Laura de Anfriso de Manuel da Veiga Tagarro

- poesia e história - helena barbas - Maio 2003

 

 

III – Bucolismo e Intertextualidade ]

 

 3. Uma análise descritiva

     3.1  Exigência de uma dupla leitura

     3.2  As éclogas

     3.3  A epístola

     3.4  Uma estrutura épica

        3.4.1  O epilion

     3.5  Os livros de Odes


]  3.5 Os livros de Odes [ 

      Como já  referido, os seis livros são compostos de dez odes cada um, e no seu conjunto formam um corpo único com relações especulares – ou de auto-textualidade – relativamente à epístola e éclogas.

      É possível detectar uma estrutura – embora pouco marcada e não homogénea – no seu interior, tendo como base a relação "amorosa" entre Laura e Anfriso. As aproximações e afastamentos deste par podem ser consideradas como uma espécie de enquadramento em que se inserem outros poemas com a mais diversa temática.

      Descobre-se assim uma pequena intriga narrativa, subordinada ao tema do desengano, que se vai concretizar a três níveis: o amoroso, o político e o religioso.

      Anfriso chora o abandono de Laura, e auto-consola-se porque já  ultrapassou o sofrimento amoroso e atingiu o estado de Desengano (livro I, Ode 1). Depois Vénus intervém (livro I, Ode 8) e assiste aos preparativos para o casamento entre os apaixonados – Anfriso e a Laura lusitana – casamento este que, por razões não reveladas a nível de superfície, não se chega a concretizar [1]. Labitina, mãe de Laura, aconselha-a (livro II, Ode 2) enquanto Anfriso (livro II, Ode 3) grava o nome de Laura num álamo, para que – como em Crisfal [2] – as letras cresçam com a árvore. Laura passeia-se sobre o rio (Anfriso) marcando-o com a sua "planta" imperial (livro II, Ode 5). Anfriso canta Laura e confessa ter de novo caído nos enganos amorosos (Livro II, Ode 6) para seguidamente recobrar a razão [3] (livro II, Ode 7) e re-atingir o desengano.

      A ode seguinte (livro II, Ode 8) – um canto de Anfriso que glosa o tema virgiliano das abelhas, já  usado nas éclogas – opera a passagem do desengano amoroso para o político [4]. Anfriso sofre uma transformação (livro III, Ode 7) marcada pela mudança de roupa, e antecipa para si o desterro e um futuro triste (livro III, Ode 10). Olhando-se nas águas vê nelas espelhado o seu desengano (livro IV, Ode 1), após o que "ressuscita” Laura (livro IV, Ode 4), canta as suas próprias exéquias e escreve o seu epitáfio pessoal [5]. Neste espaço intervêm duas odes de um "eu" indeterminado que substitui a figura de Diana pelos Santos Desenganos (livro IV, Ode 6) e equipara o Desengano ao final da Idade de Ouro. Anfriso retoma o seu canto para acusar a Fortuna de o ter rebaixado sem nunca o ter deixado elevar-se (livro IV, Ode 9) e continua a cantar o desengano, associando a vida à imagem da nau [6] e Laura a rochedos ameaçadores (livro V, Ode 1).

      Segue-se um terceiro momento: Anfriso canta a paixão de Laura por Cristo (livro V, Ode 3), assume-se agora como pescador-peregrino (livro V, Ode 4) associando o seu choro ao movimento das ondas (livro V, Ode 6). Laura adormecida é ameaçada por uma serpente/dragão [7] e salva pela própria morte (livro V, Ode 10). Reconhecendo a sua beleza como efémera (livro VI, Ode 4), a personagem resolve dedicar-se à vida religiosa, conseguindo que tanto Deus como Cristo se apaixonem por si (livro VI, Ode 6). Bordando "panos para os altares", Laura entra em êxtase (livro VI, Ode 7), o narrador "pendura a lira" e considera Cristo como a sua musa (livro VI, Ode 8), Anfriso parte para o deserto, onde dá vida a Cristo (livro VI, Ode 9) e termina com o seu segundo epitáfio (livro VI, Ode 10).

Sempre subordinados ao tema do desengano, outros motivos se podem detectar, na sua maioria com uma forte intenção moralizadora. A reactualização de temas e mitos da tradição greco-latina revela-se como recuperação de uma filosofia algo estóica, por influência de Séneca [8] ­- que se procura conciliar com o epicurismo [9]. A proposta é a de uma filosofia de moderação, a «aurea mediocritas», que a partir do «Otium», permitirá  ascender à «Humanitas».

       Talvez por este motivo, este "senso comum" interfira a nível das conclusões decorrentes das filosofias da antiguidade e a consciência da brevidade do tempo e da efemeridade do homem, embora ainda expressas pelas metáforas e imagens (quase "clichés") que as consagraram no passado, apresentam uma dimensão trágica de menor intensidade. Assim, de algum modo, todos os temas a seguir enumerados têm directamente a ver com diversas manifestações da efemeridade e da mudança, e logo, também com a problemática do desengano.

      Ícaro e Dédalo são as primeiras personagens a ser invocadas (livro I, Ode 2 e livro II, Ode 9). Usando Manuel da Veiga Tagarro como ilustração do que afirma, V. Aguiar e Silva considera que:

... o mito de Ícaro constitui um trágico símbolo do desengano, pois a desastrada aventura do filho de Dédalo adverte os homens das funestas consequências das suas ambições e do seu orgulho:... [10]

Em Tagarro, apesar da novidade das personagens serem caracterizadas como «nadadores do ar», o tema é, neste momento, tratado de modo "pedante", não ainda como representação de uma apoteose espectacular e teatral mas, aparentemente, como um exercício escolar de síntese e reelaboração de todas as versões do passado: esta hipótese apoia-se na presença de um sem número de notas marginais que podem funcionar como um "catálogo" dos autores que já  tinham tratado aquele mito, bem como no facto de apresentar uma digressão em que Dédalo pinta várias cenas mitológicas nas paredes de um templo, entre as quais se inclui a da morte de seu filho. Todavia, quando associado ao tema do desengano, o mito de Ícaro adquire uma dimensão mais complexa como adiante se discutirá, tanto mais que a personagem exaltada por este autor é quase sempre Dédalo. Na Ode 4 deste mesmo livro glosa-se o ferimento de Vénus por seu próprio filho [11]; a figura de  Périlo (livro I, Ode 5) é usada como símbolo da soberba e presunção humanas; Alexandre e Aquiles (livro I, Ode 10) são de novo exemplo da inveja do primeiro ao segundo, pela imortalidade conseguida através da poesia de Homero; Acrísio é atraiçoado por Júpiter que, sob a forma de chuva de ouro, fecunda a filha do primeiro (livro III, Ode 5) mas a tónica é posta agora no poder das «chuvas de ouro» e não na astúcia do deus; a tragédia de Orfeu e Eurídice é cantada por Proteu (livro III, Ode 3) numa glosa da Geórgica IV de Virgílio [12]; Orfeu canta Alcides regressado da guerra (livro III, Ode 9), sob a égide de Claudiano, Horácio e Ovídio; na ode 3 do livro 4 glosa-se de novo Virgílio, agora o encontro entre Dido e Eneias [13] descrevendo-se a cena em que Dido tem ao colo Ascânio, sob cuja figura se esconde Eros - também este poema é acompanhado marginalmente das principais referências ao tema; a última ode do livro IV que se debruça sobre a personagem de Diana, apelidada simultaneamente de «ninfa» e «fera», fonte de todos os enganos termina com uma moralização sobre o desejo do impossível, e insinua a mudança do culto da deusa para um outro, não nomeado ainda; a ode 7 do livro 5 glosa a Ilíada para condenar as mulheres, destruidoras de monarquias. Neste primeiro grupo, todos os poemas apresentam uma ideia moral de comportamento individual que vai ser desenvolvida e demonstrada a partir de um exemplo mitológico, exemplo este que é também um comentário das suas versões mais antigas.

      Pode detectar-se, ainda, um segundo grupo de poemas em que são explorados alguns topos afins dos anteriores, mas agora a moralização dirige-a à sociedade em geral e não aos indivíduos em particular. Reencontram-se temas que atravessam igualmente as obras de autores mais ou menos contemporâneos, como por exemplo, Rodrigues Lobo, Camões, ou Fernão Álvares do Oriente: "Contra o Ouro" (livro II, Ode 3; livro II, Ode 10; livro III, Ode 6), «tempus fugit» (livro I, Odes 7 e 9), e o horaciano "vida-nau-viagem" (livro II, Ode­ ­1 e livro III, Ode 6). Alguns textos afirmam-se ainda como "emblemas" (livro V, Ode 8 e livro VI, Ode 2) – embora não apresentem qualquer gravura – ou possuem características claramente heráldicas: união da Vide/Serpe/Álamo (livro I, Ode 6), obelisco e rosa (livro VI, Ode 5).

      As Odes de temática clássica dão lugar agora a temas "ao divino” – em que se transporta uma dada situação de carácter profano a outra, na maioria das vezes idêntica, mas sujeita ao campo do sagrado. Acompanham, deste modo, a transformação estrutural atrás detectada – relativamente ao evoluir do percurso para o desengano – que também ela se pode reduzir ao topos da passagem do amor-humano ao amor-divino. Estes poemas apresentam-se mais claramente a partir do livro V, onde se começa por exprimir uma dúvida teológica (Ode 2), se muda do mecenas humano para Deus [14] (Ode 9) para, enfim, no livro VI se poder falar de "conversão" (Ode 8). No entanto, a metamorfose já  tinha sido preparada nos livros anteriores, a partir de um auto-reflectir e questionar sobre a vida (livro II, Ode 4), o conceber o corpo como prisão da alma (livro III, Ode 1, desenvolvido na ode seguinte), e um apelo à morte (livro IV, Ode 7, que na Ode 8 se revela em resignação). É também no livro VI que se dá a conversão, que é uma transmutação, das personagens principais Anfriso e Laura.

            Todos estes momentos, e temáticas diversas, vêm a revelar-se como um todo orgânico se encarados como três fases de um mesmo percurso ­- o caminho para o desengano ­- e se o desengano for considerado para além de um simples "enfado" face ao mundo e recuperar a dimensão filosófica que parece ter sido a sua, nos primórdios do Renascimento. E de acordo com o que adiante se tentará provar, aventa-se a hipótese de que (também em Manuel da Veiga Tagarro) este percurso se apresenta como um substituto analógico da Demanda da cavalaria medieval, especialmente porque em ambos os casos tanto o motor da demanda, quanto o seu objecto, estão directamente relacionados com a problemática do Amor.

[] H.B.[]


[1] A não concretização do casamento entre os pastores, por abandono ou morte de um dos amantes, na maior parte das vezes pela figura feminina, é um dos lugares comuns da pastoral. Dá-se­ como exemplo a Lusitânia Transformada: Sílvia, a amada de Florimonte (p.54), bem como Célia, amada de Pradélio (p. 57) e ainda Tecrina, amada do protagonista Felício (p.304), aceitam o amor dos pastores, para depois o recusarem e se dedicarem ao serviço de Diana.

[2] Também este tema é recorrente em todos os textos consultados.

[3] A loucura dos pastores constitui igualmente um lugar-comum do género, havendo exemplos em Bernardim, Sá de Miranda, Camões, Fernão Àlvares do Oriente, Rodrigues Lobo e outros.

[4] O abandono do mundo por aborrecimento com os trabalhos da corte associa-se à já referida oposição horaciana «otium/negotium», e terá o seu melhor exemplo prático, e poético, em Sá de Miranda: «Por isso cá me apartei/ Como tu, Silvestre, vês; /.../ Que fugi aduladores/ em fugir adulações./ Estes montes são milhores/ que as praças das confusões,/ Nas quais erros são mores.//...// Porque dizer a verdade/ livremente, sem engano,/ traz consigo tanto dano,/ que pode tanto a maldade/ que faz mal ao desengano.» Montano apud. Obras Poéticas – I, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1976, p.277-8. Mas é também um dos traços que os poetas usam para caracterizar os seus pastores – recorde-se, por exemplo, a personagem Luzmeno da Lusitânia Transformada, Op. Cit. p. 431.

[5] Abundam igualmente na tradição bucólica estes "auto-epitáfios" que poderão ser entendidos como uma forma de atestar a "morte" do outro, ou do objecto que alimentou o sofrimento, morte que é também a do próprio "eu". Poder-se-ia ainda relacionar esta "falsa” morte com a mudança de roupa, ou de nome, como forma de atestar a emergência de uma nova individualidade.

[6] Imagem horaciana que prolifera pela literatura do período: vamos encontrá-la em Camões, Lírica, Círculo de Leitores, Lisboa 1980, p.118, e em Fernão Àlvares do Oriente, na Lusitânia Transformada, Op. Cit., p.51, entre outros.

[7] Em Os Cavaleiros do­ Amor, Guimarães Editores, Lisboa, 1960, Sampaio Bruno debruça-se sobre uma passagem da Lusitânia Transformada (livro 2, prosa 5, p.206) onde se descreve um monstro com estas características e o considera como uma personificação da Inquisição, a «besta-fera inimiga do amor» (p.75-80). No entanto, António Cirurgião, no seu estudo sobre aquele autor identifica o "monstro" com o dominicano D. Fr. João Vicente da Fonseca, que ocupou o posto de arcebispo da Sé de Goa e Primás da Índia Oriental, e que terá sido envenenado quando do seu regresso a Lisboa, em 1587. Op. Cit. , p. 340-46.

[8] Segundo Mª. de Lurdes Belchior, Op. Cit., p. 154.

[9] Num esforço que Mª. Leonor C. Buescu apelidou de «pragmatismo português»: «O pragmatismo latino e porque não pragmatismo português assentam no que podemos chamar uma "filosofia de acção" que, liberta da especulação pura, procura fornecer esquemas de vida, no quadro da existência: voltada para o imediato, rejeitando a abstractização dos conteúdos, formulando um conteúdo objectivo, em relação à realidade circundante.» in Sobre o Renascimento Português, Op.Cit., p. 16.

[10] V. M. Aguiar e Silva, Maneirismo e Barroco na Poesia Lírica Portuguesa, Centro de Estudos Românicos da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971, p. 415.

[11] Este tema aparece em profusão em epigramas da Antologia Palatina, especialmente do período helenístico.

[12] Les Georgiques, Garnier, Paris, p.449-80.

[13] Livro IV, vv. 79-127, L'Eneide, Flammarion, Paris, 1965, p.93.

[14] Esta transferência dá-se também em Eloy de Sá Sotto Maior, no primeiro soneto de Jardim do Ceo Dedicado a Deos Nosso Senhor... Impresso por Vicente Alvarez, Lisboa, 1607: «Tenha o Mundo Mecenas muito embora,/ A quem teção na terra de boninas/ Mil grinaldas Apolo, e as Camenas/ Que eu, para mais me honrar, colhêndo agora/ Deftas flores, que o Ceo tê por divinas,/ Não qro mais, q a Deos, qh b Mecenas.», fol.1.

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