Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro
- poesia e história - helena barbas - Maio 2003
[ III – Bucolismo e Intertextualidade ]
3. Uma análise descritiva
3.1 Exigência de uma dupla leitura
3.2 As éclogas
3.3 A epístola
3.4 Uma estrutura épica
3.4.1 O epilion
3.5 Os livros de Odes
] 3.4.1 O epilion [
O "epilion" é um poema narrativo curto nunca excedendo os 400 a 500 versos, tendo por tema um incidente na vida de uma heroína ou herói épicos – é sempre um nome feminino que lhe dá o título –, tendendo o seu autor a usar histórias pouco conhecidas ou a inventar novos assuntos. É Virgílio quem transforma os heróis de mitológicos em personagens de sangue real. O estilo desta forma pode variar, e o poema ser apenas narrativo, ou apresentar, em alternância com a narração, partes descritivas de carácter realista, podendo ainda servir-se da forma dramática.
A principal característica do "epilion", o que o distingue verdadeiramente das outras formas, é a presença de uma digressão. Esta é uma segunda história encaixada, por vezes bastante longa, e frequentemente sem qualquer ligação evidente com a primeira sendo a relação estabelecida por paralelismo de temas e contraste de detalhes, ou por oposição de temas e semelhança de detalhes. Esta história de segundo grau – que por vezes se multiplica em patamares meta-diegéticos –‚ é normalmente contada por uma das personagens, que assume o papel de narrador, e em alguns casos consiste na descrição de uma obra de arte ("ekphrasis"). O primeiro exemplo de digressão deste tipo é a descrição do escudo de Aquiles na Ilíada [1]. O escudo, composto de três níveis de metal gravados e trabalhados pelo fogo de Hefaisto, tem sido interpretado alegoricamente ao longo dos séculos.
Marjorie Crump [2], por "estatística" junto dos exemplos mais elaborados, chega a um levantamento das diversas partes que compõe um "epilion": uma dedicatória inicial ao mecenas, a que se segue a informação sobre o tema a ser abordado, além de uma breve notícia biográfica também sobre a mesma entidade, que terminam com uma invocação às musas. Nesta primeira fase são ainda apresentadas desculpas pela trivialidade do trabalho, e promete-se um canto mais sério para o futuro. Todos estes pontos devem ser profusamente decorados com alusões mitológicas raras e glosas ou citações que exibam a destreza e a mestria do autor – alusões que se podem prolongar ao longo da narração. Inicia-se, seguidamente, a parte narrativa, de uma história com características sensacionalistas, na qual está inserida a meio, ou no final, a digressão – que se pode multiplicar. Segue-se uma passagem em que se inclui um lamento formal, para finalizar com uma transformação ou metamorfose das personagens.
No que respeita à Epístola Dedicatória da Laura de Anfriso detectam-se facilmente a maioria destes elementos: 1º. dedicatória, vv.1-27; 2º. informação sobre o tema, vv. 28-36; 3º. notícia biográfica sobre o mecenas, vv.37-42; 4º. invocação às musas, vv.43-45; 5º. frivolidade do trabalho, vv.46-48; 6º promessa de epopeia futura, vv.49-51; Narração iniciada nos vv. 100; Digressão, iniciada em vv. 148, com uma hipotipose; Uma transformação final – que pode também ser uma segunda descrição – quando menciona o acto de escrita, a partir dos vv. 248 até ao final.
Relativamente às éclogas, recorda-se aqui os encaixes e as divisões em patamares, já assinaladas.
Também as odes, consideradas como um todo, podem ser incluídas nesta classificação, pois, no caso de o "epilion" se tornar demasiado longo, o incidente principal pode complicar-se por diversas digressões, frequentemente tão elaboradas que acabam por ser consideradas, por si, como "epilia" independentes (como por exemplo, no livro I, as Odes 2 e 8; no livro II, a Ode 8; no livro III, a Ode 7, e no livro VI as Odes 7 e 10). Salvaguardando a argumentação de que o seu tema não pertence ao campo épico, recorda-se aqui que o Idílio XIII de Teócrito tem por base um tema amoroso, e igualmente se recorda que é esta temática que subjaz às Metamorfoses de Ovídio. Por outro lado, o amor como objecto de demanda associa-se naturalmente ao tema da guerra, especialmente quando o que está em jogo é a conquista do desengano – vocábulo e matéria que, pela sua complexidade e implicações, será adiante abordado em maior detalhe. Neste momento tentar-se-ão estabelecer as linhas gerais do percurso em si, tal como delineado nas Odes.
[] H.B.[]
[1] Homero, Ilíada ,Canto XVIII, vv.396-617.
[2] Marjorie Crump, The Epyllion – From Theocritus to Ovid, Basil Blakwell, Oxford, 1931; e C. A. Trypanis Greek Poetry – from Homer to Seferis, Faber & Faber, London, 1981.