs. Napéas) e a das divindades (Proteu vs. Apolo), de um modo superficial. Será possível ainda estabelecer-se um grupo de oposições mais complexo, nomeadamente a partir das relações especulares desencadeadas pelo jogo metafórico e imagética utilizados por cada um dos pares. Os contrastes são estabelecidos com base numa estrutura de encaixe, fundamentalmente dupla e em patamares, a que correspondem diversos níveis de narração:

1º. Grau

2º.Grau

3º. Grau

 (descrição)

 

 

 (descrição)

(digressão)

 Narrador

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 Nisardo

 

 

 

 Nereides (liras)

 

 Proteu

 Nereides

 

 

 

 

(mar)

 Nisardo

 

 

(terra)

 Lico

 

 

 

 

 

 

 

 Napeias (salteiros)

 

 Apolo

 Ninfas / Musas

 

 

 

 Lico

 

 

 Narrador

 

 

A nível de 1º grau o "eu" de enunciação mantém-se implícito; o 2º grau corresponde a uma situação aparentemente dramática – um diálogo entre Nisardo e Lico –, pois de facto não passa de um duplo monólogo a que se acrescenta a descrição da actividade das ninfas; enquanto as narrativas de 3º. grau são atribuídas aos seus autores pelos narradores de 2º. grau. Curiosamente, a sucessão das personagens parece desenhar um M deitado.

 

      A écloga IV é de novo dedicada a D. Duarte. A primeira estrofe introduz a paisagem idílica, onde um "eu" – pela didascália Sileno – diz:

Oh Cristais derretidos

   Que estas Veigas ditosas

   Como cintas de prata ides cercando!

   [...]

   Aqui hum pouco descançar quisera;

   Aqui entre estas flores,

   Doce campo direi vossos louvores.

                              (vv.11-13)

Louva-se aquele que prefere a vida campestre (que a nota associa a Cícero) a «joias» e «thronos» (e agora Garcilaso de la Vega), que fica isento de avareza e inveja (Séneca em nota):

   E seus campos fiéis

   Antepoem aos doceis

   Laurados de ouro fino, & rica prata,

   E seu arado duro

   A purpura real, ao cetro puro.

                              (vv.35-39)

versos a que correspondem, ainda, citações de Boécio e Sanazzaro, bem como o primeiro verso do Épodo  II de Horácio: «Beatus ille qui procul negotiis». Tradicionalmente associada ao topos da «aurea mediani», a oposição horaciana entre «Otium/Negotium» [8] é usada para condenar a cobiça, alargando-se aqui a uma crítica aos próprios descobrimentos:

   Nem teme o ronco insano,

   Do feruente Oceano,

   Ne das sonorosas armas o ruido,

   Que vai mouendo a guerra,

   Por buscar outro mundo, & outra terra.

                              (vv. 48-52)

e continua pela estrofe seguinte, apoiada pelas notas que quase se sobrepõem ao próprio texto: para além de Horácio, refere-se um Épodo de Claudiano [9] e de novo Séneca [10]. Os versos seguintes continuam a descrição do espaço campestre sob a égide da Geórgica II de Virgílio, terminando com uma referência a Cícero e Varrão. O encómio continua pela impossibilidade de fuga ao amor, de quem são vítimas as próprias abelhas (como em Virgílio) e aves. A personagem que consegue este estado de libertação, dos cuidados da vida em sociedade e de amores, é o lavrador, que após um dia de trabalho árduo nos campos:

   Se recolhe na Aldeia

   Onde acabaua pobre

   He para elle seu paço enriquicido,

   Alli com o conhecido

   Gasta as alegres horas;

   Fala das sementeiras,

   Dos nouilhos, das eiras,

   Sem palauras sutis & enganadoras

   Gozando junto ao fogo

   Conuersação sincera, honesto jogo.

                              (vv.95-104)

A estes versos corresponde em nota o Epigrama 2 de Marcial a Quintiliano.

      Seguem-se os tercetos que começam: «Assim cantava o desterrado Anfriso» (vv.105), transformado a personagem de Sileno em narrador do lamento do primeiro (Anfriso‚ "eu" de enunciado, Sileno "eu" de enunciação). As estrofes anteriores revelam-se, portanto, como uma analepse sobre o passado de Anfriso, actualmente desterrado da vida em sociedade, do «ceptro puro» (vv.39), da «guerra» (vv.41) da «dama vingativa» (vv.87), enfim, do rio Tejo:

Ouuiu de longe a voz, & inda sospira,

   Sentindo o claro Tejo a eterna auzencia,

   De quem mil vezes tão de perto ouuira.

 

Anfriso dos Pastores excellencia,

   Que nas praias do Tejo ja cantara,

   Fazendo a Orfeo no Hebro competencia.

                              (vv. 108-113)

Os tercetos seguintes vão narrar a estadia de Anfriso junto ao Tejo, na companhia de seu amigo Silvio sob a égide de Teócrito, Idilio VIII, e mais uma vez Virgílio, agora os primeiros versos da Écloga VII [11] – de quem se vem a separar com destino ao Guadiana (vv.185). Esta viagem implica uma mudança de vestuário, e logo, uma transformação [12]:

Eis o novo soldado da ventura

  De Pastor peregrino se fizera,

  Trocando da montanha a vestidura.

 

A que trazia de romeiros era,

  Serguilha humilde; nella disfarçado

  Dar volta ao mundo todo Anfriso espera

 

Bordão de Zimbro, liso, & torneado;

  Contas de tiracollo penduradas,

  Chapeo branco de conchas semeado:

                         (vv. 186-194)

Para além de apenas mais um eco de Rodrigues Lobo, a personagem  metamorfoseia-se de serrano em peregrino, e as roupagens que passa a envergar apontam para uma  zona espacial, que as conchas definem como Santiago de Compostela, o local por excelência da cavalaria [13].

        Nas duas estrofes seguintes (vv.195-200) o jogo com os tempos verbais (o pretérito e gerúndio) instaura os tercetos anteriores como uma nova analepse, reforçada pelo repetir do começo da acção – dando origem a uma estrutura circular: «Estaua pois Anfriso engrandecendo/ Os lauradores bemauenturados,/ Se fossem suas glórias conhecendo.» (vv.­201-203), agora subordinada à Geórgica II  de Virgílio [14]. Anfriso é então chamado por Ricardo, outro grande entre os pastores, que consigo traz o Sileno (numa referência directa à Écloga VI de Virgílio):

   E ambos atão ao velho que se escusa,

   Por não querer cantar no prado ameno.

 

Era Sileno neto de Aretusa;

   Sabia as gerações do mundo todo;

   Porque lhas ensinara hua alta Musa.

                              (vv.220-24)

Perante os atentos Anfriso e Ricardo, Sileno: «Então cantaua aquelle Paraiso,/ Que Portugal gozou tão breues annos;» (vv.­234-35), e o tema do seu canto vai ser a história de Portugal, centrada nos feitos dos Braganças, começando com Atoleiros (vv.243) e no fundador da dinastia, D. Nuno Alvares Pereira (vv.251). A descrição da batalha, por uma hipotipose, e subordinada agora pelas notas marginais à Eneida, livros 10 (vv.258) e 9 (vv. 281), é interrompida por uma exclamação do narrador:

Oh patria minha bemauenturada!

   Que então mandafte já filhos valentes,

   Pera aquella vitoria affinalada.

                              (vv. 261-263)

O condestável é: «O grande Scipião Nuno atrevido» (vv. 282) e os próprios mortos, alguns deles, lamentam não o terem sido pelo «...invicto cavalleiro./ Que a morte com o Autor, doce fizerão.» (vv.304-305).

      A partir do verso 309 Sileno dirige-se aos lavradores que ainda no presente encontram restos de armaduras – no momento em que a nota marginal refere uma longa citação de Claudiano –  para "profetizar":

Tempo virá, disia, que a memória

   Deste triunfo excelso, & soberano

   Escreva a pena de ouro em larga história

 

O grande engenho, Homero Lusitano

   Que a cidade de Alcides tão famosa,

   Suspensa ouviu falar sobre Trajano.

   [...]

 

Aquelle a quem seriam muito estreitos

   Os cargos & excellencias, que a Cadeira

   Vai dãdo em Lusitania aos sábios peitos.

                  (vv. 321-27, 330-33)

À "ignorância" voluntária sobre Camões neste passo, junta-se a critica ao conformismo e aceitação dos cargos cedidos pelo regime castelhano.

      O canto é retomado sobre a figura de D. Manuel, um «segundo» fundador da dinastia, louvado como autor dos descobrimentos, e pela sua descendência, de entre a qual salienta a neta, D. Catarina. O Sileno continua a exaltação da Casa de Bragança, detalhando os feitos dos seus diversos ascendentes, até chegar ao destinatário, D. Duarte cuja partida se anuncia, suscitando lamentações por parte de Anfriso e Ricardo, bem como de toda a natureza, e do próprio Sileno-narrador:

Mas até que outra ves eu vos não veja

   Nestas verdes campinas, nestes prados;

   Padecer  Madrid a minha inveja.

 

Eboreos campos bemauenturados,

   Nunca desespereis desta bonança,

   Que eis de ser de DVARTE inda pisados.

                              (vv. 435-440)

O tema do canto seguidamente vai ser a descendência de D. Teodósio. E, centrando-se em D. Duarte, o Sileno continua:

Principe, disse, excelso, vossas glorias

   Hade cantar hum cisne em nossos dias;

   Que eclipse dos Virgilios as memorias.

 

Mas delle alcanção minhas profecias

   Que tem por partezinha a grão sciência,

   Que illustrou noutro tempo Monarchias.

                              (vv. 468-73)

Após este recordar de Dante, os versos seguintes vão estabelecer uma "confusão" entre dois possíveis destinatários – tio e sobrinho –, confusão esta (que adiante se procurará destrinçar) que as notas marginais não ajudam a esclarecer: a primeira refere comentários [15] ao Salmo 9, que corresponde a acção de graças por um grande livramento [16]. A segunda é composta por várias e longas citações que acompanham os 14 tercetos seguintes (dois fólios), tem como tema passos do Antigo e Novo Testamento que, de um modo sumário, referem novamente os comentários dos padres da Igreja sobre o Livro de Reis I.21 [17] sobre Amós, 7 [18] e Origenes sobre a Epístola aos Romanos [19].

      Nas estrofes seguintes o Sileno canta de novo a viagem de D. Duarte (vv.497-500) e, em confronto com as notas, será permitido supor que o Bragança teria sido, de alguma, forma aliciado para tomar o poder. O canto do Sileno continua, propondo honras reais (vv. 521), até que o narrador põe termo à fala da personagem:

Então forão saltando à competencia

   Os faunos, e as feras da espessura,

   Obrigados da doce violencia.

 

Tudo o que Febo disse na verdura

   E ouvio Eurõtas bemauenturado:

   Isso canta Sileno com vox pura.

                              (vv. 530-535)

este passo corresponde a uma glosa dos últimos versos da Écloga VI de Virgílio [20]. O sol recomeça o seu curso, e o narrador pede reconhecimento e protecção ao destinatário.

        Nesta écloga o aspecto composicional mais invulgar tem a ver com os jogos de ponto de vista: há um "eu" narrador que apresenta a personagem de Sileno como autor de um canto ("eu" de enunciação-narrador revela Sileno como ”eu” de enunciado); posteriormente, este "eu" de enunciado (Sileno) vem a revelar-se como sendo também ele narrador ("eu" de enunciação de um segundo "eu" de enunciado agora Anfriso). Ou seja, o narrador apresenta Sileno que reproduz­o canto de Anfriso, mas esta informação só é dada a posteriori, criando uma confusão premeditada entre os diversos "eus". Tentando esquematizar:

1ª. parte - circular

 

 

"eu" narrador (canta)

"eu" Sileno (que canta)

"eu" Anfriso

presente da escrita

presente do canto

passado do "eu"

desterro de Anfriso

passado de Anfriso

 

 

 

- junto ao Tejo

 

 

- com Sílvio (pastor serrano)

 

Viagem de Anfriso - paragem do Sol

 

- Guadiana

 

 

- Mudança de vestuário

 

 

- Peregrino

 

 

 

 

2ª. parte

 

 

presente de Anfriso

 

 

- Louvor dos lavradores

 

 

 

chamado por Ricardo e Sileno

 

 

(atam Sileno)

Sileno canta D. Duarte

 

Viagem de D. Duarte - paragem do Sol

 

 

Sileno canta D. Teodósio (e descendência)

 

 

 

"eu" narrador diz

Isto canta o Sileno (narrador de Anfriso)

 

 

- Sol reinicia a sua viagem

"eu" narrador pede reconhecimento e protecção

 

 

 

 

 

 

 

 

Há  um jogo temporal em que a mudança sucessiva de narrador/ponto de vista transforma em passado o presente do canto ao revelá-lo como analepse sobre outro narrador. Ou seja, desencadeia-se uma estrutura circular em que cada momento de "presente" é, sucessivamente, reconvertido em analepse, e logo, transformado em "passado". E os "presentes" são gradualmente revelados como "passados" nos momentos em que, de facto, a nível do próprio discurso e da leitura o começam a ser.

[] H.B.[]


[1] Virgílio: «Devant qui fuis-tu insensé? Les dieux aussi et le Dardanien Páris ont habité les fõrets. Laisse Pallas se plaire aux citadelles qu'elle a baties pour nous, à tout autre séjour, préférons les fõrets...», Ecl.II, Op.Cit., pp.40-41.

[2] Garcilaso de La Vega, Éclogas apud. Obras Completas, Editorial Planeta, Barcelona, 1981, p.57. A écloga I é dedicada a D. Pedro de Toledo, vice-rei de Nápoles e Mecenas de Garcilaso. Para o editor, Antonio Gallego Morell, tanto Nemoroso como Salício são pseudónimos do próprio autor sob duas facetas emocionais diferentes, respectivamente ciumento e nostálgico.

[3] Virgílio: «O toi... Viendra-t-il jamais le jour ôu il me sera permis de chanter tes hauts faits?... L'ombre fraiche de la nuit avait à peine quitté le ciel: c'etait l'heure oú la rosée si chère au troupeau recouvre l'herbe tendre. Damoné appuyé sur sa houlette d'olivier, commença ainsi:...» Ecl.VIII, Op.Cit., pp.78.

[4] Virgílio: «J'entrais alors dans cette année qui suit la onziéme; déjà je pouvais, du sol, atteindre les frêles rameaux. A peine le vis-je que je fus perdu! et qu'un fol égarement emporta ma raison!», Op. Cit., 78.

[5] Sobre a obediência devida ao rei: «8.1 - Quem é como o sábio? E quem sabe a interpretação das coisas? A sabedoria do homem faz brilhar o seu rosto, e a dureza do seu rosto se muda./ 8.2 – Eu digo: observa o mandamento do rei, e isso, em consideração para com o juramento de Deus/ (...) 8.9 - Tudo isto vi, quando apliquei o meu coração a toda a obra que se faz debaixo do sol: tempo há em que um homem tem domínio sobre outro homem para desgraça sua./ 8.10 – Assim, também vi os ímpios sepultados, e eis que havia quem fosse à sua sepultura, e os que fizeram bem e saíam do lugar santo foram esquecidos na cidade; também isto é vaidade./». (O pecador não é logo castigado; o justo vê-se muitas vezes em adversidade.)

[6] Virgílio: «Ainsi chanta Damon. Vous, dites-nous Piérides, ce que répondit Alphesibée: nous ne ­sommes pas tous capables de toutes les taches.» VIII, Op. Cit., pp.79.

[7] Virgílio:«Les Montagnes chevelues elles-mêmes lancent vers les astres des cris de joie; les rochers eux-mêmes, les buissons eux-mêmes répètent bientôt: il (Daphnis) est dieu, il est dieu, Menalque.»,Op. Cit., pp.61.

[8] Esta formulação aparece como um lugar-comum na poesia renascentista - em Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda, Camões, António Ferreira, Diogo Bernardes ou Rodrigues Lobo e, segundo Mª. Leonor C. Buescu, poderá ­traduzir-se pela busca da "Quietação": «Quietação  não é, portanto, mais do que o "otium" clássico, propiciador da Humanitas. É, também, o oposto do "negotium" e a possibilidade de o espírito encontrar a disponibilidade para se entregar, liberto das solicitações da política, do êxito financeiro ou profissional, à reflexão, à meditação, à critica e, finalmente, à criação artística.» in Aspectos da Herança Clássica..., p.42.

[9] O autor da Gigantomaquia.

[10] A sua personagem trágica de Hipolito, destruído pelos monstros marinhos.

[11] Virgílio: «D'Aventure Daphnis s'était assis sous une yeuse frémissante, et Corydon et Thyrsis avaient confondu leurs troupeaux: Thyrsis, ses brebis, Corydon, ses chevrettes aux mamelles gonflées de lait; tous deux dans la fleur de leur age, Arcadiens tous deux, également habiles à chanter et prêts à se répondre.» Op. Cit., pp.71.

[12] Esta mudança de trajo é também ela um lugar-comum nos textos bucólicos do período. Surge, por exemplo, na Lusitânia Transformada (Livro 2, prosa 4; Livro 3, prosas 2, 4 e 14), sendo interpretada do seguinte modo por António Cirurgião: «Mudança de estado, mudança de nome, mudança de roupa. É como que um novo renascimento para a vida. Transformação total. Faz-nos isto lembrar aquelas palavras de São Paulo sobre o homem velho e o homem novo. Ou então a cerimónia do baptismo, sobretudo quando administrada segundo os ritos dos primeiros séculos do Cristianismo. Cerimónia que, em muitos aspectos, tão próxima está dos ritos de iniciação de quase todas as religiões in Fernão Álvares do Oriente, o homem e a obra, Fundação Calouste Gulbenkian, Paris, 1976, p. 242. Em Ribeiras do Mondego, Eloy de Sá  Sotto Maior oferece uma justificação para a mudança de nome: «Na minha terra era Elicio, & nesta tenho por nome Ondélio; mudei o nome, por ver se com elle se me mudaua a sorte: mas que importa que até ella me desconheça pelo nome, se me ha de conhecer pela sua marca.»,Op.Cit., fol.3.

[13] Em "A Dialéctica do Segredo na Obra Pastoril de Francisco Rodrigues Lobo", Mª. Leonor C. Buescu, considera que os estatutos de cavaleiro e de pastor, aparentemente contraditórios, se instauram como equivalentes e analógicos: «... em oposição ao estatuto itinerante do Cavaleiro, o pastor é, também por definição, o sedentarizado. Eis, portanto, que no segundo painel do tríptico, Pastor Peregrino, a oposição está desfeita e, por um mecanismo de estruturas divergentes que se tornam convergentes (...), o sedentarismo do Pastor se torna itinerância de Peregrino e mobilidade de Cavaleiro.» e acrescenta: «Assim, Lereno, é Cavaleiro-Pastor, Peregrino do Amor, em demanda do Desengano. Analisemos, em primeiro lugar, o Cavaleiro do Amor e os seus emblemas: a armadura e a espada, de um lado, o burel e o cajado do outro. Emblemas que são assumidos no momento em que se inicia a andança, a errança, ou seja, a Peregrinação.“ in Cavalaria Espiritual e Conquista do Mundo ,I.N.I.C., Lisboa, 1986, p.98.

[14] Virgílio: «Ditosos os lavradores, ditosos, mais talvez do que‚ consentido se souberem dar valor aos bens que gozam! ...tem, pelo menos, uma segura tranquilidade e uma vida que não mente, rica em vários bens... A Justiça, ao abandonar a terra, deixou lá os sinais dos seus derradeiros passos...», vv. 458- 74;

[15] Doutores da Igreja: João Damasceno, que também tem actividade política liderando os cristãos contra as ordens do Imperador Leão de Bizâncio (726 d.C.); Cirilo de Alexandria, que depõe João Crisóstomo (402a.C.) expulsa herejes e judeus, e tenta anatemizar os Nestorianos; Origenes, um dos heróis da História Eclesiástica de Eusébio, fez um Comentário ao Evangelho de S. João, que também lidera os cristãos quando das perseguições à Igreja de Alexandria (c.197 d.C.).

[16] «9.1 Eu te louvarei, Senhor, de todo o meu coração; contarei todas as tuas maravilhas;... 9.3 –«Porquanto os meus inimigos retrocederam e caíram; e pereceram diante da tua face; 9.4 Pois tu tens sustentado o meu direito e a minha causa: tu te assentaste no tribunal julgando justamente.» Comparando com as notas relativas à epístola dedicatória, parece referir-se aqui, novamente, ou pela primeira vez, no caso da epístola ser posterior, uma protecção de D. Duarte ao autor/narrador.

[17] Naboth recusa vender a sua vinha a Acab, é acusado perante o povo pelos filhos de Belial que dizem: «Naboth blasfemou contra o Deus e contra o Rei. E o levaram para fora da cidade e o apredejaram com pedras, e morreu.»

[18] A visão locusta do fogo e do prumo. «14 – ... Eu não era profeta, nem filho de profeta, mas boieiro e cultivador de sicómoros; 7.15 – mas o Senhor me tirou de após o gado, e o Senhor me disse: Vai e profetiza ao meu povo de Israel

[19] «12.1 – Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício ao vivo, Santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional; 12.2 Porque pela graça que me é dada, digo a cada um de entre vós, que não saiba mais do que convém saber, mas que saiba com temperança, conforme a medida da fé que Deus repartiu a cada um.»

[20] Virgílio, Écloga VI, Op. Cit., p. 67.

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