Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 3. Uma análise descritiva

     3.1  Exigência de uma dupla leitura

     3.2  As éclogas

     3.3  A epístola

     3.4  Uma estrutura épica

        3.4.1  O epilion

     3.5  Os livros de Odes

 


]  3.3 A epístola [ 

A epístola dedicatória aparece como um texto de exaltação da casa de Bragança, mas também de intimação à liberdade, um panfleto nacionalista e patriótico contra o domínio castelhano, repetindo muitas das ideias já veiculadas nas éclogas (e odes). As diversas partes a que, teoricamente, dever  obedecer a sua composição saudação, exórdio, narração, petição e conclusão entrelaçam-se e repetem-se de modo harmonioso, embora seja este poema que mais claramente vai também obedecer à estrutura do "epilion" (como adiante se tentará provar). Também aqui, ao considerar-se os textos para os quais apontam as notas, surgem algumas supresas.

      D. Duarte é exaltado enquanto descendente directo de D. Teodósio, de linhagem real, e logo, promessa de vir a ser um futuro rei. Os seus antepassados são-lhe exibidos como exemplo de humanidade e grandeza, pelo que o autor solicita benevolência e apoio para a sua obra. Neste momento a nota lateral refere o Salmo 109, que entre os versículos 1-20 contém uma invocação de salvaguarda e maldição dos inimigos [1] demasiado violenta para ser apenas retórica. O poeta propõe-se imitar o Mantuano, e embora o seu canto seja um «rústico exercício», aventa que hão-de chegar os tempos saturninos quando, a destino mais luminoso, corresponderão melhores versos. Esse futuro ofuscará e fará esquecer todos os grandes nomes de guerreiros e governantes do passado troianos e Césares, Pompílio e Torquato, – ou dos seus impérios – Grécia e Roma – dando novo alento ao «sybillino peito». Aqui a nota refere a Écloga IV de Virgílio, com todas as suas implicações imperiais e messiânicas que, aliás, são desenvolvidas nalguns dos poemas seguintes.

      As futuras glórias do príncipe, obtidas por predestinação divina, determinação astrológica e hereditária, inserem-se na continuidade das glorias e valentia dos defensores da nacionalidade desde Nun'Álvares Pereira, e culminarão no libertar do Túmulo Santo em posse dos «torpes Agarenos». No momento em que se inicia a narração, entre outros textos da Antiguidade Clássica, as notas indicam os bíblicos Salmos de David 4 [2]  e 103 [3], que associados com a anterior referência a Samuel, permitem afirmar se pretende a identificação entre o Rei-Pastor-Poeta David e D. Duarte.

      D. Duarte é assim instado a uma cruzada africana, uma empresa exclusiva da Lusitânia que o chama por seu capitão. À conquista do túmulo de Cristo, em Jerusalém, segue-se a do de D. Sebastião, em Alcácer-Quibir:

De vosso Rei, & tio o campo infando,

   Que ja sangue bebeo em fatais horas,

   só por vossa vingança estã bradando.

                              (vv.127-29)

D. Sebastião é definido como «Regio Abel», indicando a nota respectiva o Génesis 4 [4], e tanto a comparação como a nota completam-se no insinuar de que o rei/pastor poderia ter sido morto, não pelos inimigos e "infiéis agarenos", mas por "irmãos" na raça? na fé? na língua? Esta ideia é repetida várias vezes ao longo do texto. D. Sebastião clama vingança, não só por si e pelos seus, com os mártires de Cristo, mas também pelos familiares de Bragança. Ao prometer reparação aos mártires de Africa:

O companhia santa, & gloriosa,

   Que debaxo do altar do Sarraceno

   Aos Anjos publicais a dor penosa:

                        (vv.130-32)

a nota refere Apocalipse 6 (A abertura dos primeiros seis selos [5]), onde parece constatar-se realisticamente tendo em conta que não apenas a "fina-flor" da aristocracia portuguesa morreu em Alcácer   a falta de adeptos e soldados para que se possa tomar uma iniciativa de guerra ou restauração. A estrofe seguinte refere os comentários sobre o Salmo 9 de Crisóstomo, e o Sermão 39 de S. Agostinho [6], consolando pela necessidade de esperar. Este é um dos momentos em que o subtexto não só contradiz, mas se sobrepõe, ao sentido primeiro das estrofes.

      Aos versos seguintes (166-192) correspondem novas citações de S. Paulo (Epístola aos Gal. 6.), dos comentários de Oleastro sobre Êxodo 24., da Homilia 3 de S. Gregório, e de S. Bernardo e Ruperto sobre cap. 21 do Evangelho de S. João, textos que referem a revelação divina, tanto do Antigo como Novo Testamento e, no caso de S. Paulo, acompanhada de conversão [7]. Desta nota podem tirar-se duas ilações: a primeira, e tendo em conta os pedidos de protecção das notas iniciais que acompanham os agradecimentos no poema, é que o autor teria sido perseguido por questões religiosas – heresia, judaísmo ou islamismo; a segunda, considerando também as referências feitas à "sacralidade" de D. Duarte, especialmente na sua comparação com David, é a de que este Bragança está (também) fadado, por estigma ou predestinação divinos, a desempenhar o cargo real.

      A partir do verso 141 é introduzida uma digressão que, por uma hipotipose, descreve o comportamento de D. Teodósio II em Alcácer e dos seus ascendentes em África, apresentados como exemplos a seguir:

Vede o Pay, vede o Auo, & vede o tio,

   E pello reino & gloria de IESUS

   Entrai Príncipe excelso em desafio.

 

O estandarte real da Santa Cruz

   Por vossa altiua mão seja aruorado

   Pera a treua Africana dardes lus.

                              (vv. 208-213)

Seguidamente o narrador oferece-se para acompanhar o príncipe na morte por Cristo, comparando essa morte guerreira e gloriosa ao presente de submissão:

Não fica mais subido o vosso intento

   Em triunfar vencendo os inimigos;

   Do q em sofrer por Deos hü baxo asse(n)to.

 

Mas que digo? se, os males, & os perigos

   Tudo aueis de vencer com sábio peito;

   Como quem tem os Anjos por amigos:

                              (vv. 227-232)

donde resulta um efeito de contraste e complementaridade. Ao propor-se acompanhar D. Duarte na libertação da terra Africana, refere os comentários sobre o Apocalipse  I, e Mateus 26 [8]. E até aos versos 230 as notas reportam-se ao problema da vocação: de Ezequiel, de Pedro, de Paulo; mas‚ particularmente interessante é a que se refere ao Evangelho de S. Lucas:

14.31 – Qual é o Rei que, indo à guerra, a pelejar contra outro rei, não se assenta primeiro a tomar conselho sobre se, com dez mil, pode sair ao encontro do que vem contra ele com vinte mil?

14.32 – De outra maneira, estando outro ainda longe, manda embaixadas e pede condições de paz.

No momento em que é mais violenta a exortação à guerra, a nota aconselha a prudência e a negociações de paz, arriscando-se a poder ser lida como uma crítica ao comportamento e decisões do próprio D. Sebastião no caso da batalha de Africa. Reforça-se, de novo, o sentido contraditório do sub-texto, e prova-se que esta função das notas é premeditada e intencional.

            Os versos seguintes até ao final correspondem a um segundo momento digressivo, que tem como tema a preocupação com o acto de escrita, a sua qualidade e intenção, como atrás foi referido. Conclui-se, depois, a Epístola  com novo pedido de amparo, agora para os dois pastores, com votos de glória e triunfo, e uma promessa de um canto futuro  a «Homero escurecendo», em «estilo grande e raro», a que se opõem os «cantos do chão» do presente. Neste momento, a nota refere as invejas de Alexandre a Aquiles motivo já anteriormente explorado por Camões a defesa de Arquias por Cícero (X.24), o texto descoberto por Petrarca em 1333 [9], autor também referido na mesma nota. 

[] H.B.[]


[1] «1. O Deus do meu louvor, não te cales:/ 2. Pois a boca do ímpio e a boca fraudulenta estão abertas contra mim: têm falado contra mim com uma língua mentirosa;/ 3. Eles me cercaram com palavras odiosas, e pelejaram contra mim sem causa. (...)/ 13. Desapareça a sua posteridade e o seu nome seja apagado na seguinte geração;/ 21. Mas tu, ó Deus Senhor, sê comigo, por amor do teu nome; porque a tua misericórdia é boa, livra-me;/ 22. Porque estou aflito e necessitado, e dentro de mim está aflito o meu coração.»

[2] «4 – Cordéis de morte me cercaram, e torrentes de impiedade me assombraram./ 5 – Cordas do Inferno me cingiram, laços de morte me surpreenderam./ 6 – Na angústia invoquei ai Senhor (...)/ 17 – Livrou-me do meu inimigo forte e dos que me aborreciam, pois eram mais poderosos do que eu./ 18 –Surpreenderam-me no dia da minha iniquidade; mas o Senhor foi o meu amparo.»

[3] «103.1 Bendize ó minha alma ao Senhor, e tudo o que há em mim bendiga o seu Santo ­Nome.(...)/ 4. Quem redime a tua vida da perdição, e te coroa de benignidade e da misericórdia.(...)/ 7. Fez notórios os seus caminhos a Moisés e os seus feitos aos filhos de Israel.»

[4] «4.1 – E conheceu Adão a Eva, sua mulher, e ela concebeu e teve Caim, e disse: Alcancei do Senhor um varão;/ 4.2 – E teve mais o seu irmão Abel: e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra; (...)/ 4.8 E falou Caim com seu irmão  Abel: e sucedeu que, estando eles no campo se levantou Caim contra seu irmão Abel e o matou.»

[5] «6.9 – E, havendo aberto o quinto selo, vi, debaixo do altar, as almas dos que foram mortos por amor da palavra de Deus e por amor do testemunho que deram./ 6.10 E clamavam com grande voz dizendo: Até quando, ó verdadeiro e Santo Dominador, não julgas e vingas o nosso sangue dos que habitam sobre a terra? / 6.11 E foram dadas a cada um, compridas vestes brancas, e foi-lhes dito que repousassem ainda um pouco de tempo, até que também se completasse o número dos seus conservas e seus irmãos, que haviam de ser mortos como eles foram.»

[6] O Salmo 9 diz: «9.18 Porque o necessitado não será esquecido para sempre, nem a expectação dos pobres se malogrará perpetuamente;/ 9.20 Põe-os em medo Senhor, para que saibam as nações que são constituídas por meros homens.». No seu comentário a este Salmo, Santo Agostinho reitera a necessidade de esperar, e ter paciência com os ímpios que serão castigados por Deus. E no seu Sermão 39, sobre Mateus 21-19, em que Jesus seca a figueira; e Lucas 29.28, em que Jesus finge que vai avançar, lança-se a ideia da impossibilidade de agir, por "só se ter folhas, sem frutos".

[7] «6.13 – Porque já ouvistes qual foi antigamente a minha conduta no judaísmo, como sobremaneira perseguia a Igreja de Deus e a assolava./ 6.14 E, na minha nação, excedia em judaísmo a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições do meu país./ 6.15 – Mas, quando aprouve a Deus, que desde o ventre de minha mãe me separou, e me chamou pela sua graça;/ 6.16 Revelar seu Filho em mim, para que o pregasse entre os gentios, não consultei a carne nem o sangue,/ 6.17 – Nem tornei a Jerusalém‚ a ter com os que já  antes de mim eram apóstolos, mas parti para a Arábia e voltei outra vez a Damasco.»

[8] O Jantar de Cristo em Betânia, a Ultima Ceia, a prisão e Julgamento de Jesus perante o Sinédrio, e a traição de Pedro.

[9] Antonio Prieto: «...códices como el Pro Archia, cuyo descubrimiento em 1333 le recuerda epistolarmente (Familiarium, XIII,6) a Francesco di Sant'Apostoli.» in "Introducción" a Cancionero de Francesco Petrarca, Editorial Planeta, S.A., Barcelona, 1985, p. xxx.

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